Nesta terça, 21 de outubro, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento dos sete réus do núcleo 4 da trama golpista, acusados de coordenarem “operações estratégicas de desinformação”. Formado em sua maioria por militares da reserva do Exército, o grupo tinha conexões com a extrema-direita fora do país e acesso privilegiado à conspiração no fim do governo Bolsonaro, segundo as provas reunidas pela Polícia Federal (PF) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Os acusados trabalhavam, dentro e fora do país, para dar credibilidade à narrativa de fraude eleitoral em 2022 e influenciar manifestantes bolsonaristas acampados em frente aos quartéis militares, peças fundamentais na engrenagem do golpe.
Se levarmos em conta a sentença inicial do STF no caso, parecem mínimas as chances de absolvição dos sete réus – o ex-major Aílton Barros e o major da reserva do Exército Ângelo Denicoli; o presidente do Instituto Voto Legal, Carlos Moretzsohn Rocha; o subtenente do Exército Giancarlo Rodrigues; o tenente-coronel do Exército Guilherme Marques Almeida; o agente da PF Marcelo Bormevet; e o coronel do Exército Reginaldo Vieira de Abreu.
Integrantes do Núcleo 4
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Todos respondem por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e participação em organização criminosa armada. Além disso, as defesas de todos eles pedem por suas absolvições, refutando envolvimento e até mesmo contestando a legitimidade do STF para julgar o caso.
No caso dos líderes da trama, somente o ministro Luiz Fux votou pela absolvição. Fux acabou derrotado por 4 votos a 1 no último dia 11 de setembro, como mostrou a Agência Pública. Na ocasião, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus receberam penas que variam de 16 a 27 anos de prisão pelos mesmos crimes atribuídos ao núcleo do julgamento amanhã.
Conexão argentina e a “assessoria de inteligência” do golpe
O coronel do Exército Reginaldo Abreu é, certamente, um dos réus com a situação mais complicada no julgamento em curso. À época dos fatos, Abreu era chefe de gabinete do general da reserva Mário Fernandes – responsável pelo plano de assassinato do presidente Lula (PT) e do vice-presidente Alckmin (PSB) antes da posse – na Secretaria-Geral da Presidência da República.
Diálogos recuperados pela PF mostram que o coronel Reginaldo Abreu era amigo do general Mário Fernandes, constantemente instigando o golpe para ele. Como citado pela PGR, Abreu sugeriu até mesmo uma reunião do ex-presidente Bolsonaro apenas com a “rataria”, excluindo o “pessoal acima da linha da ética”, para que se impedisse a posse de Lula e a transição democrática.
General do Exército Mário Fernandes
Coronel do Exército Reginaldo Abreu
Chamado pelo general Fernandes de “Velame”, o coronel Abreu imprimiu, no dia 16 de dezembro de 2022 no Palácio do Planalto, seis cópias de um documento que previa a instalação de um “gabinete de crise” no pós-golpe. A PF aponta que o “gabinete” seria chefiado pelo general Augusto Heleno e que o coronel Abreu faria parte da futura “assessoria de inteligência” do grupo.
A PGR aponta que o coronel Abreu atuou para “alinhar” o conteúdo do relatório das Forças Armadas sobre as eleições de 2022, material que seria usado em prol do golpe, com “dados falsos apresentados ‘pelo pessoal da Argentina’ (em referência a Fernando Cerimedo), a fim de lhe conferir ‘veracidade’”.
Mas era outro dos réus do julgamento a ser retomado amanhã quem fazia a conexão direta com o influenciador argentino Fernando Cerimedo. Provas reunidas pela PF e até mesmo divulgadas publicamente na internet durante a crise mostram uma ligação do major da reserva do Exército Ângelo Denicoli com Cerimedo, um expoente da extrema-direita na América Latina.
A delação do tenente-coronel Mauro Cid reforça as suspeitas contra o major Denicoli. Como lembra a PGR na denúncia, Cid afirmou em sua delação premiada que o militar “integrava um grupo de pessoas empenhadas em encontrar fraudes nas urnas eletrônicas”, ponderando que “nada de concreto foi encontrado pelo grupo” – ligado ao “Argentino” Fernando Cerimedo.
O empenho do major Denicoli contra a lisura do sistema eleitoral também se confirma no depoimento de outro dos réus do núcleo 4, o presidente do Instituto Voto Legal, Carlos Moretzsohn Rocha.
Angelo Martins Denicoli em foto com o ex-presidente Jair Bolsonaro
Segundo a PF, Rocha “reconheceu a participação do major Ângelo Denicoli em reunião de elaboração do relatório” do instituto – que tinha sido contratado pelo Partido Liberal (PL) para elaborar um material contestando a lisura das urnas eletrônicas. É este, afinal, o motivo pelo qual o presidente do Instituto Voto Legal consta na lista de réus do núcleo 4 da trama.
