Tarifaço, ameaças de Donald Trump e risco frequente de deportações em série não são suficientes para alterar a percepção do brasileiro sobre o status dos Estados Unidos como referência democrática, especialmente quando o país é comparado à China. “A ideia de que os Estados Unidos é a grande democracia liberal do ocidente e a China uma ditadura comunista é difundida pela indústria cultural dominada pelos EUA, pelos meios de comunicação e mesmo pela experiência cotidiana dos brasileiros”, sintetiza o professor de pós-graduação em Estudos Comparados sobre as Américas Camilo Negri.
Apesar das pressões econômicas recentes dos norte-americanos contra o Brasil, o país ainda é visto como mais democrático e “melhor lugar para se morar” se comparado à China. Esse cenário foi mensurado por pesquisas da Nexus, realizadas em agosto com 2.005 entrevistados em todas as regiões do Brasil.
De acordo com os levantamentos, mesmo com a percepção de que os Estados Unidos agem de forma mais autoritária no cenário internacional e estimulam mais guerras, para 60% dos brasileiros, o regime norte-americano é visto como o mais democrático, contra 25% que atribuem essa característica à China.
A pesquisa mostra que os brasileiros separam a democracia interna do autoritarismo praticado pelos EUA contra outras nações. A China aparece como admirada mais por sua inovação tecnológica e capacidade produtiva, sem, no entanto, aspirar desejos de integração.
“O Brasil só reconheceu diplomaticamente a República Popular da China há 50 anos, e a China só se tornou um parceiro comercial relevante nos últimos 25 [anos]. É uma relação ainda muito nova, em que existe desconhecimento e temor em relação ao sistema político chinês”, explica o cientista político e professor do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha Maurício Santoro.
Outro fator que ajuda a explicar a percepção sobre os dois países é a dissociação entre o que se entende por democracia e relações internacionais. “As democracias podem ser extremamente agressivas e belicosas na sua política externa. É o caso dos Estados Unidos, foi o caso também da França e do Reino Unido. Ao passo que regimes autoritários, como o da China, podem ser bastante pacíficos”, explica Santoro.
Essa interpretação é compartilhada pelo professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) João Carlos Botelho que afirma que “a política externa chinesa é menos intervencionista do que a estadunidense, sobretudo em relação à América Latina”, e ainda assim, terem a imagem relativizada quando em oposição aos EUA. “Isso demonstra ingenuidade ou desconexão entre desejo e realidade, já que o governo Trump promove uma perseguição a imigrantes, inclusive política”, analisa Botelho.
“A difusão de valores como liberdade, inovação, oportunidades de ascensão social e referências culturais globais (Hollywood, universidades renomadas, principais bigtechs sediadas neste país) alimenta a ideia de que, apesar de seus excessos externos, viver nos EUA ainda representa acesso a mais direitos e melhores condições de vida”, complementa o sociólogo e diretor do Instituto Democracia em Xeque Fabiano Garrido.
Essa realidade se reflete, por exemplo, no quesito “morar fora”, especialmente quando o componente político é agregado: 81% dos bolsonaristas disseram que prefeririam viver nos EUA, contra 47% dos lulistas. Segundo Negri, o indicador mostra como o “american way of life” segue amplamente difundido e aceito no imaginário coletivo, “mesmo que a Europa ou até a China possam oferecer alternativas melhores”.
Apesar disso, Garrido avalia que desde o governo Trump, a imagem norte-americana vem mudando com as políticas que desgastaram sua credibilidade como referência democrática, como o endurecimento da política migratória, o tom nacionalista e xenofóbico e o uso de tarifas como pressão.
“Os impactos negativos desta política de extrema direita levada a cabo pelo atual governo norte-americano, associado a ampliação das relações diplomáticas e comerciais entre Brasil e China, possibilitam, a meu ver, uma tendência de ampliação da percepção positiva sobre a China por parte de parcelas cada vez maiores da população brasileira”, diz o sociólogo.