Adalgisa de Araújo Figueiredo Neta, 31 anos, moradora de São Gonçalo do Amarante, a 30 minutos de Natal (Rio Grande do Norte), teve sintomas da zika com três semanas de gestação. Mas o diagnóstico da filha, Emily, hoje com dez anos, só foi confirmado 50 dias depois do nascimento. Era microcefalia causada pela síndrome congênita do vírus. “Foi uma pancada, um choque. ‘O que vai acontecer?’, foi o que eu perguntei para o médico. ‘E agora, eu faço o quê? Tem alguma solução, alguma cirurgia?’. Era uma coisa muito nova. Então um misto de sentimentos, um medo e uma incerteza.”
Dez anos depois, essa incerteza ainda é presente na vida da mãe e das várias outras famílias de crianças com microcefalia causada pelo surto da doença. Embora não existam dados oficiais sobre a quantidade de mães que cuidam sozinhas dos filhos com a síndrome congênita do zika vírus, boa parte dessas famílias são chefiadas por mães solo, como Adalgisa, que representam 13,5% das famílias brasileiras, segundo o IBGE. Em 11 de outubro de 2015, o Ministério da Saúde decretou a epidemia do zika vírus como emergência de saúde pública no Brasil. O Ministério da Saúde identificou 1.828 crianças com a síndrome entre 2015 e 2023.
Uma década depois do surto, os casos diminuíram, as pesquisas evoluíram, mas algumas perguntas seguem sem respostas. Além das questões sobre a evolução clínica das crianças, que apresentam novas complicações a medida em que vão crescendo, e a capacidade do Estado de acolhê-las em suas necessidades, restam dúvidas sobre os riscos de vivermos novas epidemias por arboviroses como o zika no Brasil, sobretudo em outras regiões do país que estão ficando mais quentes, em razão das mudanças climáticas, onde a maioria da população ainda não desenvolveu imunidade ao vírus.
A Agência Pública e a Marco Zero Conteúdo conversaram com mães de crianças com a síndrome congênita do zika vírus em Pernambuco, na Paraíba e no Rio Grande do Norte. Abandonadas pelos parceiros, que fugiram das responsabilidades parentais logo após o diagnóstico dos filhos, elas vivem batalhas solitárias pela sobrevivência e qualidade de vida das crianças, se dedicando cotidianamente aos cuidados e às terapias, sem muito tempo para olhar para si.
Por que isso importa?
A epidemia de zika, que teve o seu auge no Brasil em 2015, foi um surto sem precedentes que causou o nascimento de bebês com microcefalia e outros problemas neurológicos a partir de mães que foram infectadas durante a gravidez. A maior parte dos casos no país aconteceu no Nordeste.
Apesar da diminuição dos casos, as mudanças climáticas podem alterar o comportamento e habitat dos mosquitos e levar a novas epidemias no futuro.
“Ele [o pai de Emily ] seguiu a vida dele e abandonou os dois filhos”, lembra Adalgisa Neta. “Quando ele saiu de casa, faltavam 10 dias para [pagar] o aluguel. Eu fiquei desesperada. Não tinha nem o que comer.” Ela conta que o ex-marido paga apenas R$ 116 de pensão para Emily. “Ele disse, na Defensoria Pública, que não tem como pagar a pensão. Eu fiquei chocada, comecei a chorar. Ele tem uma vida boa. Comprou uma moto, tem casa própria com a atual esposa, trabalha em ótimas academias como personal.”
O Ministério da Saúde identificou 1.828 crianças com a síndrome entre 2015 e 2023.
A principal renda da família é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo. Mãe e filhos dormem no mesmo quarto. O dinheiro mal dá para pagar o aluguel e cobrir os gastos domésticos, fora os remédios de Emily, que demanda vários tratamentos e aguarda uma cirurgia de quadril pelo SUS há quatro anos. “Muitas vezes no meio do mês ela não tem nem o que comer”, conta Neta, explicando que faz dois meses que ela não recebe o suplemento alimentar da menina, distribuído pela prefeitura.
