Pouco mais de 100 km separam Presidente Kennedy, no Espírito Santo, de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Muito diferentes em extensão territorial, tamanho da população e vocações econômicas, o que aproxima os dois municípios é o dinheiro do petróleo. Desde o fim do século passado, os cofres públicos de Campos e Kennedy vêm sendo irrigados com cifras bilionárias de royalties e participações especiais (PEs), vinculados à exploração petrolífera na Bacia de Campos.
O que também os conecta é a dificuldade de fazer com que esse aumento vultoso de arrecadação se transforme em melhorias efetivas na vida de seus habitantes. A Agência Pública percorreu as duas cidades em maio de 2025 em busca de entender qual o impacto prático das receitas petrolíferas no desenvolvimento socioeconômico dos campeões em recebimentos desses recursos. Kennedy é a cidade que mais recebeu recursos per capita e Campos é a maior recebedora em valores absolutos.
O que encontramos foi a persistência de velhos problemas comuns a várias cidades brasileiras. Falta de saneamento básico, queixas frequentes sobre atendimento médico, educação pública deficiente, recorrentes casos de corrupção e manutenção de profundas desigualdades sociais dão a tônica de ambos os municípios, apesar de ambos terem muito mais recursos para gastar do que se vê Brasil afora.
Entre moradores das duas cidades, a percepção é de que a riqueza do petróleo não chegou para todos. Se permitiu que as prefeituras locais despejassem dinheiro em obras questionáveis e investissem em programas sociais, colhendo dividendos eleitorais com isso, os royalties não serviram para tirar boa parte da população da miséria – 25% dos kennedenses e dos campistas recebem menos de R$ 218 per capita e estão abaixo da linha da pobreza.
“Presidente Kennedy é um município pequenininho e a arrecadação é altíssima. Falam que a população podia ser a mais rica e eu concordo. Pelo valor que recebe de royalties, era para a cidade estar um ‘brinco’, mas aqui é uma cidade de miséria. Para onde vai esse dinheiro?”, questiona Félix de Jesus, agricultor familiar no município.
Para o aposentado Romero Gomes, morador de Farol de São Thomé, em Campos de Goytacazes, a exploração do petróleo “trouxe mais problemas e os royalties não deram conta de resolver”. “Ao contrário, eles só agravaram e aprofundaram. Para as prefeituras, é como se fosse a herança de um tio distante, que caiu no colo. Não precisa fazer mais nada e, com isso, o desenvolvimento estrutural da região fica renegado. Só que o combustível fóssil tem data de validade”, diz.
A percepção da população é validada por estudiosos do tema. “O aumento orçamentário não se reverteu em justiça nem na mitigação de desigualdades. Nenhuma pesquisa revela alguma melhoria com relação a isso”, analisa o professor da Universidade Candido Mendes (UCAM) Rodrigo Lira, que atua em um programa de pós-graduação referência na pesquisa sobre os royalties do petróleo.
Para moradores locais, o sentimento é o de que as administrações que comandaram os dois municípios ao longo das décadas de bonança petrolífera foram incapazes de tornar as cidades independentes dos poços de petróleo da região, que estão cada vez mais perto de secar. No ano passado a extração na Bacia de Campos foi menos de 50% do que era em 2017.
A contradição não é exclusividade dos dois municípios. A Pública analisou dez indicadores socioeconômicos dos 15 municípios campeões de receitas petrolíferas per capita, como saúde, educação, pobreza e saneamento básico. Na maior parte dos casos, os municípios petrorrentistas estão entre os piores de seus estados. Kennedy está entre as piores cidades do Espírito Santo nos dez indicadores, enquanto Campos tem desempenho apenas intermediário na maior parte dos índices.
E a COP30 com isso?
Os resultados da avaliação feita pela Pública contrastam com o discurso repetido por defensores da exploração do petróleo na foz do Amazonas, que vislumbram no combustível fóssil uma garantia de desenvolvimento para a região Norte do país. A nova fronteira petrolífera é defendida especialmente por políticos do Amapá, que tem hoje o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil e é o estado que abocanharia a maior fatia de royalties da exploração local.
