Como não arrancar um band-aid

Num reflexo involuntário, coça o cotovelo ao acordar. Está lá o band-aid. Por um segundo, estranha o volume engruvinhado na pele, mas logo o reconhece. Afaga por um instante a almofadinha retorcida e levanta. É hora de fazer café.

No caminho para a cozinha é interrompido pelo gato escandaloso (tem muita fome pela manhã), resquício de uma vida passada, e pelo cachorro, que se embola entre as suas pernas, carente como um bebê.

Será que eu também era assim?, ele pensa por um minuto, enquanto gentilmente afasta o animal com os pés. Eu era assim? Um bichinho que se misturava às pernas esguias dela? Ela quem?

Acorda sempre meio confuso, daí a necessidade de café. Abre o pote com o fruto escuro, aspira profundamente o aroma que se espalha pela cozinha, põe água para ferver. Gira a alavanca de um velho utensílio de metal para moer pacientemente os grãos. É o seu ritual.

Esbarra o cotovelo no balcão da cozinha. Sente alguma coisa, uma espécie de dor fantasma. Talvez este não seja o meu cotovelo, pensa por um segundo, ao não reconhecer a dor da topada. Era como se, ao bater o pé, lhe doesse o nariz.

Acha graça. As manhãs eram mesmo muito estranhas.

Estranhas, ao menos, até a hora do café. Ao dar o primeiro gole, sentia um baque. Era como se a alma retornasse ao corpo, depois de uma longa errância por aí. Uma longa errância por ele, pela sua história, por todas as coisas que aconteceram e aconteceriam, ainda, até o fim da vida — repetindo-se infinitamente.

O gato miava, desesperado, um mesmo miado que se dividia em mil. Insuportável.

Era isso! O café lhe dava clareza. Ele tinha a nítida sensação de que as coisas se repetiam. Ele era um eu diferente, certamente, mas vivendo sempre a mesma vida, o mesmo dia. E aquele maldito gato, de onde vinha? Ele sempre preferira os cães, por achá-los mais docemente estúpidos e leais, assim como ele. Mas agora passava metade do dia pensando no gato, o animal insolente que derrubava copos, vasos, comia plantas e miava bem no seu ouvido todas as manhãs.

Ah, o gato era dela. É isso, o gato era um desses resquícios de vida passada, uma dessas coisas que persistem. Era um eco de uma outra casa e de uma outra vida, e que, sem ele entender como ou por que, estava ali, do seu lado, mais fiel do que qualquer outro gato, mais valente e mais companheiro — mas jamais submisso. Um gato nunca deixa de ser um gato, ele pensou. Nem mesmo depois de ser abandonado.

Abandonado?

Era um gato e tanto, sem dúvida. Fazia barulho, quebrava coisas, aprontava das suas, mas era magnífico. Um descendente direto das esfinges do Egito, altivo, filho do deus sol — senão o próprio. Sentava-se orgulhosamente à beira da maior janela da casa e tomava o banho matinal com esmero, sem esquecer um único centímetro de pelo. Estava sempre impecável.

Quando queria, arranhava. Não dava sinal, não parecia ter nenhuma intenção, apenas arranhava. Será que era isso que estava sob o band-aid ressecado? Um arranhão? Era possível. O que mais seria? Ele pouco saía de casa, pouco encontrava os amigos pelos bares da cidade. Era um sujeito moderadamente metódico, moderadamente previsível. Acordava pelas 8h, cambaleava até o pote de café, tomava uma ou duas aspirinas para suportar uma dor que já nem existia, e seguia para o escritório, onde passava as manhãs lendo, escrevendo, respondendo a demandas do seu trabalho remoto e cada vez mais esporádico de professor.

De onde, então, viria um arranhão tão profundo no cotovelo? Sim, porque a coisa só poderia ser muito feia. Caso contrário, por que teria deixado passar tanto tempo? Não era um curativo de uma semana, nem mesmo de um semestre. Estava ali, apenas, como segunda pele. Estava há tanto tempo que certamente ele poderia reivindicar um posto de garoto-propaganda, ou quem sabe um recorde mundial. A bandagem que não sai na água, não sai no sol, não sai, simplesmente. Ficava ali, enquanto fosse preciso.

Era preciso?

Sentou-se no escritório e abriu um desses livros grossos e surrados que a gente lê por uma vida inteira, descobrindo coisas novas a cada investida. Pensou: este livro sou eu. Um livro se torna a gente, ou a gente se torna livro, com o tempo. Se torna a gente acumulando as nossas células, fluidos, pedaços da nossa pele (ele era do tipo que anotava as páginas, esfregava mãos e dedos, tinha uma voluptuosa relação tátil com o papel), carregando tanto de nós, testemunhando tanto da nossa vida. Desde a adolescência ele lia aquele livro. Desde quando tinha 15 anos.

Agora estava com 45, algo assim. É verdade que ele comemorara o aniversário de 45 anos duas vezes e meia, para compensar a estrondosa partida dela, portanto era difícil precisar um número. Era algo como 45, portanto algo como 30 anos lendo o mesmo livro (mas não só, obviamente).

E ele também era o livro: aquele objeto na estante que observa. Até quando?

Começa a rabiscar algo no livro da vida. Mas o trabalho é interrompido quase imediatamente: o gato pula no seu colo, o café se espalha por toda a parte. Mancha terrivelmente o papel e escorre pelas suas coxas, fervente. Corre para o banheiro, mais desconcertado do que bravo. Seca as páginas marrons com papel higiênico. Tira a bermuda, lava as pernas improvisadamente para aliviar a queimadura e procura outra roupa para vestir. Aquela já não serve.

O livro já não serve. Ou terá salvação? Manchado, úmido, borrado, desgastado. A tinta da caneta, ainda fresca em uma anotação que lhe ocorrera minutos antes, se converte em uma espécie de teste psiquiátrico. Ele olha longamente para a mancha. O que vê?

Demônios. Um anjo, talvez? A vida se repete sempre, eternamente, e das duas uma: ou é obra de Deus, ou do Diabo. (Seja um, seja outro, tem convicção de que ambos riem.)

O cão subitamente late e corre pela casa, eufórico, como se fosse dia de visita. Tem visita? Será ela? Ou ele?

Finalmente! O gato mia de novo, alto, muito alto. Fita-o insistentemente. De onde vinha aquele gato? Por um instante ele vê além da rotina, além da grande roda dos dias. O eterno retorno do mesmo.

Qual é a coisa menos previsível que eu poderia fazer agora, para sabotar a roda dos dias?, pensa. Num reflexo insensato, atira o livro pela janela (tomara que não acerte ninguém, com aquele peso, daquele andar). Dane-se, não é com isso que se vai importar. Tudo tem seu preço. E o gato? E as queimaduras? A ferida? O arranhão?

E ela? Corre de volta para o banheiro: arrancar o band-aid que não estava lá.

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