O cinema nacional vive uma nova fase de ouro, consagrado pelo Oscar inédito dado ao filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, como melhor filme internacional. O destaque da vez é “O Agente Secreto”, que levou dois prêmios do festival de Cannes: o de melhor ator, para Wagner Moura, e o de melhor direção para o cineasta Kleber Mendonça Filho. O filme, que já foi eleito como representante do Brasil no Oscar 2026, também se passa durante o período da ditadura militar de 1964.
Em entrevista no Pauta Pública desta semana, Kleber Mendonça Filho fala sobre cinema nacional, o desafio de narrar a ditadura militar com complexidade e responsabilidade e a sua relação com a memória. O cineasta pernambucano também reflete sobre a importância de mostrar o Brasil real nas telas e como os filmes podem ajudar a romper silenciamentos construídos ao longo de décadas.
Para Kleber, o cinema não é apenas arte: é arquivo, registro histórico e ferramenta crítica. “O cinema é uma ferramenta poderosíssima. Uma história bem contada atiça a curiosidade, choca e encanta. Cada filme é um novo arquivo”, afirma. A conversa percorre ainda temas como desinformação, relação entre jornalismo, história e o impacto do Projeto de Lei do streaming.
Leia os principais pontos da conversa com Andrea Dip e a participação especial da jornalista e editora Mariama Correa e também ouça o podcast completo abaixo.
EP 195
O Agente Secreto e o Brasil que se vê nas telas
21 de novembro de 2025
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Kleber Mendonça Filho reflete sobre cinema, memória e o Brasil que ainda tenta entender sua própria história
Assistindo O Agente Secreto, uma história ficcional que traz muitos dados da história real do Brasil, fiquei pensando o quanto de documentário ou de um olhar de documentarista você trouxe para esse filme?
Eu acho que O Agente Secreto tem uma linguagem muito clássica de cinema. Eu sou fruto de tudo que eu já consumi, como a literatura, música, filme, e eu seria incapaz de fazer um filme puro. Na verdade, quanto mais impuro os filmes, as músicas, a própria escrita, eu acho que melhor. Há documentário no filme, mas não numa linguagem tradicional do documentário.
Mas a partir do momento que você consegue entender, sentir um espaço, um lugar que pode ser as ruas do Recife ou… tem uma cena, por exemplo, rodada em Perdizes, em São Paulo, e se você consegue ver aquela rua e dizer ‘isso parece Perdizes’, ou um cinema como São Luís, que está no Recife, nesse sentido talvez o documentário exista porque a capacidade de você se associar a um filme vem também da sua capacidade de você se achar naquele espaço, mesmo que você nunca tenha ido ao lugar, faz parte de contar uma história.
Um filme sobre a ditadura ganhou Oscar no ano passado e agora o seu filme, que também foi indicado, passa nesse mesmo período histórico. Como você vê o papel do cinema para romper esses silenciamentos? Para que a história não seja esquecida?
O cinema é uma ferramenta fantástica de memória. Mas não necessariamente todos os filmes têm a obrigação de analisar determinados temas. Eu acho que existem grandes histórias. O nosso país é riquíssimo em poesia, em beleza, feiura e tensão. Ocorre que essa história eu quis contar passando em 1977 e seria irresponsável eu simplesmente bater o pé e ignorar o tempo histórico do Brasil naquele ano.
Eu poderia ter feito um filme sobre como era lindo o Brasil em 1977, mas esse filme não seria meu. O cinema é uma ferramenta poderosíssima. Porque uma história bem contada atiça a curiosidade, choca e encanta. Eu me dei muito conta disso quando fiz Retratos Fantasmas, que é um filme montado a partir de pedaços de arquivo. Mas quando eu terminei o filme eu percebi que na verdade, o filme agora é um novo arquivo. Ele se alimentou de tantas imagens do passado e agora é também uma imagem do passado.
O Agente Secreto, o Ainda Estou Aqui, O Invasor, o Pra Frente Brasil e O Que É Isso, Companheiro, são todos filmes que de alguma maneira oferecem pontos de vista sobre a ditadura. Mas é muito importante que a história seja vista não como “Ah, como era linda a história.” Mas pensar no que significa essa história pra gente que vive hoje e o que temos a ver com isso. Acho que muita gente está tendo essa reação em relação a esses dois filmes que, por uma coincidência enorme, saíram com um ano de diferença, o filme do Walter Salles [ Ainda Estou Aqui] e o Agente Secreto.
Nos créditos do filme é exibido uma mensagem sobre a quantidade de empregos que o filme gerou, a importância da indústria audiovisual brasileira. Por que decidiu incluir essa mensagem levando também em conta a discussão que está acontecendo em torno do chamado Projeto de Lei do Streaming aprovado na Câmara no início de novembro e que agora vai para o Senado?
Porque é meio inacreditável que depois de tantos anos ainda, a gente ainda lê gente usando aquela famigerada frase da Lei Rouanet. É inacreditável que as pessoas ainda continuem tão estúpidas, porque não é possível que elas não tenham entendido ainda que o trabalho com a cultura faz parte da economia e, além de fazer parte da economia, ou seja, pessoas se alimentam com o trabalho feito na cultura, no cinema, no audiovisual.
O audiovisual também se torna uma ferramenta muito potente, eu acho de projeção do país. Quando o Agente Secreto é distribuído em 94 países no mundo inteiro e é distribuído pela Neon e é visto por 350 mil brasileiros na estreia, tudo isso gera coisas muito positivas. E o apoio público à produção de cultura no Brasil está na nossa Constituição, não há nada de errado em relação a isso.
Então é importante colocar até quando eu achar que é necessário essa frase no final do filme com a atualização de quantas pessoas foram impactadas pelo trabalho do filme. Em O Agente Secreto são mais de 1,3 mil pessoas. Pesquisa, pré-produção, produção, pós-produção, distribuição e o trabalho de pós-produção em quatro países também. Então eu vou continuar batendo nessa tecla porque é muito bom quando aparece no final do filme e eu acho que tem um efeito educativo, tem que educar as pessoas.