O Supremo Tribunal Federal (STF) dará a palavra final sobre a manutenção de um acordo comercial criado há quase 20 anos para evitar o desmatamento ligado ao agronegócio na maior floresta tropical do mundo, a chamada moratória da soja. A decisão poderá resguardar – ou colocar em risco – uma área do tamanho do estado de Pernambuco, que pode ser liberada para o avanço da soja na Amazônia, segundo estudo consultado pela Agência Pública.
Até 5 de novembro, a moratória da soja estava com os dias contados, pois teve seu fim decretado por um órgão do governo a partir de janeiro de 2026. Porém, o STF definiu que decidirá sobre a manutenção do acordo, entre os dias 14 e 25 de novembro. A determinação da Corte veio pouco depois de uma decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em 30 de setembro. O Cade havia julgado um caso proposto pela bancada ruralista no Congresso e concluiu que a moratória da soja seria “um acordo anticompetitivo” no setor, por isso, o Cade decretou o término da moratória.
Por que isso importa?
Ainda que exista preocupação com uma possível formação de cartel no setor agrícola, tornar legal o cultivo de soja em mais áreas da Amazônia pode estimular o desmatamento no bioma, revertendo o histórico recente de queda.
Segundo relatório da ONG Mighty Earth, que monitora as cadeias produtivas de commodities em âmbito global com dados oficiais e imagens de satélite, “todas as áreas desmatadas na Amazônia após julho de 2008, aproximadamente 10 milhões de hectares, seriam liberadas para a expansão da soja”. Ou seja, uma área equivalente a uma Coreia do Sul inteira poderia ser liberada para o avanço do grão. Além disso, haveria um ‘efeito dominó’, com risco de aumento dos conflitos por terras e do desmatamento na Amazônia.
O material também prevê impactos diretos e indiretos sobre as indústrias da agropecuária, do cacau, do café, da extração legal de madeira, projetos agroflorestais e de créditos de carbono. “Consequentemente, estas atividades seriam forçadas a avançar para áreas de floresta, indiretamente contribuindo com o desmatamento, largamente imprevisto até o momento”, aponta o relatório.
O STF avalia a constitucionalidade da Lei estadual Nº 12.709/2024, sancionada pelo governo Mauro Mendes (União-MT) em outubro de 2024, que altera o entendimento da moratória da soja e corta benefícios fiscais a quem adere ao acordo. A ação foi movida pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), do Partido Verde (PV) e da Rede Sustentabilidade, questionando a legalidade da norma do governo Mauro Mendes.
O relator do caso no STF, ministro Flávio Dino, decidiu “suspender as ações em curso nas instâncias ordinárias jurisdicionais e administrativas (incluso o Cade)” que tratem do tema e disse que a moratória “fortaleceu a credibilidade do Brasil no cumprimento de compromissos internacionais de proteção ambiental, reforçando o papel do país como fornecedor de produtos agropecuários sustentáveis no mercado global”.
O Cade entende que a moratória serviria como “um acordo anticompetitivo entre concorrentes”, algo “que prejudica a exportação de soja”. Perguntado se a decisão de encerrar o acordo considerou impactos negativos quanto à conservação do meio ambiente e dos povos da floresta, o órgão respondeu que “não comenta casos em andamento” e que o processo que originou sua decisão está liberado para consulta.
Vale lembrar que o fim da moratória da soja deriva da bancada ruralista do Congresso. A investigação do Cade teve início após o recebimento de uma representação da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, numa manobra envolvendo o deputado bolsonarista Evair de Melo (PP-BA), coordenador da Frente Parlamentar Invasão Zero no Espírito Santo, como já mostrado pela Pública.