A maior esperança da mãe, atualmente, tem sido receber a indenização anunciada pelo governo federal para as famílias de crianças com deficiência causada por infecção pelo zika vírus, mas o processo dela ainda está em análise. “Quero comprar a cadeira de rodas dela. Organizar o quarto, dar mais qualidade de vida para ela. A questão da alimentação”, sonha.
Muitas mães ainda aguardam a análise e o pagamento da indenização. Algumas procuradas pela reportagem ficaram receosas em falar sobre o dinheiro, temendo se tornarem alvo de criminosos ou até dos próprios ex-maridos.
Pai ausente, mãe solo de três filhos
Hilda Venâncio da Silva, 47 anos, morava em San Martin, na zona oeste do Recife, quando engravidou de Matheus, que nasceu com microcefalia associada ao zika vírus. “Foi difícil aceitar. Mas eu nunca enxerguei Matheus com nenhuma deficiência. Para mim, ele é um bebê que tem limitações”, diz.
Na época do nascimento, há dez anos, ela era casada. Tinha mais duas filhas com o ex-marido, hoje com 18 e 16 anos. Quando Matheus fez três anos, sem conseguir no Recife as terapias de que a criança precisava, a mãe se mudou para Campina Grande, na Paraíba, para contar com o suporte do centro de reabilitação montado pelo Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (Ipesq).
A temporada de reabilitação intensiva deveria durar três meses, mas Silva conseguiu suporte permanente para o filho na cidade nova. O pai e as meninas se mudaram para lá também. Mas a separação aconteceu dois meses depois da mudança. Ela tornou-se mãe solo de três, longe de casa, sem emprego, pensão nem rede de apoio.
“Ele me agredia desde antes de Matheus [nascer]. Antes com palavras e depois fisicamente. Eu resolvi seguir a minha vida sozinha mesmo com os desafios”, conta. Silva sustenta a família trabalhando como auxiliar de cozinha. “Hoje consigo trabalhar porque as meninas agora são grandes e me ajudam muito. Enquanto eu vou trabalhar, a mais velha fica com Matheus. É vida que segue porque ele depende de mim para tudo.”
Com um salário de R$ 1,6 mil e o BPC de Matheus, Silva sustenta toda a família sozinha. Até hoje, o ex-marido não paga pensão. Ela paga R$ 600 de aluguel e gasta entre R$ 200 e R$ 400 por mês de suplementos para o menino, que não são fornecidos pela prefeitura de Campina Grande.
Depois de muita luta, ela conseguiu um carro municipal para levar Matheus aos tratamentos semanais. Periodicamente ele precisa ir até o Recife para consultas médicas com especialistas, como neurologista e oftalmologista. Silva ainda está com a indenização federal em análise e teme que o pai das crianças e a família dele possam reaparecer por causa do dinheiro. Ela disse que o ex-marido chegou a dizer a ela que a indenização iria para os pais das crianças, não para as mães, o que é falso.
“Desde quando Matheus nasceu, sempre fui eu que levei para consulta e terapia. Ele já era um pai ausente, mesmo vivendo sob o mesmo teto”, desabafa. “É cansativo, é sobrecarregado, mas é aquela coisa: Deus só dá aquilo que sabe que a gente pode carregar”, acredita Silva, que há tempos não vai numa consulta médica nem faz exames. Ela também gostaria de ter acompanhamento psicoterapêutico para ela.
A mãe conta que não gosta de projetar o futuro, pelo medo que tem de perder seu filho. “Isso eu não quero nem pensar. Eu vivo o hoje. Eu já vi tantas mães perderam os filhos. Se eu for parar pra pensar, eu vou perguntar assim ‘ô meu Deus, será que daqui 10 anos meu filho vai estar vivo? Será que eu vou estar viva?’. A gente pede a Deus saúde para continuar firme e forte. O resto a gente corre atrás”.
“Hoje ele acordou bem, amanhã eu não sei se ele acorda”
“O governo é o grande responsável por essas crianças terem nascido com microcefalia. Porque a gente não tem saneamento básico, é uma precariedade”. A fala é da dona de casa Claudilene Reis dos Santos, 30 anos, mãe de três filhos. A primeira gestação dela foi aos 18 anos. O filho do meio é Kauan, nasceu com microcefalia em decorrência da zika.
