Enquanto os sistemas de abastecimento de São Paulo operam com os menores níveis em uma década e medidas para conter a queda dos reservatórios deixam moradores de periferias sem água, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), privatizada em 2024, fechou o segundo trimestre de 2025 com lucro de R$ 1,96 bilhões, um aumento de 64% em relação ao ano passado.
O Sistema Cantareira, que abastece 9 milhões de pessoas, operava com 23,3% da capacidade em 10 de novembro, um volume tão baixo que já é considerado de “restrição”. Os índices se aproximam aos da crise hídrica de 2014 e 2015, em que o Cantareira chegou a pouco mais de 11% e foi necessário recorrer ao seu volume morto.
Em um cenário de escassez crescente, especialistas ouvidos pela Agência Pública são pessimistas sobre a capacidade de uma empresa privatizada, orientada para aumentar o lucro, conseguir garantir o acesso à água como um bem comum. Um dos exemplos que eles apontam: na última grande crise, a Sabesp deu descontos na conta de quem economizasse água.
Por que isso importa?
Em um cenário de escassez de água, especialistas levantam dúvidas sobre a capacidade da Sabesp, privatizada em 2024, continuar atendendo as necessidades da população.
Eles apontam exemplos de países que privatizaram a captação e distribuição da água estão reestatizando os serviços para gerenciar melhor os recursos hídricos e baratear o preço ao consumidor final.
“Como vai ser agora, se a redução das contas impactaria diretamente o lucro da empresa?”, pergunta José Antonio Faggian, trabalhador da Sabesp e presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente (Sintaema).
“Se olhar quem está por trás da Equatorial [a acionista de referência da Sabesp], são fundos financeiros. É uma lógica de retorno para os acionistas, sobretudo no curto prazo. E o gerenciamento de uma crise demanda ação de longo prazo”, afirma Ana Lucia Britto, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Observatório Nacional do Direito Humano à Água e ao Saneamento (Ondas).
Os especialistas ouvidos pela reportagem também apontam que São Paulo estaria andando na contramão do mundo, uma vez que vários países que privatizaram a captação e distribuição da água estão reestatizando os serviços para gerenciar melhor os recursos hídricos e baratear o preço para a população. O motor das discussões nestes locais foi o contrassenso de que um bem universal, necessário à vida de todos os seres vivos, passe a ser operado pela lógica de mercado.
Um estudo publicado em 2017 mostra que, dos anos 2000 até aquele momento, houve 267 casos de reestatização de empresas de água, majoritariamente na Europa. Os principais problemas apontados foram o aumento desproporcional das tarifas, falta de transparência, falhas na prestação de serviços e não cumprimento da promessa de universalização da água pelas empresas que assumiram os contratos.
Na França, apesar de ser sede das multinacionais Suez e Veolia, isso já aconteceu em pelo menos cinco grandes cidades: Paris, Nice, Lyon, Montpellier e Bordeaux. Segundo Britto, que estudou os casos, houve um entendimento de que as cidades deveriam cuidar de seus recursos hídricos como um bem importante para o futuro das próximas gerações. “Foi uma visão de longo prazo, de entender que a água é um recurso finito”, aponta.
Berlim, capital da Alemanha, também privatizou seu serviço de água e esgoto e depois, após pressão popular, voltou a comprar a maioria das ações para deter o controle da companhia. Houve uma grande mobilização popular, com realização de plebiscito, para abrir as contas da empresa. Os dados mostraram que a companhia garantia lucro mínimo de 8% para investidores privados, cobertos pelo governo, um dos motivos que fez a tarifa da água aumentar quase 40% no período. Depois da reestatização, os preços caíram.
Paris e outras grandes cidades francesas reestatizaram a água
Histórias parecidas ocorreram em cidades como Napóles e Turim (Itália), La Paz e Cochabamba (Bolívia), Kuala Lampur (Malásia) e Atlanta (Estados Unidos). Também aconteceu em Buenos Aires, mas lá o caminho voltou a se inverter. A empresa de água da capital argentina foi privatizada nos anos 1990, reestatizada nos anos 2000, e agora voltou a entrar em processo de privatização por decisão do presidente Javier Milei.
Uma das situações mais emblemáticas ocorreu na Bolívia, com a chamada Guerra da Água, em 2000. A venda da empresa de água de Cochabamba, uma região árida e com poucos estoques de água, a multinacionais estrangeiras elevou a tarifa em mais de 350%. Liderada por comunidades indígenas e marginalizadas, a revolta popular foi tão grande – durou quatro meses – que o governo se viu obrigado a comprar de volta as ações.