Se o desenvolvimento socioeconômico via petróleo não é garantido, o impacto nas mudanças climáticas é incontestável. O combustível fóssil é, globalmente, o principal responsável pelas emissões de gases do efeito estufa.
Como revelou a Pública em 2023, se todo o petróleo que se estima existir na Margem Equatorial – área que inclui a foz do Amazonas – for queimado, isso emitiria entre 4 bilhões e 13 bilhões de toneladas de gás carbônico (CO2), anulando os eventuais ganhos com desmatamento zero e tornando improvável que o Brasil cumpra suas metas climáticas.
Obras não resolveram problemas estruturais em Presidente Kennedy
O município mais ao sul do litoral do Espírito Santo figura há anos entre os mais ricos do país em PIB per capita e já chegou a ocupar a primeira posição nacional. Entre 1999 e 2024, Presidente Kennedy, que tem cerca de 14,6 mil habitantes, recebeu quase R$ 390 mil por habitante, considerando a população estimada pelo IBGE em 2024.
Ao todo, foram mais de R$ 5,7 bilhões, segundo dados extraídos da plataforma InfoRoyalties, da UCAM, e corrigidos pela inflação. Se permitiram gastos controversos, como shows e outros eventos milionários, os bilhões de reais não serviram para tirar boa parte da população local da miséria – além de ¼ estar abaixo da linha da pobreza, 61% está no Cadastro Único (CadÚnico), que permite acesso a benefícios sociais.
Broken sign says “Welcome to President Kennedy”
“[A prefeitura] não consegue produzir efeitos com o dinheiro, trazer indústria, trazer comércio, trazer estrutura para o povo trabalhar. Eles não querem isso, porque enquanto a população estiver debaixo da asa, eles vão estar mandando. Todo mundo é funcionário da prefeitura. Se acabar o dinheiro dos royalties, já era, a cidade quebra de virar pó em dois anos”, opina um pescador local, que preferiu não se identificar.
No auge, no meio da década passada, o montante recebido anualmente superou R$ 500 milhões. Nos últimos anos, a redução da produção na Bacia de Campos fez com que o valor caísse, ficando em torno de R$ 200 milhões. Mas, o município segue com um dos maiores orçamentos por habitante do país, superior ao de cidades quase dez vezes maiores em população, como Balsas (MA) e Conselheiro Lafaiete (MG).
O caixa robusto coloca Kennedy na dianteira dos investimentos públicos. Em 2023, nenhuma prefeitura capixaba destinou mais dinheiro per capita para a educação básica (R$ 45,5 mil por aluno, três vezes a média dos municípios capixabas), para a saúde (R$ 5,4 mil por habitante, quase quatro vezes a média) e para a infraestrutura social, que inclui urbanismo e saneamento básico (R$ 8,7 mil por pessoa, mais de dez vezes a média).
A bonança do petróleo permitiu certos “luxos” difíceis de encontrar em outros municípios de mesma dimensão – e algumas contradições também. Muitos equipamentos públicos passaram por um “banho de loja” às vésperas do último ciclo eleitoral, mas os problemas do dia a dia estão longe de serem sanados.
Hospital de Kennedy foi reformado às vésperas da última eleição, mas é preciso rodar até 50 km até municípios vizinhos para realizar exames, passar com especialista ou fazer um parto
A obra do hospital local – na verdade, uma unidade de pronto-atendimento –, por exemplo, foi entregue em maio de 2024, depois de anos em situação precária. Mas os moradores ainda não têm acesso a atendimentos de maior complexidade no próprio município, como ressonância, ultrassom, ou consulta com especialistas. Em geral, a população tem de se deslocar até Cachoeiro do Itapemirim, a 38 km, para conseguir esse tipo de atendimento.
“Se precisar fazer um parto, não tem [atendimento]. Tem vários casos de partos no meio do caminho [para outras localidades, em trajetos de até uma hora]”, conta um outro morador de Kennedy que também preferiu não se identificar.