No dia em que a reportagem visitou a casa de Santos, em Peixinhos, na periferia de Olinda, Região Metropolitana do Recife, a família estava há dez dias sem água. Morando há dois anos no local, eles enfrentam a mesma realidade da época em que a mãe se infectou: o esgoto que escorre a céu aberto na entrada da casa simples, de dois quartos, onde Kauan dorme na sala.
“Eu me separei com três meses de gravidez de Kauan e, quando meu ex-marido soube (da microcefalia), não quis ter a responsabilidade de pai”, diz Santos. Ela espera desde 2019 o desfecho de uma ação judicial que moveu contra o ex para que ele pague a pensão dos dois filhos mais velhos, cerca de R$ 400. “Ele se manifestou e veio bater na minha porta armado depois que coloquei ele na Justiça”, conta.
“O governo é o grande responsável por essas crianças terem nascido com microcefalia”, diz Claudilene Reis, mãe de Kauan
Kauan passou recentemente mais de um mês internado no hospital em decorrência de uma pneumonia que se agravou. Em uma década, foi a primeira vez que Santos ficou longe do filho, enquanto ele estava entubado na UTI. Ele já passou por três cirurgias, uma delas para instalar uma sonda gastrointestinal, por onde ele se alimenta de três em três horas e por onde também são administradas as cinco medicações que ela toma diariamente.
Por conta da condição de saúde, ele tem desnutrição crônica, pesa 16 quilos, e a dificuldade de deglutir dificulta ainda mais o ganho de peso. Há um ano, quando fez a cirurgia de quadril tão aguardada por Emily, filha de Adalgisa Neto, Kauan chegou a pesar apenas 11 kg, após um pós-operatório complexo e delicado. “Depois que a gente é mãe, aprende a ser enfermeira, médica, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional”, brinca Santos. Ao longo dos anos, foi também entendendo as pequenas expressões de dor e de alegria do filho.
“No começo, quando ele nasceu, eu passei um mês sem sair de casa. Eu dizia ‘Ai meu Deus, como eu vou andar com ele na rua?’”, porque o povo ia olhar, ia falar. E a gente passou mesmo por isso no começo. Lembro que, num terminal de ônibus, uma mulher riu dele dizendo ‘eita, olha o menino da cabecinha’”, lembra. “Hoje Kauan é meu xodó, eu saio mais com ele do que com as minhas outras meninas. A gente vai para tudo que é canto, praia, piscina, shopping, igreja, jogo de futebol”, comemora.
Santos casou de novo. O atual marido, com quem teve a terceira filha, assumiu o papel de pai das três crianças. Ela sabe que o caso dela é uma exceção. Os cinco vivem com dois salários mínimos, sendo um do BPC de Kauan e o outro do trabalho de motorista do marido num armazém de construção. Hoje, a única coisa que ela espera do futuro é que “Que Deus dê muita saúde” ao filho, “porque a gente vive um dia de cada vez. Hoje ele acordou bem, amanhã eu não sei se ele acorda.”
“Uma mãe cuidando da outra”
Quando se viram sozinhas, sem o amparo adequado do Estado, as mães de crianças que nasceram com microcefalia em decorrência do zika formaram redes de apoio entre elas para lutar por direitos, trocar experiências, desabafos e sonhos.
Luciana Arrais, presidente da Unizika, organização nacional dedicada à luta por políticas públicas para essas famílias, lembra que os direitos que elas conseguiram até agora, como as indenizações, foram conquistados a duras penas. “Nós que fomos organizadas nos ministérios, no Congresso, nos órgãos públicos dizer que nossos filhos estão aqui”. Atualmente, a principal luta da Unizika é para que todas as famílias recebam o BPC, porque ainda há muitas desassistidas.
“Somos nós por nós, uma mãe cuidando da outra. Há muitas mães que não têm um auxílio, uma ajuda de custo, que vivem com o BPC dos filhos. Se tirar algo pra comprar um sabonete pra ela, um absorvente que seja, são julgadas porque ‘é o dinheiro da criança’. Acontece que, se essa mãe não estiver bem, como ela vai cuidar da criança?”.