O ex-comandante de Operações Psicológicas do Exército no banco dos réus
Outro militar de destaque entre os réus do núcleo de “operações estratégicas de desinformação” é o tenente-coronel do Exército Guilherme Marques Almeida. Evidências colhidas pela PF sugerem que o militar, colega do tenente-coronel Mauro Cid na turma de 2000 da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), atuava enquanto oficial da ativa do Exército para “influenciar” grupos mobilizados no WhatsApp com desinformações sobre as urnas.
As investigações apontam que o intuito do tenente-coronel Marques Almeida era “direcionar o povo” para “a frente do Congresso”, para “explorar a dimensão informacional” disso – a “nossa parte”, nas palavras dele em áudios recuperados pela PF.
Em um dos áudios obtidos pela PF, o militar descreve com exatidão as cenas que todos veriam no dia 8 de janeiro de 2023 em Brasília: uma multidão invadindo as sedes dos Três Poderes, servindo de “mecanismo de pressão” contra a posse de Lula. “Dá pra fazer um ‘trabalho bom’ nisso aí”, disse ainda o tenente-coronel em parte do material recuperado.
A PF não informou a data da gravação dos áudios de Marques Almeida, mas a denúncia sugere que o material foi produzido pelo tenente-coronel durante a crise do acampamento golpista no Quartel-General do Exército em Brasília, no fim de 2022.
Seis meses após o fatídico 8 de janeiro, Marques Almeida foi promovido a comandante do 1º Batalhão de Operações Psicológicas. A promoção veio à tona no Diário Oficial da União em 7 de junho de 2023, assinada pelo atual comandante do Exército, general Tomás Miné Ribeiro Paiva.
Pouco depois, em fevereiro de 2024, o tenente-coronel foi um dos alvos da Operação Tempus Veritatis, da PF, noticiada pela Pública. Chama atenção que o militar acabou removido do comando do batalhão no mesmo dia da operação, 8 de fevereiro de 2024, também a mando do comandante do Exército.
Tenente-coronel Guilherme Marques Almeida está entre os denunciados do ‘núcleo de desinformação’ do plano de golpe
A ligação da trama golpista com o caso Abin Paralela
O subtenente do Exército Giancarlo Rodrigues e o agente da Polícia Federal Marcelo Bormevet vivem uma situação ímpar em meio aos réus do núcleo 4. Afinal, as provas colhidas e sustentadas pela PF e PGR apontam para uma conexão do papel destes dois réus na trama com o caso da “Abin Paralela” – apelido dado ao conjunto de ações de aparelhamento político e ideológico da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro, inclusive com monitoramento ilegal de autoridades, pessoas de interesse e até mesmo jornalistas, incluindo a repórter Alice Maciel, então funcionária da Agência Pública.
Bormevet era um dos homens de confiança do ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem, condenado pela 1ª Turma do STF a 16 anos de prisão por seu envolvimento na trama golpista. Segundo as investigações, o agente da PF trabalhava em conjunto com o subtenente do Exército, ambos cedidos ao órgão de inteligência durante boa parte do governo Bolsonaro.
No caso de Rodrigues, a PF identificou que o militar era um dos usuários do sistema de espionagem israelense First Mile – usado também para monitorar autoridades da República. A investigação aponta que o subtenente “foi diretamente responsável por 887 pesquisas no sistema First Mile, além de outros possíveis acessos realizados por meio de senhas compartilhadas”.
“Foram identificados diálogos de WhatsApp entre Bormevet e Giancarlo, em que Bormevet indicava alvos que deveriam ser pesquisados”, relataram ainda os investigadores, pontuando que “os nomes levantados nas conversas claramente não partiam de decisões estratégicas de Estado ou do trabalho regular” da Abin.
A denúncia da PGR aponta que Bormevet e Giancarlo coordenaram “campanha de desinformação” contra os ministros do STF Luís Roberto Barroso e Luiz Fux na rede social X (antigo Twitter), com envio de prints “com o resultado da campanha” pelo subtenente ao agente da PF então cedidos à Abin.
Contra Bormevet e Giancarlo pesa ainda a suspeita de proximidade com os líderes da trama. Ambos teriam conhecimento do “decreto golpista”, então discutido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e outros acusados, de acordo com as investigações da PF e a denúncia da PGR.
“Em 21/12/2022, Bormevet encaminha mensagem a Giancarlo sobre a assinatura do decreto do Presidente da República. Ao receber a resposta negativa de Giancarlo, o investigado responde: ‘tem dia que eu acredito que terá, tem dia que não’”, segundo a PF.
Seja qual for o veredito em relação a Bormevet e Giancarlo, há expectativa que a sentença dê sinais sobre a avaliação do STF sobre o caso Abin Paralela. Como a Pública tem mostrado nos últimos anos, há um cenário de descontrole das atividades de inteligência no Brasil, panorama este simbolizado na suspeita de aparelhamento da Abin no governo passado.