Milhares de pessoas desabrigadas após afundamento causado pela mineração da Braskem em Maceió, Alagoas.
As decisões do Ministro do Superior Tribunal de Justiça João Otávio Noronha em 2019 tiveram um papel crucial para a Braskem. Ele ordenou a suspensão dos bloqueios bilionários determinados pela justiça de Alagoas, o que permitiu à empresa pressionar os órgãos públicos por cláusulas favoráveis no primeiro acordo assinado após o afundamento do solo causado por sua mineração em Maceió. Essa é a conclusão do processo no STJ, ao qual o Intercept Brasil teve acesso na íntegra, e das informações do defensor público Ricardo Melro, que participou das negociações.
De acordo com Melro, a Braskem fortaleceu sua posição após as decisões do Ministro Noronha para negociar o Termo de Acordo para Apoio na Desocupação das Áreas de Risco, de dezembro de 2019. Esse acordo estabelece medidas de assistência às vítimas, mas não atribui responsabilidade da empresa pelo desastre ambiental e ainda concede a ela a posse dos imóveis de moradores indenizados. Essa base serviu para os acordos firmados nos anos subsequentes.
O pedido inicial de bloqueio foi movido pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público de Alagoas, com o intuito de assegurar a reparação imediata dos danos causados ao meio ambiente e às vítimas.
A primeira decisão favorável à Braskem, suspensa pelo Ministro João Otávio Noronha em junho de 2019, foi proferida pelo desembargador Alcides Gusmão. Ele havia bloqueado aproximadamente R$ 2,7 bilhões em lucros que seriam distribuídos aos acionistas da empresa.
Em agosto, o Ministro determinou também o desbloqueio de R$ 3,6 bilhões da empresa, que haviam sido determinados por desembargador alagoano. O desembargador baseou-se em um relatório do Serviço Geológico do Brasil para destacar o “risco latente e de amplo alcance lesivo” com “impactos diretos em, no mínimo, 30 mil pessoas”.
Ele também fez menção aos desastres de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, onde o rompimento de barragens da Vale resultou em centenas de mortes. “O que diferencia esses desastres dos riscos abordados neste caso é que esta tragédia anunciada [em Maceió] ainda pode ser evitada”, escreveu na decisão anulada por Noronha.
Em maio de 2019, o Serviço Geológico do Brasil confirmou que as rachaduras nos imóveis e o afundamento das ruas de cinco bairros de Maceió foram resultado da extração de sal-gema pela Braskem. Nos últimos cinco anos, estima-se que cerca de 60 mil pessoas perderam suas casas.
Apesar disso, atendendo aos pedidos da Braskem, o Ministro determinou que os bloqueios de R$ 2,7 bilhões e de R$ 3,6 bilhões fossem substituídos por um seguro garantia no mesmo valor – um mecanismo que substitui os depósitos judiciais, cauções e penhoras de bens, protegendo o patrimônio do réu até o final do processo.
No entanto, o seguro garantia teria validade de cinco anos e a Braskem poderia optar por não renová-lo, caso provasse que não havia mais riscos a serem cobertos ou demonstrasse a perda do direito do segurado. Além disso, o dinheiro não seria utilizado para a reparação imediata às vítimas.
De acordo com Thiago Gomes, especialista em mercado financeiro e professor no projeto de extensão Sala de Ações, da Universidade Federal do Piauí, o seguro garantia representava a melhor alternativa para a Braskem, pois não afetaria o pagamento dos acionistas, não geraria desconfiança no mercado financeiro e não interferiria na gestão empresarial.
Procurado por meio da assessoria de imprensa do STJ e pelo e-mail de seu gabinete, o Ministro João Otávio Noronha não respondeu.
Autoridades públicas foram obrigadas a recuar após determinações de João Otávio Noronha.
Após os recursos serem desbloqueados, a Braskem mudou sua postura na mesa de negociação, afirmou um dos representantes dos órgãos públicos que posteriormente assinaram o acordo. Ricardo Melro admitiu: “O fator determinante para desequilibrar as negociações com a Braskem foram os desbloqueios feitos pelo STJ. A segunda decisão do Ministro Noronha foi um golpe final. Tivemos que recuar”.
