O pleito por uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), dedicada a investigar os crimes da ditadura de 1964 contra os povos originários, vai avançar mais uma casa no próximo dia 21 de outubro. É nessa data que será entregue, a autoridades do governo brasileiro, uma proposta para regular a criação e o funcionamento do organismo, previsto nas recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de 2014, mas até hoje não concretizado.
A proposta que será entregue é uma minuta, isto é, não tem poder de lei. Na prática, ela funciona como uma sugestão que pode ser aceita ou não pelo Governo Lula. É ao governo federal que caberá dar o próximo passo, analisando o documento e formulando um projeto de lei, que será depois avaliado pelo Congresso, como ocorreu com a CNV, ou apresentando um decreto.
Segundo a própria Comissão da Verdade de 2014, em seu caderno temático dedicado aos povos indígenas, ao menos 8.350 foram mortos por ação direta ou por inação de agentes do Estado – quase 20 vezes mais do que os considerados mortos e desaparecidos políticos não indígenas. O número, como reconheceu a Comissão, é uma estimativa muito reduzida, já que o organismo investigou apenas dez povos, enquanto o Brasil contabiliza mais de 300.
Além de assassinatos, os povos indígenas foram vítimas de remoções forçadas, tortura, perseguição, intimidação, cárcere privado, estupros e até sequestro de crianças, entre outras violações de direitos humanos que a futura CNIV viria a investigar. Para lideranças indígenas e especialistas, a falta de apuração e responsabilização em relação aos crimes da ditadura contra povos originários contribui para a continuidade de violações de direitos até hoje, incluindo a tese do Marco Temporal.
A proposta foi formulada pelas organizações indígenas e da sociedade civil que compõem o Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça (Fórum JTPI), criado em setembro do ano passado justamente com o objetivo de dar tração à demanda, e que teve mais de 60 adesões. A entidade é encabeçada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e pelo Observatório de Direitos e Políticas Indígenas da Universidade de Brasília (Obind-UnB).
“O ponto a destacar na minuta é o protagonismo dos povos indígenas, tanto no processo de escolha dos casos que devem ser examinados, quanto na indicação de quem devem ser os membros da Comissão”, aponta um dos idealizadores do Fórum, o procurador da República Marlon Weichert. “Acho que é uma grande mudança, porque aqui nós não estamos falando de um processo de justiça de transição ‘sobre’ os povos indígenas, nós estamos falando de um processo de justiça de transição ‘de’ e ‘para’ os povos indígenas”, diz.
Por que isso importa?
- A criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade é uma forma de investigar e documentar as ações violentas do regime militar contra os povos originários, o que pode impactar políticas públicas atuais como as demarcações de terras e o Marco Temporal.
Comissão Nacional Indígena da Verdade tem apoio de organismos internacionais
Ao longo deste ano, as entidades que compõem o Fórum promoveram sete seminários regionais com as organizações de base ligadas à Apib, levantando mais de 80 casos de povos que tiveram direitos violados. A ideia é que a metodologia de trabalho utilizada nos seminários seja aproveitada em uma futura Comissão.
Também receberam o apoio de organismos internacionais, como o do Relator Especial da ONU para a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não recorrência. Parte dos avanços obtidos pela entidade foram relatados em uma carta divulgada nesta semana.
A minuta será entregue em uma cerimônia convocada pelo Fórum, que vai acontecer no Centro Cultural de Brasília no dia 21, terça-feira. Além do presidente Lula (PT), foram convidadas as ministras Sonia Guajajara (Povos Indígenas), Marina Silva (Meio Ambiente), Anielle Franco (Igualdade Racial), Macaé Evaristo (Direitos Humanos), o ministro Márcio Macêdo (Secretaria Geral da Presidência) e representantes do Procuradoria-Geral da República e do Ministério da Justiça, entre outras autoridades.
“Até o momento, tudo o que nós pleiteamos para o atual governo não foi atendido. Foram muito poucas entregas no tema da demarcação, da proteção das terras indígenas e em colocar fim à criminalização e à violência contra os povos.. A nossa expectativa é que o Estado brasileiro dê essa resposta aos povos indígenas [com a criação da CNIV], para que o Brasil realmente seja uma sociedade plural, democrática, de direitos respeitados”, afirfma Paulino Montejo, assessor político da Apib e um dos idealizadores do Fórum.
“O Estado brasileiro tem uma dívida enorme com os povos indígenas e com a própria sociedade, que precisa conhecer essa história a partir do olhar dos povos originários e sobre o que tem sido a resistência e a sobrevivência dessas populações contra toda forma de violação de direitos humanos”, diz Weichert.