Mesmo com o montante recorde destinado à área, Kennedy teve a 6ª pior taxa de óbitos evitáveis ajustada pela idade e a 13ª pior taxa de mortalidade infantil no estado em 2023, segundo dados do Ministério da Saúde.
Na educação, o cenário é semelhante: investimentos que não se refletem em melhorias. As escolas estão entre as estruturas reformadas recentemente, há distribuição de kit de material escolar – com direito a livro de pelúcia para as crianças – e concessão de bolsas para que jovens façam faculdade em outros municípios. Mas os indicadores da área continuam ruins.
No Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dos primeiros anos do ensino fundamental, a média de Kennedy foi de 5,5, a quarta pior nota do estado em 2023. Mantenópolis, que teve o melhor desempenho entre os municípios capixabas, com 7,7, gastou menos de um terço do que Kennedy investiu.
Nos últimos anos do fundamental, o desempenho foi menos pior, mas ainda bem abaixo da média. A nota alcançada por Kennedy foi 4,8, a 45ª entre 63 municípios com resultados. Itaguaçu e Muniz Freire, que dividem a primeira posição, com 6,1, também tiveram investimentos de cerca de um terço do de Kennedy.
O município tem ainda 12,63% da sua população analfabeta, segundo dados do Censo 2022, e está entre os dez piores do Espírito Santo nesse quesito.
Para moradores ouvidos pela reportagem, mesmo o programa de bolsas, avaliado positivamente, acaba por esbarrar em um problema crônico da cidade: a falta de oportunidades de emprego no local. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) de fevereiro de 2025, havia 1.378 empregos com carteira assinada no município, o que representa menos de 10% da população.
Outra distorção aparece na praia de Marobá, a 20 quilômetros do centro. A orla está entre as regiões revitalizadas no ano passado, inclusive com a duplicação de vias, ao custo de mais de R$ 12 milhões bancado pelo dinheiro do petróleo. O local é, em tese, a principal atração local para os visitantes, mas surpreende pela ausência de estrutura turística e de turistas.
Prefeitura gastou milhões para asfaltar a orla da praia de Marobá, mas fluxo de turistas no local é quase inexistente
Por outro lado, o saneamento básico não chegou a Marobá e a população precisa recorrer à água mineral. “Aqui a água era muito ruim. Tinha dia que estava ferro puro mesmo, horrível. Hoje, está melhor, mas ainda não é usada para beber, muita gente não faz café nem comida com a água”, relata Renata Oliveira, secretária da Colônia Z14 de Pesca de Presidente Kennedy.
A cidade ocupava a penúltima e a antepenúltima colocação estadual em acesso adequado à esgotamento sanitário (menos de 4% da população) e à água (menos de 25%), segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2022.
Sem outra fonte de renda na cidade, população depende do emprego público
Em Presidente Kennedy, a ligação entre boa parte da população e o governo municipal é quase umbilical. Além da distribuição de auxílios, muitos kennedenses trabalham ou têm familiares atuando no poder público, o principal empregador local. Na cidade, há 151 funcionários da administração pública para cada mil habitantes, e o gasto com a área é quase dez vezes a média estadual.
Por conta disso, muitas pessoas abordadas pela reportagem não quiseram gravar entrevista. Entre quem concordou em conversar, a maior parte preferiu falar anonimamente.
O agricultor familiar Félix de Jesus, do projeto de assentamento (PA) José Marcos de Araújo, citado no início da reportagem, foi uma das poucas pessoas que aceitou conversar abertamente. Militante do MST há décadas, ele conhece a realidade do campo de boa parte do Espírito Santo e questiona a situação de Presidente Kennedy.
Ele conta que não tem acesso pleno à energia elétrica mesmo após um ano assentado e o acesso à água no assentamento é por meio de poços artesianos, feitos com recursos próprios. As horas-máquina prometidas pela administração municipal também não têm sido cumpridas, ele reclama.
“Aqui na área eles não olham a gente com bom gosto, atendem mais o grande pecuarista do que os pequenos agricultores. A gente só faz parte do município de Presidente Kennedy na hora que é para votar, porque cada um tem seu título”, diz o assentado.