As negociações estavam equilibradas, segundo Melro. Os órgãos públicos tinham a seu favor o relatório do Serviço Geológico do Brasil, confirmando que a Braskem era responsável pelo desastre ambiental, e a empresa tinha R$ 3,6 bilhões bloqueados. “A Braskem apresentou a decisão de João Otávio Noronha depois de uma pausa para o almoço. Então, mudou o tom da conversa e a paridade de forças”, relatou.
Uma das cláusulas impostas pela empresa, segundo Melro, foi a 14ª, que estipula que “os pagamentos feitos pela empresa referentes aos terrenos e edificações das vítimas pressupõem a transferência do direito sobre o bem à Braskem”. “A empresa não abriu mão disso. Decisões de Brasília interferiram drasticamente”, explicou o defensor.
Essa cláusula de transferência de posse dos imóveis para a Braskem foi mantida no Instrumento Particular de Transação Extrajudicial, Quitação e Exoneração de Responsabilidade. Os moradores precisam assinar esse documento para receber uma indenização de valor questionável, revelado pelo Intercept.
O valor pago pela Braskem pelos imóveis é definido pela avaliação de uma empresa contratada pela própria mineradora. Além disso, cada família recebe R$ 40 mil de danos morais, valor muitas vezes insuficiente para comprar outro imóvel.
Segundo Melro, os órgãos públicos tiveram que chegar a um acordo possível em 2019 para evitar esperar pelo resultado de um longo processo judicial. “Uma ação dessa magnitude, com uma empresa que possui um grande corpo jurídico como a Braskem, levaria cerca de 20 anos de disputa. As pessoas ainda estariam em áreas de risco e sem nada”, argumentou.
Em nota, a Braskem não respondeu à maioria das perguntas, mas defendeu que “as decisões do STJ ocorreram dentro de prazos comuns para decisões liminares, que tratam de medidas urgentes, e foram baseadas na legislação que fundamentou decisões similares em diversos processos”.
Sobre a cláusula que transfere a posse dos imóveis indenizados, a empresa apenas alegou que isso foi necessário para resolver o problema, sem dar mais detalhes.
O Ministro do STJ liberou bilhões da Braskem bloqueados pela justiça de Alagoas. Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress
Braskem influenciou ministro com legislação voltada para o setor público.
A Braskem fundamentou seus pedidos de suspensão dos bloqueios no artigo 4º da Lei 8.437, de 1992, que autoriza o presidente do tribunal – neste caso, o Ministro João Otávio Noronha – a suspender decisões em ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a pedido do Ministério Público ou de pessoa jurídica de direito público, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
Apesar de ser uma entidade privada, a Braskem argumentou que, por possuir concessão pública para explorar recursos minerais, considerados bens da União, estava sujeita à legislação aplicável aos órgãos públicos. No entanto, o ambientalista Daniel Neri, doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp, contestou essa interpretação, ressaltando que a concessão pública não equivale à prestação de serviço público, como ocorre com as empresas de transporte coletivo.
Para convencer Noronha da legitimidade de invocar a lei, a Braskem alegou que o bloqueio de R$ 2,7 bilhões dos lucros de seus acionistas acarretaria enormes prejuízos à economia do estado, à geração de impostos e empregos, além de afetar a economia pública. A empresa também argumentou que a proibição de distribuir lucros impactou negativamente a cotação de suas ações na Bolsa de Valores, causando prejuízos significativos à economia.
Além disso, a Braskem utilizou a Petrobras como argumento, destacando que a petroleira, uma das principais acionistas da mineradora, teria cerca de R$ 1 bilhão a receber. A empresa também mencionou a Novonor (antiga Odebrecht), outra grande acionista, que poderia ser prejudicada, afetando milhares de empregos.
Embora Noronha tenha reconhecido os riscos da atividade minerária e as calamidades já ocorridas em Maceió, ele considerou que o bloqueio dos recursos para reparar os danos prejudicava a economia pública, concordando com os argumentos apresentados pela Braskem. No entanto, Ricardo Melro, defensor público, argumentou que a legitimidade para entrar com o pedido de suspensão deveria ter sido dos afetados e das entidades públicas envolvidas, e não da Braskem.
O Ministro João Otávio Noronha respondeu rapidamente à Braskem e desconsiderou órgãos públicos.
O ministro Noronha agiu com rapidez para atender aos pedidos da Braskem, com uma resposta em apenas sete dias no primeiro caso e 16 dias no segundo. Enquanto isso, os pedidos da Defensoria Pública e do Ministério Público de Alagoas ficaram sem resposta durante todo o ano em que a ação tramitou no STJ.
