Em uma das conversas interceptadas pela polícia, o chefe do grupo criminoso que dominava parte do assentamento Dorothy Stang, palco de grilagem, tráfico e morte em Sobradinho, ordenou um massacre nas ruas próximas.
“Tem que atirar para matar. Tem que ficar no susto não”, disse o homem, conhecido como Gilmar, a um comparsa.
“Tá ligado que eu sou bandido. Não sou comédia”, acrescentou. “Esses caras tão [sic] andando aqui dentro todo dia. Tem que atirar para matar. E vai ser acima de 20 tiros. Para deixar minha marca. Nossa marca, tá ligado”, ordenou.
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Considerado um “palco de verdadeiras guerras pelo domínio da ocupação e controle do crime organizado, com tráfico de drogas, de armas, etc.” pela juíza Iracema Botelho, o assentamento em Sobradinho tem longa trajetória de violência.
O local, que está em processo de regularização, começou como uma invasão. É nesse cenário que um grupo passou a “tocar o terror”, cobrando R$ 30 dos moradores para fazer a segurança.
Em 2020, os dois grupos criminosos que atuam no local sofreram perdas, com mortes e prisões de líderes, que se reinventaram ao longo dos anos. Na decisão de 30 de setembro, a juíza destacou essas mudanças e citou a tentativa de domínio da área pelo crime organizado e tráfico.
“Os personagens mudam, vez ou outra, outros aparecem e as relações entre os criminosos sofrem alterações. E o que se observa, agora, mais frequentemente, é a interligação entre criminosos nascidos no Distrito Federal, Goiás, São Paulo, Piauí, etc.”, destacou a sentença.
“O Distrito Federal, particularmente, vem sofrendo significativa mudança dos padrões de criminalidade. São pontos de preocupação: o incremento das organizações criminosas; os arranjos entre facções, inclusive rivais, com o objetivo do fortalecimento e maior poder de fogo contra o Estado; as invasões de áreas, baseadas na falsa premissa de que se destinam a moradias, com função social; o crescimento da interface advogados/servidores públicos/ grupos criminosos; o dinamismo do crime versus a burocracia estatal”, completou o texto.
Para entender a situação do assentamento, após a justificativa da magistrada o Metrópoles foi atrás de processos que expliquem a definição usada em sentença para condenar um integrante do Primeiro Comando da Capital (PCC) que atuava no local.
Em apenas quatro meses de 2020, brigas de grupos rivais resultaram em 12 vítimas, sendo quatro homicídios e oito tentativas. Os conflitos têm fator territorial presente, de acordo com as investigações.
Inquéritos
A reportagem teve acesso a inquéritos desses crimes de 2020. “Cada quadrilha se associa sob determinado nome ou sigla (‘CNC’, ‘DNOCS’, ‘QUADRA 15’, ‘Tudo 2’, ‘Tudo 3’, etc.), que geralmente faz referência ao bairro onde residem seus integrantes”, destaca a apuração.
“Além disso, cada grupo possui seu território bem delimitado, onde não são aceitas pessoas oriundas de outros bairros, consideradas rivais”, completa o texto.
As violências citadas anteriormente foram resultado de brigas com caráter geográfico. Segundo a investigação, a rivalidade dos grupos Comando Nova Colina (CNC) contra Galera do Gilmar teve início quando integrantes do CNC foram presos, e a gangue teve de ampliar a área de atuação, saindo da Nova Colina para a “parte de cima” do assentamento Dorothy.
A área de invasão, no entanto, já era controlada pelo grupo Galera do Gilmar, que ficava na “parte de baixo” e tinha como atividades criminosas tráfico de drogas, compra e venda de armas ilegais, extorsões (inclusive no estilo de milícia, com pagamento para segurança), grilagem e até homicídio.
“A vinda do CNC para o Dorothy transformou o assentamento num verdadeiro palco de guerra”, definiu a investigação conduzida pela 13ª Delegacia de Polícia (Sobradinho), em 2020.
Um caso emblemático para a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) é de uma moradora da comunidade que teria comprado o lote em 2017 por R$ 268 e desde então pagava mensalmente à Galera do Gilmar a quantia de R$ 30 para o grupo fazer a segurança da moradia.
No entanto, em março de 2020, o Comando Nova Colina entrou no lote, levou as telhas e a caixa d’água e se recusou a deixar o local, dizendo que o ponto seria uma boca de fumo a partir daquele momento.
Na mesma semana, integrantes do CNC assassinaram um dos envolvidos da Galera do Gilmar, dando início a um ciclo de violência, com prisões e mortes que afetam a liderança e a estrutura de ambos.
Assentamento Dorothy
O nome do assentamento é uma homenagem a uma missionária católica norte-americana, da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Dorothy Stang se opunha à exploração ilegal da floresta e foi assassinada em 2005, em Anapu, no Pará.
O Metrópoles procurou o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e o Governo do Distrito Federal para questionar a situação urbanística em que o assentamento se encontra.
O MPDFT informou que existe procedimento na Prourb que trata da regularidade do assentamento. “A questão da violência (crimes comuns) é atribuição da promotoria local”, reforçou.
Até a última atualização desta reportagem, o GDF não havia se pronunciado.