Segundo ele, os moradores do assentamento não têm acesso a benefícios sociais, não podem expor seus produtos na feira semanal da cidade, tampouco recebem o ticket-feira distribuído pela prefeitura.
Questionada sobre essas e outras questões, a prefeitura de Kennedy afirmou que não iria se manifestar.
Renata Oliveira também destaca problemas para a comunidade de pescadores. Não há atracadouro nem estrutura para a pesca na cidade, e boa parte dos pescadores acaba tendo que deixar seus barcos em municípios vizinhos. “Existe uma secretaria, mas não existe nenhum programa relacionado à pesca aqui. A prefeitura deu uma melhorada na infraestrutura [da cidade], mas a gente não vive disso, a gente vive de realidade”, diz.
O assentado Félix de Jesus e a secretária da colônia de pescadores Renata Oliveira: para eles, royalties não resolveram problemas de Kennedy
Segundo o Portal da Transparência do município, o montante destinado para “ações de apoio à pesca” em 2025 é de R$ 10 mil, cerca de 0,04% do orçamento da Secretaria de Desenvolvimento da Agricultura e Pesca para o ano. Nada foi aplicado até o momento.
Nos últimos anos, o município também frequentou o noticiário por conta de escândalos de corrupção, mau uso do dinheiro público e imbróglios eleitorais. Dois prefeitos foram presos e outro tentou a reeleição para um terceiro mandato.
Campos dos Goytacazes é exemplo de como não usar royalties do petróleo
A dependência econômica dos royalties também é a realidade de Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, o município que mais recebeu rendas petrolíferas no Brasil desde o fim dos anos 1990.
De 1999 até 2024, foram mais de R$ 37 bilhões entre royalties e participações especiais (PEs) vinculados à exploração petrolífera na Bacia de Campos – que tem esse nome justamente por conta do município. Em média, foi quase R$ 1,5 bilhão ao ano, segundo dados da plataforma InfoRoyalties corrigidos pela inflação. No auge, beirou os R$ 3 bilhões.
Mesmo com as cifras bilionárias, mais de 40% dos pouco mais de 500 mil habitantes de Campos está no Cadastro Único (CadÚnico). Os indicadores de saúde são ruins e os de educação e emprego são apenas medianos.
Para especialistas e moradores ouvidos pela reportagem, Campos é um exemplo de como não se aplicar royalties petrolíferos. “O legado [dos royalties] é tão oculto que fica até difícil de enxergar. Não houve um progresso significativo, de mudar da água para o vinho. Houve pequenos avanços aqui, outros ali, mas pelo tempo mesmo, como toda cidade cresce”, afirma o líder comunitário Christiano General, nascido e criado no município.
“É preciso entender qual a vocação da cidade, para fazer um planejamento [com o dinheiro do petróleo] que realmente se sustente, surtindo efeitos positivos. Não houve nada disso. Nós perdemos o bonde da história, [a administração pública] tomou péssimas decisões”, diz o pesquisador Rodrigo Lira, da UCAM.
Para lideranças comunitárias de Campos, cidade deveria ‘estar bem melhor’ do que está após décadas de royalties
Única praia de Campos, Farol mal viu a cor dos royalties
Campos de Goytacazes é um município grande, o maior do Rio, com 3,3 vezes a área da capital, mas tem uma faixa litorânea de apenas 30 km. A praia de Farol de São Thomé, na porção sudeste da cidade, está a 50 km do centro da cidade e tem quase 30 mil habitantes, 6% da população de Campos. Mesmo com a área diminuta, o bairro é responsável por boa parte da riqueza de Campos: é por causa dessa faixa litorânea que o município recebe os royalties e participações especiais.
Se o risco de que a região de Farol de São Thomé seja atingida por um vazamento de óleo das plataformas de petróleo é um dos principais argumentos para justificar os montantes bilionários que a prefeitura de Campos recebe, a realidade do local revela que o recurso pouco percorreu o trajeto da prefeitura até o mar.