O caso foi arquivado em junho de 2020, seis meses após a Braskem assinar um acordo favorável com os órgãos públicos. Na decisão de arquivamento, Noronha observou que as petições da defensoria e do MP não receberam resposta, enquanto nenhuma petição da Braskem foi prejudicada.
O segundo pedido de suspensão dos bloqueios foi respondido por Noronha em 8 de agosto de 2019, enquanto o agravo interno da defensoria e do MP, apresentado em 18 de junho, ainda estava pendente de decisão.
Nessa petição, os órgãos públicos questionaram a legitimidade da Braskem em utilizar a lei 8.437/1992, destacando o real interesse público dos moradores desalojados, a confirmação da responsabilidade da Braskem pelo desastre ambiental e solicitaram a restituição do bloqueio de R$ 2,7 bilhões.
Após Noronha suspender o bloqueio de R$ 3,6 bilhões, os órgãos questionaram a omissão do ministro em relação à petição anterior, sem receber resposta. Em novembro, um mês antes de assinar o acordo com a Braskem, a defensoria e o MP fizeram dois pedidos de reconsideração, também sem resposta.
Enquanto isso, o escritório contratado pela Braskem, Sérgio Bermudes Advogados, com mais de 50 anos de atuação, teve acesso facilitado aos tribunais, o que não ocorreu com os defensores e promotores de Alagoas, que enfrentaram dificuldades para obter uma resposta.
Ministro recusou pedidos semelhantes de outras empresas
João Otávio Noronha rejeitou pedidos de suspensão de decisões feitos por empresas com base na lei 8.437/1992, citando a “natureza privada do interesse”, em pelo menos dois casos que julgou em 2019.
A empresa de transporte rodoviário Gontijo apelou ao STJ para suspender uma decisão que permitia à sua concorrente, Edson Agência de Viagens e Turismo, transportar passageiros de Chorrochó, na Bahia, para São Paulo. Alegou que tal decisão poderia afetar o equilíbrio econômico-financeiro das demais empresas de transporte interestadual.
O ministro reconheceu que empresas privadas com concessão de serviço público, como o transporte, têm o direito de alegar grave lesão à economia pública para pedir a suspensão de uma decisão judicial. No entanto, ele acrescentou que “as pessoas jurídicas de direito privado” só têm legitimidade “quando comprovado o interesse público – o que não é o caso”.
A Viação Ouro e Prata recebeu uma resposta semelhante do ministro. A empresa buscava suspender uma decisão que autorizava a Gran Express Transportes e Turismo a explorar o transporte interestadual de passageiros entre Brasília e Novo Progresso, no Pará.
Noronha negou o pedido, alegando que não havia interesse público, observando que a Viação Ouro e Prata apenas buscava “impugnar outorga concedida a outra empresa”.
Jair Bolsonaro e João Otávio de Noronha trocam apertos de mão. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
Decisões de Noronha beneficiaram também a família Bolsonaro.
Na posse de André Mendonça como ministro da Justiça em abril de 2020, Jair Bolsonaro expressou sua admiração por João Otávio Noronha, referindo-se a um “amor à primeira vista”. Essa declaração não foi sem motivo: várias ações de Noronha entre 2020 e 2021 foram favoráveis ao presidente.
Em maio de 2020, quando ainda presidia o STJ, Noronha derrubou decisões que exigiam que Bolsonaro divulgasse seus exames de covid-19 para comprovar resultados negativos.
No mês seguinte, em julho, concedeu prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e sua esposa Márcia Aguiar, argumentando que Queiroz, que estava com câncer, precisava de seus cuidados.
Em fevereiro de 2021, Noronha anulou a quebra de sigilo bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro, alegando que a investigação sobre a “rachadinha” estava direcionada para prejudicar o filho mais velho do presidente.
Ele também votou pela anulação do compartilhamento de relatórios do Coaf com o Ministério Público do Rio de Janeiro, esvaziando a investigação.
Em agosto do mesmo ano, suspendeu definitivamente a investigação contra Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e outros 15 investigados, argumentando o uso de provas ilegais.
Três meses depois, decidiu que o MPRJ deveria apresentar uma nova denúncia para o caso das rachadinhas prosseguir, mas sem usar as provas obtidas nas investigações anteriores.