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Logo depois da crise de 2008, uma frase que se ouviu muito foi: “como os jornalistas não previram isso?”. Não estávamos sozinhos, claro: economistas, banqueiros, e principalmente governos e instituições que deveriam monitorar a saúde do sistema financeiro deixaram a coisa rolar solta, pra cair nas costas da maioria da população mundial.
É por isso que, quando comecei a ouvir um zumzumuzm sobre uma possível bolha de investimentos em Inteligência Artificial (IA), corri pra tentar entender o que está acontecendo. E a verdade é que estamos no meio de uma bolha da IA, e ela vai estourar em algum momento. Entender as implicações é um pouco mais complexo.
Para começar, os entusiasmos com a IA estão cercados de uma ideologia tecnocrática, determinista e aceleracionista, que garante que o impacto da tecnologia será tão devastador que não vai sobrar pedra sobre pedra. Essa narrativa tem algum respaldo nas maravilhas da IA – afinal, quem já usou um chatbot preditivo (eu, hoje, prefiro o chinês Deepseek por motivos óbvios) sabe que a tecnologia pode ser uma ferramenta excelente para qualquer tipo de trabalho. Mas ela é sem dúvida exagerada e crédula em relação ao que a IA pode, de fato, realizar. Citado em um artigo publicado no site da Universidade de Yale, o CEO de um fundo de investimentos e ex-aluno do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) explicou desta forma: “A onda atual de hype sobre IA mistura livremente fato e especulação. Raramente alguém fala sobre as limitações das tecnologias de IA atuais.”
Então, ainda não sabemos muito bem para que vai servir a inteligência artificial no futuro, e muito dinheiro tem sido gasto para isso. Um estudo do MIT publicado em meados deste ano conseguiu quantificar a diferença entre essa “busca” com o retorno financeiro real. Dentre 300 projetos analisados pelos pesquisadores, 95% não tiveram nenhum retorno financeiro. Para chegar à conclusão, os pesquisadores entrevistaram, ainda, 150 diretores dessas empresas. O pessoal do MIT foi bonzinho e disse que o problema “não é da tecnologia”, mas da curva de aprendizado das empresas sobre as potencialidades da IA. Dá na mesma; afinal, é a cultura, estúpido quem vai – ao lado da economia – determinar pra que servirá a IA no futuro.
Outra tendência que acendeu o alerta nos últimos tempos foi a promiscuidade de investimentos que tem se verificado entre as empresas que lideram o setor. A OpenAI comprou 10% da empresa de chips AMD, enquanto a Nvidia está investindo US$100 bilhões na OpenAI. A Microsoft, uma das donas da OpenAI, é cliente da empresa de computação em nuvem para IA, CoreWeave, que também tem participação acionária da Nvidia. A Microsoft responde por quase 20% da receita da Nvidia.
Claro que as empresas podem colaborar. Mas o que estamos vendo aqui é a formação de um oligopólio interconectado que pode sufocar a concorrência, controlar o futuro da tecnologia e concentrar um poder sem precedentes nas mãos de pouquíssimos atores, com pouca ou nenhuma supervisão.
Além disso, o simples anúncio destes acordos ajuda a inflar os preços de ações de todas elas. Então, é bem menos provável que essas empresas alertem para o fracasso da IA em entregar a transformação radical que se espera dela – afinal, quando a bolha estourar, todas elas vão junto.
Parece que os especialistas estão chegando à conclusão de que existe, sim, uma bolha – ou seja: os investimentos feitos nas empresas de inteligência artificial e no uso da tecnologia são exagerados e não vão entregar a receita correspondente.
Finalmente, segundo contou em entrevista ao New York Times o economista Jason Firman, o índice de CAPE, criado pelo economista Robert Shiller para determinar quantas vezes um mercado sobrevaloriza alguns ativos, está atualmente em cerca de 40, o que significa que o preço de uma ação é 40 vezes a média de lucros ajustada pela inflação da última década. É o segundo mais alto nos últimos 150 anos.
Mas mesmo assim, tenho visto otimistas tecnológicos até mesmo louvarem o efeito de uma bolha, vejam só.
Jeff Bezos tratou a coisa como uma equação entre “winners e losers” em uma conferência na Itália no começo de outubro. “As [bolhas] que são industriais não são nem de longe tão ruins, podem até ser boas, porque quando a poeira baixa e você vê quem são os vencedores, a sociedade se beneficia dessas invenções”, disse.
Tenho lido várias análises esquisitas neste sentido. Em um artigo recente no The Guardian, o jornalista Eduardo Porter conseguiu fazer a estonteante profecia: “O mundo será empurrado para uma recessão, mas talvez possamos construir algo mais promissor com os pedaços”, defendendo que as bolhas são até mesmo positivas pois deixam uma infraestrutura para trás que pode ser benéfica no futuro, a preços de banana. Neste caso, estamos falando de uma imensidão de datacenters sedentos por água e energia, que já estão pipocando em toda parte e aquecendo outros mercados – como o imobiliário e de energia. É provável que, com o estouro da bolha, nós cheguemos a ver os famosos “elefantes brancos”, desta vez, revestidos de caixas de concreto com milhares de máquinas zumbis lá dentro.
Bom, eu não sou economista, então vou te poupar de mais elucubrações sobre o que significa a bolha da IA. Para nós, nesta coluna, interessa mais o fato de que a bolha financeira é reflexo de uma bolha, digamos, simbólica, imaginária, que tem tomado quase todas as conversas sobre o que será o futuro da humanidade: iá, iá, iá, robôs, robôs, robôs.
Existe o que colegas meus na investigação transnacional A Mão Invisível as Big Techs chamaram de um “roubo do futuro”: são esse punhado de empresas de tecnologia que estão ditando, através da mais pura especulação, com que futuro podemos sonhar. E se ele nos parece pavoroso, é porque não temos nem a opção de dizer: “eu não quero ter uma IA como namorado, como agente, como psicanalista”. Somos taxados de luditas, de antitecnologia.
Bom, eu não sou antitecnologia de nenhuma maneira – aliás, ontem o ChatGPT ajudou eu e meu marido a conseguir trocar um pneu – mas a verdade é que estamos longe de ver a realidade das grandes promessas da IA. E é preciso – é saudável – mantermos um ceticismo quando ouvimos este papo de “superinteligência”, “IA agentes”, etc. Como tudo na história da humanidade, é bem possível que a grande promessa da IA não se materialize. Como a inteligência artificial vai fazer parte das nossas vidas é ainda imponderável. E seremos nós, tão falhos, tão mortais seres humanos, a limpar a sujeira que foi deixada para trás.