Para chegar da praia ao centro, onde muitos dos moradores trabalham, é sempre uma dificuldade. É preciso recorrer às vans, que começaram a operar irregularmente e hoje prestam o serviço por concessão, mas com horários restritos. Não é raro que trabalhadores fiquem “presos” no centro, sem conseguir voltar para casa, ou que percam consultas médicas e outros compromissos por não conseguirem pegar o transporte.
Os moradores de Farol ainda não têm acesso a esgotamento sanitário e precisam instalar fossas sépticas por conta própria. A limpeza urbana e a coleta de lixo são precárias e é preciso reforçar o repelente a todo momento para não ser vítima dos mosquitos que se multiplicam por quase toda a região.
Os pescadores, que compõem boa parte da mão de obra local e afirmam ser diretamente atingidos pelas bases de exploração petrolífera, reclamam da falta de apoio por parte da prefeitura. Não há porto nem atracadouro e os barcos são puxados e empurrados para o mar com o uso de tratores, uma prática exclusiva da praia campista.
Segundo um pescador local, a prefeitura bancou essa “puxada” por um único mês, mais de 20 anos atrás, mas o auxílio nunca mais se repetiu. Eles gastam, atualmente, R$ 150 reais por dia somente com os tratoristas.
Mesmo a educação, que recebe parte significativa dos investimentos dos royalties por força de lei, sofre com a falta de estrutura em Farol. Na Escola Municipal Cláudia Almeida Pinto de Oliveira, a educação física é realizada há uma década na rua em frente ao colégio, sendo interrompida toda vez que um carro precisa passar, porque o teto e a estrutura da quadra da escola estão danificados há anos.
Nas duas escolas municipais de Farol de São Thomé, quadras esportivas estão com avarias estruturais graves
A situação encontrada na região vai ao encontro dos números da educação de Campos. No Ideb de 2023, a cidade registrou números medianos. Nos anos iniciais do ensino fundamental, ficou na 49ª posição entre os 92 municípios fluminenses; nos anos finais, ficou em 50º dentre os 80 com dados disponíveis.
A região possui uma Unidade Pré-Hospitalar (UPH), mas os moradores reclamam da qualidade e das restrições de atendimentos disponíveis no local. Em casos mais complexos, é necessário encarar os 50 quilômetros até o centro e são vários os relatos de familiares e amigos que acabaram morrendo enquanto esperavam atendimento.
“Falta saneamento, falta transporte, a saúde é um descalabro. Não temos um cinema, um teatro, uma biblioteca decente. Quando muito, chega no verão e o prefeito contrata um trio elétrico com shows e sobe em cima do caminhão de som para fazer sua campanha eleitoral”, resume o aposentado Romero Gomes.
“A gente poderia estar vivendo uma situação bem melhor”
Em 2023, os royalties do petróleo permitiram que Campos investisse mais de R$ 1 bilhão em saúde, quase ⅓ de seu orçamento. A cifra supera o valor destinado por municípios bem mais populosos do estado, como São Gonçalo e Nova Iguaçu, ficando atrás apenas de Duque de Caxias e da capital. Os investimentos contrastam, no entanto, com os relatos da população.
Enquanto moradores reclamam da saúde, mesmo com orçamento bilionário, Campos tem UBSs abandonadas ao redor da cidade
No bairro Veredas, a construção de uma unidade básica de saúde (UBS) chegou até as etapas finais, mas a obra acabou abandonada pela prefeitura e está aberta para quem quiser entrar – há até fezes de cavalo no local. Na Fazendinha, o posto de saúde reformado em 2011 foi fechado sem explicações e a população precisa se deslocar para outros bairros, muitas vezes a pé ou de bicicleta.
