Quando a justiça deixa de acolher os que sofrem para persegui-los, algo está profundamente errado. É o que denuncia a Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), em nota pública divulgada nesta terça-feira (7), alertando para um padrão que se repete no Brasil: a criminalização de vozes que cobram justiça após tragédias.
O caso mais recente vem de Maceió (AL), onde lideranças comunitárias atingidas pelo afundamento de bairros provocado pela mineradora Braskem estão sendo processadas por agentes públicos. A acusação? Ter criticado o Estado pela morosidade, omissão e suposta conivência com os responsáveis pela tragédia.
A AVTSM vê nesse processo uma repetição amarga do que viveram familiares das 242 vítimas do incêndio da Boate Kiss, ocorrido em 2013, em Santa Maria (RS). “Pais foram processados por promotores do Ministério Público apenas por denunciar a falta de justiça”, afirma a associação, que representa mais de 3 mil familiares diretos de vítimas e sobreviventes. “É inaceitável transformar o sistema penal numa arma contra quem clama por reparação.”
As críticas feitas por familiares, como a existência de corporativismo entre instituições estatais ou a suspeita de conluio com os responsáveis pelas tragédias, têm sido tratadas como crimes contra a honra. No entanto, segundo a AVTSM, essas declarações não são ataques pessoais, mas expressões legítimas de indignação diante da impunidade. “É o sofrimento que fala. E o sofrimento tem o direito de falar”, afirma a entidade.
A Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal e tratados internacionais de direitos humanos garantem a liberdade de expressão como pilar da democracia. O artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, assegura o direito de criticar instituições públicas, especialmente em contextos de dor coletiva.
O próprio STF já firmou jurisprudência ao reconhecer que críticas ao Estado, ainda que incisivas, fazem parte do debate democrático. “Criminalizar essa expressão é um desvio de poder, uma forma autoritária de calar quem perdeu tudo”, diz a AVTSM.
Reação internacional
Na audiência realizada em julho de 2024 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o constrangimento foi evidente quando os comissários ouviram que pais de vítimas da Boate Kiss foram processados. Eles solicitaram mais informações e destacaram que processos contra vítimas violam tratados internacionais. “A perplexidade foi geral”, relatou a associação.
Esse tipo de criminalização tem sido visto por organismos internacionais como uma forma de repressão indireta. Em diversas resoluções da ONU, como a de número 12/21 do Conselho de Direitos Humanos, está explícito que críticas ao funcionamento do sistema de justiça, especialmente vindas de vítimas ou seus representantes, devem ser protegidas.
O silêncio imposto pelo medo
A nota da AVTSM é contundente ao denunciar o uso do segredo de justiça para impedir a transparência dos casos, como no caso de Maceió. “É uma tentativa de esconder o sofrimento de famílias inteiras, como se o luto devesse ser vivido em silêncio”, afirma.
Não se trata de um episódio isolado. Casos como os rompimentos de barragens em Mariana e Brumadinho, o incêndio no Ninho do Urubu e agora o desastre urbano em Maceió revelam uma constante: a ausência do Estado no apoio às vítimas e, pior, a tentativa de calar quem ousa cobrar respostas.
Para a AVTSM, a prática revela uma completa inversão de valores. “Quando nenhuma autoridade da empresa responsável é punida, mas uma vítima é levada ao banco dos réus por falar, o que está em jogo é o direito à cidadania”, destaca a nota.
A força da memória
Na tragédia da Boate Kiss, os efeitos psicológicos da luta por justiça ainda perduram. Segundo a associação, os quatro pais que chegaram a ser processados enfrentaram graves consequências emocionais e físicas, como infartos, cirurgias de emergência e até tentativa de suicídio. “Por pouco não foram sequelas irreparáveis. Tudo isso com a mão pesada do poder público.”
A AVTSM encerra sua nota com um apelo: “O Brasil precisa abandonar de vez a prática autoritária de processar quem sofre. Exigir justiça não é crime. É uma forma de honrar a vida e manter viva a memória de quem se foi.”
O recado é claro: num país que quer ser democrático, não pode haver espaço para a perseguição de quem transforma o luto em luta.