Por Claudia Maldonado
As mulheres foram convocadas à política brasileira com promessas de igualdade. Mas, na prática, muitas delas foram usadas. Literalmente.
Desde 2009, a lei exige que pelo menos 30% das candidaturas sejam femininas (Lei 9.504/1997, art. 10, §3º). Em 2018, o TSE reforçou essa política afirmativa, obrigando os partidos a destinarem também 30% do Fundo Eleitoral para candidatas. A ideia era nobre: corrigir um desequilíbrio histórico. Mas o que se viu foi a criação de um novo tipo de violência institucional: as candidaturas-laranja.
Mulheres foram alistadas como candidatas sem saber. Outras foram pressionadas por dirigentes para “emprestar o nome”. Algumas chegaram a ter zero voto — nem o próprio. Muitas não receberam recursos, não fizeram campanha, não apareceram na propaganda. Seus nomes, no entanto, serviram para garantir que os homens pudessem concorrer legalmente com 70% das vagas — e com 100% do poder.
Segundo a Transparência Brasil (2023), as mulheres representaram mais de 34% das candidaturas em 2022, mas ocuparam apenas 14,7% das cadeiras na Câmara dos Deputados. E mesmo com a regra dos 30%, receberam em média 44% menos recursos que os homens.
Isso não é descuido. É assédio político de gênero — silencioso, estrutural e persistente. É a tentativa de calar mulheres que ousam disputar o poder em um campo onde o protagonismo sempre foi masculino. Quando uma mulher tenta ir além do papel simbólico, ela é ignorada, excluída de debates, pressionada a desistir e até ameaçada.
A Lei nº 14.192/2021, criada para combater a violência política contra mulheres, ainda é subaplicada. Afinal, quem fiscaliza os partidos? Quantos dirigentes foram punidos por fraudes? Raros. Mas em 2024, o jogo mudou — pelo menos em parte.
A virada do TSE: candidaturas-laranja agora têm nome, regra e punição
Em maio de 2024, o TSE editou a Súmula 73, que define critérios claros para identificar candidaturas fraudulentas:
- votação zerada ou inexpressiva;
- prestação de contas zerada ou padronizada;
- ausência de atos reais de campanha ou promoção pessoal.
Esses indícios, isolados ou combinados, caracterizam fraude à cota de gênero. A punição é dura: cassação do DRAP (registro da chapa), anulação de todos os votos da legenda, perda de mandato dos eleitos e inelegibilidade dos responsáveis (AIJE)(TSE, 2024).
Em março de 2024, o TSE aplicou essa regra e anulou resultados em 14 municípios por fraude às cotas femininas, em estados como Maranhão, Espírito Santo e Minas Gerais (Estadão, 2024).
E se um homem tiver zero voto? Nada acontece.
A regra é clara: a Súmula 73 se aplica apenas às candidaturas femininas porque sua função é corrigir a sub-representação histórica das mulheres — não punir fracassos eleitorais. A legislação de gênero impõe cotas só para mulheres, porque são elas que o sistema tenta excluir há séculos (tse.jus.br; senado.leg.br).
Os números não mentem: o problema é estrutural
Em 2024, das 456.310 candidaturas registradas no Brasil, apenas 155 mil eram de mulheres. Os homens ainda ocupam mais de 80% dos cargos políticos. Mesmo com os avanços, as mulheres eleitas vereadoras chegaram a só 17,92%, segundo dados da Câmara dos Deputados — um aumento irrisório em relação a 2020 (15,83%)【camara.leg.br】.
Isso não é falta de interesse. É falta de acesso, de recursos e de respeito.
Legalidade robusta, aplicação tardia
A verdade incômoda é que a Justiça Eleitoral geralmente age só depois da eleição, e quase sempre após denúncia ou Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE).
Ou seja:
- a fraude pode ser punida somente depois da posse;
- há risco de anulação tardia, instabilidade política e prejuízo à representação.
Embora o sistema legal seja formalmente avançado, na prática os 30% funcionam mais como obstáculo burocrático do que como mecanismo de transformação real. As candidaturas-laranja, a distribuição desigual dos recursos e a cultura patriarcal que estrutura os partidos minam a eficácia dessa política pública.
Cota não é maquiagem. É política de reparação. E precisa ser levada a sério.
Enquanto os partidos continuarem instrumentalizando a presença feminina apenas para cumprir tabela, a democracia será uma vitrine quebrada. Transparente, mas enganosa. Por trás do vidro: manipulação, sub-representação, violência simbólica.
Não basta garantir que mulheres estejam na cédula. É preciso garantir que estejam na disputa real, com apoio, recursos, estrutura e segurança.
A justiça está começando a reagir. Mas o eleitor também precisa fazer sua parte.
Você sabe em quem votou na última eleição? Ela teve chance real? Foi financiada? Debatida? Ou foi usada para validar candidaturas que sempre dominaram o jogo?