“Em casos de emergência, não dá pra chegar. Esse postinho faz tanta falta, que aqui já morreram quatro pessoas por falta de socorro dentro de casa, porque não tem ambulância. Minha irmã morreu dentro de casa, deram tanto fundamento [para não vir atender], que quando chegaram já estava morta. A mesma coisa com a minha avó”, relata Joseana, moradora da Fazendinha, que pediu para não ter o sobrenome publicado
A falta de postos de saúde nos bairros acaba sobrecarregando os hospitais da cidade, como o Ferreira Machado, que também recebe pacientes de outros municípios da região. Os filantrópicos, que poderiam amenizar a situação, reclamam uma dívida de mais de R$ 100 milhões em repasses não pagos pela prefeitura – que questiona o valor – e já operam em capacidade reduzida.
Os indicadores de saúde de Campos avaliados pela Pública estão entre os piores do Rio de Janeiro. Em 2023, o município registrou a 12ª pior taxa de mortalidade infantil e foi o 16º pior no índice de mortes por causas evitáveis ajustado pela idade, dentre os 92 municípios fluminenses.
“A minha cunhada sofreu um acidente doméstico. Estourou vidro, caiu no pé dela e rompeu um tendão. Ficou no [Hospital] Ferreira Machado por dez dias, o médico deu alta do jeito que ela entrou e ela perdeu a transferência para outro hospital. Lá não fazia cirurgia porque estava faltando insumo. Tem um monte de gente assim jogada no Ferreira Machado”, conta José Ricardo, líder comunitário do Novo Jóquei e porteiro da escola local.
No bairro, apenas alguns quilômetros distante da área mais nobre do município, uma parcela da população não tem acesso a esgoto encanado e sofre com asfaltamento precário e constantes alagamentos.
Parte do bairro recebeu um projeto de habitação popular da gestão de Rosinha Garotinho, que esteve à frente do município entre 2009 e 2016, em um raro caso de iniciativa do tipo bancada com recursos municipais, justamente graças à bonança dos royalties. As “casinhas da Rosinha”, como são conhecidas, têm estrutura melhor que as demais casas do bairro, mas seus moradores também sofrem com problemas comuns aos de cidades bem mais pobres.
Não há espaços de lazer, a presença do tráfico de drogas é crescente, o acesso a transporte público – uma reclamação recorrente no município – é escasso e a educação promovida na escola local é precária.
Mesmo com caixa mais robusto que cidades mais populosas, indicadores de educação em Campos estão abaixo da média estadual
“Tem adolescente saindo do quinto pro sexto ano [do ensino fundamental] sem nenhuma base. Os políticos que passaram na nossa cidade durante esse período [dos royalties] não pensaram no amanhã, jogaram muito dinheiro fora. A gente poderia estar vivendo uma situação bem melhor”, afirma José Ricardo, que promove aulas de reforço a preço populares para as crianças do bairro na ONG que fundou.
“Venda do futuro” e calotes milionários
Um dos exemplos mais emblemáticos de mau uso das rendas petrolíferas em Campos ocorreu na gestão de Arnaldo Vianna (de 1998 a 2004). Além de benfeitorias lembradas até hoje pela população, shows milionários e inchaço da máquina pública bem no início do boom petrolífero, o governo de Vianna foi marcado pela criação de um fundo municipal que pretendia usar parte do dinheiro dos royalties para alavancar o desenvolvimento da cidade – mas que terminou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
O Fundo de Desenvolvimento do Município de Campos (Fundecam) distribuiu alguns bilhões de reais, mas a falta de critérios e de gestão rendeu calotes que beiravam os R$ 600 milhões à época da investigação da Câmara Municipal. Os contratos foram fechados de maneira precária, o que dificultou a recuperação do dinheiro.
“Algumas empresas pegaram esses empréstimos com a intenção de dar calote, pegaram volumes muito grandes de dinheiro e pagaram duas, três prestações. E teve caso de empresa que não pagou e ainda assim conseguiu pegar outro empréstimo”, conta o ex-vereador Jorginho Virgílio, presidente da CPI. O relatório, entregue aos órgãos responsáveis, não resultou em responsabilização até o momento.