Germana Soares, presidente da União Mães de Anjo (UMA) de Pernambuco, tornou-se militante pela causa depois de ter Guilherme, hoje com dez anos. É ela quem muitas vezes impulsiona outras mães a lutarem por tratamentos, educação, inclusão e conseguirem na Justiça o direito à pensão dos filhos.
Soares também costuma dizer “somos nós, as mães pelas mães”. “São mulheres que afundaram seus sonhos, pararam de estudar, trabalhar, investir em si para viver a vida de um filho que teve um vírus atravessado por uma irresponsabilidade do Estado brasileiro”, diz. “O Estado falhou nas ações e na prevenção e continua falhando. Desde quando não controla o vetor, o mosquito Aedes aegypti, e os índices de contaminação, até quando falta saneamento básico para todos, abastecimento de água nas torneiras, água potável de uma forma regular. Ou quando o carro do lixo passa somente de 10 em 10 dias para recolher o lixo de uma comunidade inteira”, complementa.
“Mudanças climáticas são risco para nova epidemia”, diz médica
A neurologista infantil Vanessa Van Der Linden trabalhava no hospital público Barão de Lucena, no Recife, em 2015, quando os casos de microcefalia começaram a aumentar. Ela foi a primeira médica a associar a relação entre o zika vírus e a microcefalia durante o surto da doença no Brasil. Naquele ano, estimativas apontavam para mais de um milhão de infecções pela doença no país e mais de três mil casos de microcefalia.
“Geralmente eu atendia um paciente com microcefalia por mês. Lembro que, em setembro daquele ano, cheguei a atender 12 casos. Aí fui na secretaria de Saúde falar sobre o que estava acontecendo”, conta. Ela contabiliza ao menos 400 crianças que nasceram com microcefalia em decorrência do zika, no Recife, nesta época. Ao menos 150 eram seus pacientes.
A neurologista Vanessa Van Der Linden foi a primeira médica a associar a microcefalia com o zika vírus
De lá para cá, a ciência avançou muito na compreensão do vírus e seus impactos, mas ainda não existe uma vacina para o zika. A médica explica que, por causa do surto, muitas pessoas adquiriram imunidade, e isso contribuiu para a redução dos casos. Mas que chegou a acompanhar nascimentos de crianças com a síndrome congênita até 2018.
De acordo com o painel de monitoramento de arboviroses do Ministério da Saúde, os casos de zika seguem tendência de queda. Em 2023, foram 6,6 mil casos suspeitos, caindo para 5,1 mil no ano passado e 3,9 mil este ano, até novembro. Mas, a médica Van Der Linden alerta que a queda não significa que o vírus tenha desaparecido, nem que estejamos livres da possibilidade de novos surtos.
“Hoje é mais difícil, porque muita gente tem imunidade. Mas, como o mosquito gosta de áreas quentes, tropicais, pode ser que apareça em outras regiões, que ficarão mais quentes pelo aquecimento global, onde as pessoas ainda não tiveram contato com a doença”, alerta.
A neurologista também acredita que, como outros fatores de risco não foram resolvidos, como o acesso ao saneamento básico, que agrava a propagação dos mosquitos, é possível que outros vírus transmitidos por mosquitos, ou seja, outras arboviroses, ou mesmo mutações das que já existem, como a dengue, gerem novas epidemias.
Segundo Van Der Linden, o zika vírus atinge principalmente as células progenitoras neuronais. Isso quer dizer que o vírus chega aos neurônios antes mesmo dessas células migrarem para sua posição definitiva no cérebro dos bebês. “São crianças que nascem com um comprometimento muito grande. Mais de dois terços terminaram tendo outros problemas de saúde, 90% têm casos de epilepsia grave. Os tratamentos são no sentido de dar mais qualidade de vida para elas”, explica.
“A mãe termina tendo que se dedicar muito à criança porque a responsabilidade recai sobre elas”, diz a médica, que acompanha centenas de famílias de crianças com a síndrome congênita do zika. “Elas sofrem muito, mas, ao mesmo tempo, essas crianças passam a ser a vida delas”, diz.