Quando a luta pesa demais, o quilombola Benedito da Paixão Santos, o Bio, encontra refúgio na mata. É nas áreas ainda preservadas da Ilha de Boipeba, no sul da Bahia, que ele se reconcilia com o silêncio e a paz. Ali, conta, a natureza é guia e companhia. “As pessoas tratam a natureza como um ser sem importância. Pra mim, é o contrário, é ela quem me dá forças e me diz como prosseguir. Fico lá em silêncio, ouvindo o que cada ser tem pra me dizer”, afirma. Mas chegar a esse abrigo tem se tornado cada vez mais difícil.
A ilha, que integra o município-arquipélago de Cairu, é hoje um dos principais destinos turísticos da Bahia. Sua vida comunitária se organiza em quatro núcleos — Velha Boipeba, Monte Alegre, Moreré e Cova da Onça —, reconhecidos como comunidades tradicionais. Esses territórios compartilham áreas de pesca, manguezais, matas e rotas de extrativismo, que garantem a subsistência por meio da pesca artesanal, da agricultura de pequena escala e da coleta de frutos. Práticas transmitidas entre gerações que estruturaram a vida coletiva da ilha, mas hoje estão diretamente ameaçadas pelo avanço das cercas.
Ao longo de 20 quilômetros de litoral, praias, trilhas e até manguezais vêm sendo progressivamente fechados por empreendimentos turísticos e imobiliários. Cercas de arame, guaritas e seguranças passaram a controlar os acessos, transformando áreas coletivas em espaços de uso restrito. “Boipeba virou um curral. Cercaram nossos caminhos, nossas fontes de água, os lugares de pesca. Querem acabar com a nossa cultura e nos transformar em mão de obra barata para resort e campo de golfe”, denuncia Bio, com a voz embargada.
Esse processo ganhou novos contornos em 2020, quando o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) concedeu à Perville Engenharia e Empreendimentos licença prévia para o projeto Encantos de Boipeba.
Aprovado sobre 227 hectares — cerca de 3% da ilha —, o loteamento reúne, conforme a Portaria nº 20.132/2020 do Inema e o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) da própria empresa, áreas conhecidas nos registros cartoriais como as antigas fazendas Boipeba, Tassimirim e Cueira, além de um trecho ligado ao Rio Oritibe. É justamente no coração turístico e comunitário da ilha que o projeto se instala, sobrepondo-se a rotas tradicionais de pesca, coleta de frutos e circulação entre vilarejos.
Segundo o parecer técnico do Ministério Público Federal sobre as cercas da Perville (de 2023), esses fechamentos configuram grilagem em terras da União, degradação ambiental e violação de direitos quilombolas. A violação ocorre porque a empresa avançou sobre bens públicos, áreas de preservação permanente e tradicionais sem realizar a consulta prévia, livre e informada às comunidades, como determina a Convenção 169 da OIT, e porque bloqueou o acesso a espaços essenciais para a subsistência da comunidade.
Apesar dos documentos aos quais a reportagem teve acesso tratarem somente da Perville, moradores e lideranças locais relatam que pequenos e médios investidores — incluindo estrangeiros — também erguem barreiras para controlar áreas valorizadas pelo turismo.
“Não é só a Perville. Junto com ela existem muitos outros empresários e microempreendedores que compraram terras e querem manter as cercas onde estão”, disse à Mongabay, sob condição de anonimato, um servidor público da região. “Em Moreré, por exemplo, aparecem pousadas arrendadas e conflitos constantes, porque essas áreas ficam justamente na frente das comunidades nativas. O problema é coletivo: são vários interesses privados avançando sobre o território.”
O Relatório de Conflitos Socioambientais do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadora (CPP), de 2024, mostra que, em diferentes pontos da ilha, outros empreendimentos e investidores privados reproduzem o mesmo padrão de expropriação, erguendo cercas que restringem usos coletivos e redesenham o território. Na prática, a soma desses interesses tem encurtado caminhos ancestrais e limitado usos que sustentaram a vida quilombola e pesqueira de Boipeba por gerações. Casos semelhantes já foram denunciados pela Mongabay, como o condomínio em área de Mata Atlântica na ilha, revelando uma especulação que avança de maneira fragmentada, mas constante.