Enquanto isso, em São Paulo…
“Em uma lógica pública, o consumo das famílias é o que se prioriza. Mas numa lógica privada, o que acontece se for preciso racionar?”, questiona Britto. Ela alerta que, com a possibilidade de as chuvas continuarem abaixo do normal este ano, somada às instabilidades causadas pelas mudanças climáticas, será preciso definir prioridades para o uso da água em uma metrópole gigantesca e de consumo altíssimo. “A água não vai ser suficiente para todos”, afirma.
“Não há cláusula no processo de privatização que obrigue a empresa a adotar medidas que prejudiquem seu lucro”, diz Faggian. “Sem isso, não há garantia de que a população será prioridade nesta crise que está se iniciando. Vamos ter que aguardar para ver qual vai ser a postura da empresa privada.”
A Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística afirmou que os estudos feitos durante a modelagem da desestatização da Sabesp levaram em conta experiências internacionais de reestatização, muitas delas motivadas por contratos concluídos ou pela alta de tarifas atreladas ao dólar. Segundo a pasta, o modelo paulista adotou mecanismos para evitar esses problemas, como o cálculo de tarifas com base em investimentos já realizados e a criação de um fundo voltado à estabilidade tarifária. A Semil defende que a privatização foi essencial para garantir segurança hídrica e evitar a fragmentação da Sabesp.
Em nota, a Sabesp informou que a infraestrutura do sistema está mais robusta desde a crise de 2014 e 2015, após interligações e ampliações que aumentaram a sua capacidade. A empresa diz que deve atingir R$ 300 milhões em obras de resiliência até o fim do ano, e cita como exemplos de destaque um novo sistema de captação que aumentou em 17% o volume de “água nova” do sistema Alto Tietê; três estações de tratamento para Itapecerica da Serra e Embu-Guaçu; e novos reservatórios e estações de bombeamento nas zonas oeste e sul da capital.
Ainda segundo a Sabesp, há investimento no uso de inteligência artificial e imagens de satélite para detectar vazamentos, fraudes e ligações clandestinas. “Esses investimentos, inovação e obras de integração permitiram que, mesmo com oscilações nos níveis dos reservatórios, como as registradas recentemente, a Sabesp mantenha estratégias eficazes de resiliência para enfrentar eventos climáticos extremos e garantir o abastecimento à população paulista”, afirma.
Brasil na contramão do mundo
Nos últimos anos, o Brasil vem apostando na venda de empresas de água de várias cidades, como a Sabesp em São Paulo e a Cedae do Rio de Janeiro. Mais de 1600 municípios eram atendidos com serviços privados no fim de 2024, segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
O caminho para a retomar os serviços públicos, para Britto, é complicado: os contratos brasileiros são geralmente mais longos que os de outros países, o que renderia indenizações bilionárias em caso de quebra de contrato. “Para romper o acordo, o Estado teria que comprovar que a prestação de serviço é muito ineficiente, teria que acontecer algo muito grave, ou seria obrigado a pagar um valor absurdo. Ainda assim, não é impossível. É uma decisão política, depende da prioridade do governo”, afirma a pesquisadora.
Sistema Cantareira operava com 23,3% da capacidade em 10 de novembro
Faggian também alerta que o modelo privatizado não incentiva investimentos em áreas de baixa rentabilidade, como periferias e zonas rurais. Desde que os níveis dos reservatórios começaram a ficar preocupantes, a Sabesp reduziu a pressão da água no período noturno, o que afeta principalmente essas regiões, onde a falta de água já é corriqueira por problemas na rede e as residências nem sempre têm caixas d’água de reserva.
“Diante da estiagem atual, a concessionária tem optado pelo manejo da oferta, a redução de pressão na rede, o chamado ‘racionamento disfarçado’. Esta tática, de menor custo operacional e impacto imediato no balanço, penaliza de forma desproporcional a população vulnerável e as áreas mais afastadas da rede, onde a falta d’água se torna rotina”, afirma Hugo de Oliveira, ex-diretor da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp).
“A adoção dessa política demonstra uma clara priorização dos interesses privados de rentabilidade em detrimento da sustentabilidade hídrica e da equidade social”, ele continua. “O desafio que se impõe à Sabesp é garantir que a montanha de investimentos prometida chegue às periferias e que a sede por dividendos – previstos para atingir até 100% do lucro em 2030 – não se sobreponha à obrigação de fornecer água justa e ininterrupta para quem tem a menor capacidade de pagar.”