Expansão da soja em área do bioma Amazônia entre 2008 e 2023 e uso anterior da terra
Megaprojetos, avanço da soja e interesses comuns de traders e da bancada do agro
Imagens de satélite mostram que uma área preservada de mais de 3 mil hectares, equivalente ao município de Diadema (SP), foi incendiada desde setembro de 2024 dentro da fazenda Massapé, um latifúndio voltado para atividades agrícolas e de mineração na zona rural de Altamira (PA). Alvo de embargos do governo federal por crimes ambientais, a fazenda destina ao menos 440 hectares para o cultivo de soja, escoando a produção pela BR-163 – uma das principais vias de transporte do agronegócio no Centro-Oeste e Norte do país.
Com a moratória da soja, podia-se dizer que qualquer grão de soja produzido ali teria dificuldades para chegar a mercados estrangeiros como a União Europeia. O acordo comercial firmado em 2008 proíbe as maiores revendedoras de soja do mundo de comprarem e venderem grãos produzidos em áreas desmatadas, legal ou ilegalmente, na Amazônia. É essa a realidade que pode mudar a depender da decisão do STF.
O relatório da Mighty Earth aponta que a ascensão do bolsonarismo e a “crescente influência da bancada ruralista” já geravam iniciativas contrárias à moratória dentro dos estados da Amazônia Legal antes da decisão do Cade. O material destaca a aprovação de leis estaduais em Mato Grosso e Rondônia contra incentivos fiscais a quem adere à moratória da soja, e projetos semelhantes no Maranhão e em Tocantins. “Tais medidas legislativas foram celebradas por parte do agronegócio como vitórias da ‘soberania’, mas ameaçam quase duas décadas de esforços contra o desmatamento ligado à indústria da soja na Amazônia”, avaliou a ONG Mighty Earth.
Com base em dados da Universidade de Maryland (EUA) e da plataforma brasileira MapBiomas, a ONG Mighty Earth aponta que a média anual do avanço da soja na região foi de 42 mil hectares entre 2021 e 2023, quase o dobro da média dos doze anos anteriores, de 24 mil hectares.
Pesquisadores destacam o papel das empresas que se comprometeram com a moratória da soja, mas para torná-la mais frágil. “As principais traders [revendedoras] de soja – Cargill, Bunge, ADM, Louis-Dreyfus e Amaggi – apoiam e investem diretamente em infraestrutura e logística, por meio de portos, rodovias, ferrovias, silos, seja por meio de operações pontuais, joint ventures ou interesses em concessões públicas”, diz o relatório, que destaca ainda que os interesses das grandes traders “regularmente se alinham com interesses da bancada ruralista, pela ‘integração econômica’ da Amazônia e a ‘soberania brasileira’ na legislação – especialmente o Código Florestal, em detrimento de acordos privados supranacionais”.
Atualmente, há uma série de projetos de infraestrutura e logísticos anunciados ou em diferentes fases de desenvolvimento na Amazônia Legal, como a Ferrogrão e a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico), ampliação da rodovia BR-163 entre Mato Grosso e Pará, além da criação da hidrovia Araguaia-Tocantins. Para os pesquisadores, porém, aportes do tipo resultam em “aumento no desmatamento, ameaça à biodiversidade e enfraquecimento de comunidades tradicionais, povos e territórios indígenas”.
O ‘fogo amigo’ dentro do governo
O fim da moratória da soja serviu de ‘fogo amigo’ dentro do governo, considerando-se o fato do Cade ser ligado ao MJSP. Pastas direta e indiretamente impactadas têm demonstrado insatisfação com a medida há meses. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) já se posicionou abertamente contra a interrupção do acordo, uma decisão que, como reportou a Pública, pegou o Ministério dos Povos Indígenas desprevenido.
Para o MMA, a moratória da soja “possui quase 20 anos de vigência com resultados inegáveis para a proteção ambiental”. Segundo nota da pasta divulgada em agosto, entre 2006 e 2023, a área voltada para a soja na Amazônia “cresceu 427%, sem provocar novos desmatamentos”. “A experiência da moratória da soja demonstrou que é possível expandir a produção agrícola de forma competitiva, com ganhos de produtividade, respeito à legislação e proteção dos direitos humanos”, concluiu.