Quando o Estado fecha os caminhos
Se a pressão de empresários e investidores privados já redesenha a ilha com cercas e guaritas, a situação se agrava ainda mais quando os órgãos públicos deixam de agir como barreira de proteção. de licenciamento conduzido pelo Inema para o projeto Encantos de Boipeba.
Para os procuradores, o órgão ambiental estadual, em vez de proteger, passou a atuar como “um obstáculo à defesa do território”, abrindo caminho para empreendimentos em terras da União e áreas de uso tradicional sem que as comunidades quilombolas fossem sequer consultadas, em desrespeito à Convenção 169 da OIT.
No início de 2025, o MPF voltou a se manifestar e pediu não apenas a anulação da licença concedida à Perville Engenharia, mas também a suspensão imediata de novas autorizações em comunidades tradicionais de Boipeba. No documento, os procuradores alertam que liberar empreendimentos imobiliários em áreas públicas federais e de importância cultural significa “comprometer de forma irreversível a integridade ecológica e social da ilha”.
A crítica se estende também à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), responsável por zelar pelas terras federais. Embora o órgão reconheça que se trata de áreas da União, o MPF aponta que sua postura tem sido de omissão: ao não agir com firmeza contra as cercas erguidas em praias, manguezais e trilhas comunitárias, a SPU permite que interesses privados se apropriem de bens públicos. Essa ausência de ação alimenta um jogo de empurra entre esferas estadual e federal que, na prática, legitima a expropriação da ilha.
A marisqueira Soélia Evangelista dos Santos, que hoje sustenta a família com uma barraca de praia, traduz em palavras o cotidiano de confinamento: “Todo lugar que a gente anda tem cerca. Parece que somos bois sendo adestrados. A cada ano, avançam mais um metro. Quando a maré de março e abril sobe, já não temos por onde passar. Isso é um crime. Tiram da gente o que é vida e trabalho”, denuncia.
O Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) reforça essa percepção em nota enviada à Mongabay: “Os territórios das comunidades quilombolas e pesqueiras da Ilha de Boipeba estão todos cercados pela especulação imobiliária, prejudicando a vida e a tradicionalidade desse povo. As cercas impedem que as pessoas possam circular livremente em suas comunidades, prejudicando a pesca e o extrativismo.” O conselho lembra ainda que os muros obrigam moradores a percorrer longas distâncias até seus locais de trabalho, o que desestimula práticas ancestrais como a pesca artesanal e a coleta de frutos da mata.
A organização reconhece, contudo, que resistir não é tarefa simples: comunidades locais enfrentam grupos empresariais poderosos, responsáveis por ameaças, perseguições e até pelo afastamento de lideranças de seus territórios.
Inema e SPU foram procurados pela reportagem, mas não responderam até o fechamento deste texto.
A chegada do magnata
Boipeba, uma das ilhas do município de Cairu — um dos dois únicos municípios-arquipélago do Brasil, ao lado de Ilhabela (SP) —, carrega séculos de resistência. Colonizada desde o século 16, tornou-se território de sobrevivência para comunidades quilombolas e pesqueiras, que transmitiram entre gerações atividades de pesca artesanal, mariscagem e extrativismo de frutas nativas como a mangaba – fruto símbolo da região. Para quem nasceu e cresceu ali, a ilha nunca foi apenas um destino turístico, mas um espaço de liberdade e sustento coletivo.
Essa liberdade começou a ser ameaçada nos anos 1980, quando o empresário italiano Fabio Perini, magnata do setor de papel e fundador da Perville, desembarcou em Boipeba. Sua chegada marcou o início de um processo de expropriação silenciosa: segundo os moradores, terras de uso coletivo foram cercadas, acessos tradicionais bloqueados e comunidades passaram a se sentir estrangeiras em sua própria casa.