Arnaldo Vianna, que criou o Fundecam, é um dos vários prefeitos eleitos em Campos dos Goytacazes que tiveram vínculo com a família Garotinho, sinônimo de política no município. O próprio Anthony Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro, comandou o município nos anos 1990, antes de as receitas petrolíferas dispararem. Vianna foi seu vice, assumiu a prefeitura quando Garotinho saiu para concorrer ao governo do estado, e depois rompeu com a família.
Depois de Vianna e de um período conturbado, que teve prefeito cassado e eleição suplementar, os Garotinho voltaram ao poder, dessa vez com Rosinha. Em seu primeiro mandato, no auge da bonança do petróleo, o caixa robusto permitiu que a gestão fizesse obras de grande proporção. É o caso do Centro de Eventos Populares Osório Peixoto (Cepop) – o sambódromo de Campos –, que custou R$ 100 milhões e hoje fica às moscas na maior parte do tempo; e da Cidade da Criança, a “Disney goitacá”, que custou R$ 17 milhões.
R$ 100 milhões: sambódromo de Campos teve fiação roubada e fica às moscas na maior parte do ano
A maré, no entanto, virou na metade do segundo mandato, quando os desdobramentos da Operação Lava Jato afetaram as contas da Petrobras e o preço do barril de petróleo despencou. Isso fez com que o montante de receitas petrolíferas que Campos dos Goytacazes recebia diminuísse significativamente.
Às vésperas da eleição municipal de 2016, com um custeio altíssimo e sem conseguir manter o funcionamento da máquina pública em um cenário de redução da arrecadação com o petróleo, a então prefeita resolveu pegar empréstimos com a Caixa Econômica Federal, dando como garantia royalties e participações especiais – no que ficou conhecido como “venda do futuro”.
Com o caixa encolhido, os Garotinho não fizeram o sucessor e o então vereador Rafael Diniz (PPS), de fora dos círculos tradicionais da política campista, conseguiu se eleger. Com os royalties ainda em baixa, participações especiais zeradas e um empréstimo milionário para pagar, ele terminou o governo extremamente mal avaliado e a família Garotinho voltou ao poder, dessa vez com Wladimir, filho dos ex-governadores, que está em seu segundo mandato.
A manutenção da influência do grupo político ocorre a despeito da presença frequente nas manchetes policiais. Nos últimos anos, Rosinha e Anthony foram presos algumas vezes, parte delas por denúncias relacionadas a Campos dos Goytacazes, incluindo compra de votos com o Cheque Cidadão, um programa social da prefeitura, e superfaturamento no programa de habitação popular conduzido na gestão Rosinha.
Para muitos campistas, a lembrança do governo de Diniz soa como um prenúncio do que pode acontecer em um futuro sem dinheiro do petróleo.
“Se os royalties cessarem dentro de 10 anos, é um cenário de terra arrasada”, afirma Jorginho Virgílio, que faz questão de frisar que é favorável ao recebimento dos recursos, mas contrário à maneira como eles vêm sendo aplicados. “Eu fui vereador no período do Rafael Diniz, em que os royalties foram lá embaixo. O município vivia um caos, era dinheiro contado para pagar funcionalismo, saúde, fazer limpeza e mais nada, não conseguia fazer uma obra”, diz.
“Nós estamos perdendo nossos jovens”: para Romero Gomes e Cláudia Barreto, dinheiro do petróleo não vai deixar legado em Farol de São Thomé
Para Cláudia Barreto, diretora da escola municipal de Farol de São Thomé, no entanto, o fim do dinheiro do petróleo que se aproxima pode ser uma oportunidade. “Campos vai ter que aprender na marra. Teve [os royalties] e não soube usar, gerou uma dependência ruim. Vai ter que se reinventar, mas já vivemos sem royalties antes”, opina Barreto, que é ativista na Associação Regional Núcleo de Vigília Cidadã (ARNVC), organização da sociedade civil que promove controle social sobre as rendas petrolíferas na região da Bacia de Campos.
A prefeitura de Campos de Goytacazes também foi procurada pela Pública, chegou a dizer que estava providenciando uma resposta, mas não se pronunciou até a publicação do texto. A reportagem será atualizada se as gestões se manifestarem.