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Depois do voto cínico e prolixo do ministro Luiz Fux, que superou os advogados de Jair Bolsonaro e dos militares golpistas na defesa dos réus – só condenando aqueles já descartados pela caserna, o delator, Mauro Cid, e o assediador de colegas militares, o general Braga Netto –, foi uma alegria ouvir a ministra Cármen Lúcia, a única mulher da turma, falar com clareza, objetividade e profundidade de argumentos como convém a uma juíza.
E o gênero, aqui, importa, sim, como ela lembrou em tom de brincadeira ao conceder “todos” os apartes ao colega Flávio Dino. “Todos, ministro, desde que sejam rápidos porque também nós mulheres ficamos 2 mil anos caladas, nós queremos ter o direito de falar”.
Certeira, ela não citou o nome de Fux ao colocar os pingos nos i’s em relação à caracterização da organização criminosa, com Jair Bolsonaro na liderança, e ao encadeamento dos fatos que compõem a trama – da tentativa de descrédito das urnas, da Justiça Eleitoral e das agressões ao STF ao planejamento de assassinato do presidente eleito, seu vice e do ministro Moraes, culminando com os atos terroristas de 8 de janeiro de 2023.
É essa a coluna vertebral da acusação da PGR e por isso mesmo o foco da investida do ministro Fux, já conhecido pelo apoio prestado (e encoberto) à força-tarefa empenhada em incriminar Lula, revelado pela Vaza Jato.
Demonstrando a validade da “prova cabal” produzida pela PGR de tentativa de abolição violenta do Estado de direito e de tentativa golpe de Estado por essa organização criminosa, amparada por documentos e depoimentos de testemunhas, a ministra adotou tom coloquial para expor o ridículo da tese, enevoada pelo juridiquês de Fux, de que não haveria provas da atuação dos réus nesses crimes, em especial da liderança de Jair Bolsonaro sobre a organização.
“O que mais se alega para tentar desfazer o que foi acusado é que não há formalmente assinatura [de Bolsonaro]. Até onde a gente tem, com algum conhecimento da história, realmente passar um recibo no cartório do que está sendo feito não é bem o que acontece nesses casos. Diferente do alegado, aliás, ele não foi tragado para o cenário das insurgências, ele é o causador, ele é o líder da organização criminosa que promovia todas as formas de articulação alinhada para que se chegasse ao objetivo de manutenção ou tomada do poder”.
Essa, aliás, tem sido uma preocupação da ministra durante todo o julgamento do núcleo central dos golpistas: falar com o público, desfazendo dúvidas que podem comprometer também o futuro da nossa democracia, como fez em questionamento ao advogado de Alexandre Ramagem, reforçando que nosso processo eleitoral é amplamente auditável ao contrário do sistema anterior, de voto impresso, vendido pelo advogado como sinônimo de voto auditável.
Não por outro motivo, logo em suas primeiras palavras nesta quinta-feira, ao reafirmar o caráter técnico e a absoluta normalidade do julgamento, a ministra destacou: “O que há de inédito nesta ação penal é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase o encontro do Brasil com o seu passado, com o seu presente e com o seu futuro. Não se tem imunidade absoluta contra o vírus do autoritarismo, que se insinua insidioso, destilando o seu veneno a contaminar a liberdade e os direitos humanos”.
É certo que a condenação de Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão não contempla todos os crimes graves cometidos pelo ex-presidente. Basta lembrar das mortes evitáveis causadas por mentiras e políticas intencionalmente equivocadas durante a pandemia, como fez o colega Rafael Oliveira em matéria inesquecível publicada na semana passada. Da mesma forma, devem ficar sem julgamento as ofensas públicas e nocivas contra jornalistas, mulheres (a mais recente, aliás, há poucos meses), quilombolas e pessoas LGTB+, as agressões contra indígenas e o desmonte das políticas ambientais e climáticas, entre outros delitos.
Ainda assim, nesse caso a Justiça foi feita e será consolidada com a prisão de Bolsonaro e dos demais réus, ainda que consigam condições especiais.
Como brasileira, como jornalista e como mulher, agradeço à ministra Cármen Lúcia pelo voto límpido e decisivo para a condenação de Jair Bolsonaro e dos demais réus neste processo em que “se houve dor, também houve esperança”. É esse o sentimento que prevalece agora e que, espero, ilumine as instituições e a sociedade para defender nossa democracia e soberania, negando ao Congresso o direito de rasgar a Constituição e a Donald Trump o de ameaçar nosso país.
Nunca valeu tanto a pena comemorar uma sexta-feira, que, aliás, começou na quinta à tarde (confesso, brindei). Um bom fim de semana para todos e vamos à nova batalha que certamente vai se desenrolar a partir de agora com os abutres da democracia mais vorazes do que nunca.