Empreendimentos ligados ao empresário italiano não se limitam ao projeto Encantos de Boipeba. Um exemplo é a Villa Pontal, casa de luxo inserida em uma fazenda de 3.800 hectares, com 12 quilômetros de praia considerados “particulares” e até aeródromo, localizada em um pontal de areia que conecta rio e mar, na vizinha Ilha de Tinharé, também em Cairu.
Bio traduz esse processo em memórias de perda. “As áreas onde a gente era livre para pescar, plantar, colher nossas frutas, até as fontes de água cristalina, tudo isso foi cercado. Era de primeira, a gente escolhia em qual fonte queria beber. Hoje não existe mais. Tiraram o nosso direito de ir e vir.” Para ele, até o deslocamento cotidiano se tornou um desafio: “Vivo do turismo, da pesca, do artesanato e da defesa do nosso quilombo. Mas cercaram o que nos sustenta e nos identifica.”
Ao erguer cercas nesses locais, diz o MPF em denúncia à qual a Mongabay teve acesso, a Perville não apenas restringiu a circulação das comunidades tradicionais como também provocou danos ambientais, destruindo vegetação nativa e comprometendo o equilíbrio de ecossistemas costeiros fundamentais para a pesca e a mariscagem. Para os procuradores, essa prática, somada à ausência de consulta prévia às comunidades, reforça a violação de direitos fundamentais e aprofunda a violência contra modos de vida historicamente estabelecidos na ilha.
A Mongabay tentou contato com a Perville por e-mail, mensagens de WhatsApp e ligações telefônicas, mas não obteve resposta.
Entre o turismo e a grilagem
O cerco também afeta quem vive do turismo de subsistência. Joelma Maria Coelho Barreta, quilombola e dona de uma pequena barraca de praia, diz que as cercas alongaram trajetos e espantam visitantes: “O acesso, o principal, é o que nós não temos. Antes os turistas cortavam caminho andando da vila até a praia. Hoje precisam dar uma volta enorme ou pagar R$ 25 de quadriciclo; muitos desistem”, explica.
Ela recorda a “terra da mangaba” e a frustração de não poder mais oferecer o suco que marcava a identidade local: “Os clientes pedem mangaba e nós não temos. Era a fruta nativa que dava identidade à ilha. Agora está cercada. Viver de forma simples seria poder voltar a pescar siri, catar guaiamum, colher mangaba. Isso é a sobrevivência da comunidade. Hoje não temos mais isso”, desabafa.
A marisqueira Soélia compartilha da mesma angústia. Ela explica que a perda do acesso ao mangue, às frutas e às fontes de água atinge o presente e ameaça o futuro, desarticulando práticas que sustentaram famílias quilombolas e pesqueiras por séculos. Para ela, as cercas não apenas fecham caminhos, mas rompem laços entre gerações: “Eu penso assim: amanhã meu neto vai poder viver o que eu vivi? Não! Não há mais liberdade”.
Bio descreve a Perville como “um câncer que vai matando pouco a pouco”. Ele lembra que as perseguições se intensificaram com o avanço da empresa. “Já dormia pensando no amanhã: será que vou conseguir trabalhar? Muitas vezes enfrentamos polícia armada na praia, como se pai e mãe de família fossem marginais. Tudo para defender empresários.” Para ele, o risco maior é cultural: “Quando chega uma rede hoteleira dessas, ela não só destrói a mata. Acaba também com a nossa cultura, transformando a gente em mão de obra barata”.
Ainda assim, os moradores seguem resistindo em assembleias, reuniões comunitárias e audiências públicas. Bio resume em metáfora: “Me disseram para parar de lutar, porque estou enfrentando tubarões. Mas eu respondi: meu pai é o dono do mar. Se ele agir, nenhum tubarão sobrevive”.
A cada cerca erguida, a ilha perde um pedaço de si. Caminhos que antes levavam ao mangue, às frutas nativas ou às praias abertas terminam em arame farpado e guaritas. Para os moradores, resistir é não deixar que Boipeba seja reduzida à lembrança, uma história contada apenas no pretérito: “era uma vez uma ilha livre”, como me disse um quilombola.