No Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, moradores de uma comunidade colada em uma mina de lítio, entre os municípios de Araçuaí e Itinga, temem que o teto caia sobre suas cabeças. Há semanas não se escuta o barulho da mineradora, mas a preocupação com as rachaduras das casas, causadas por anos de detonações, é maior do que o alívio momentâneo. Ninguém sabe o que vai acontecer daqui para frente.
Os representantes da empresa, que chegou ao Jequitinhonha prometendo mundos e fundos, disseram que as operações retornariam em novembro, mas o prazo não foi cumprido. Os impostos e royalties que viriam com a exploração do lítio, um dos chamados minerais críticos para a transição energética, secaram no último ano. Mesmo o aumento da oferta de empregos sofreu um revés: a Fagundes Construção e Mineração, empreiteira terceirizada, demitiu 500 funcionários e se retirou da operação minerária por falta de pagamento de um montante que chegaria a R$ 115 milhões.
A 1.800 km dali, em um evento paralelo à Conferência do Clima da ONU (COP30), em Belém (PA), a fundadora e CEO da Sigma Lithium, a maior produtora de lítio do Brasil, exalta a responsabilidade social da empresa, afirma ter a mina “mais sustentável do mundo” e diz que a chegada da companhia mudou a história da região, que “não tinha absolutamente nenhuma atividade econômica”.
Por que isso importa?
- A exploração de lítio, mineral crítico para a transição energética, é vista como promissora para o Brasil. Mas a chegada de novas empresas da mineração no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, vendido em Nova York pelo governador Romeu Zema como “Vale do Lítio”, mostra impactos sociais e ambientais que os moradores têm enfrentado sozinhos e o descumprimento de promessas da principal mineradora, a Sigma Lithium. Além disso, revela os limites do mercado e da empresa, que está tendo dificuldades com a queda do preço do lítio, o que impacta também o caixa das prefeituras da região pela redução da arrecadação.
A contradição entre o que a Agência Pública viu e ouviu no Jequitinhonha nos cinco dias em que esteve na região e as promessas e afirmações da CEO Ana Cabral salta aos olhos.
Com ações negociadas nas bolsas de valores de Canadá, EUA e Brasil, a empresa vale mais de 1 bilhão de dólares – apesar de queda vertiginosa nos últimos anos –, aposta suas fichas em marketing e vende seu produto com “preço premium”, ancorada no discurso ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança). Além disso, conta com o apoio político do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que chegou a lançar nos Estados Unidos o projeto “Vale do Lítio”, em 2023, buscando atrair mineradoras para a região. O Jequitinhonha, historicamente habitado por comunidades tradicionais de agricultura familiar, é rico em cultura, artesanato e natureza, mas é também marcado pelo abandono do poder público e por índices socioeconômicos abaixo da média do estado.
Com a chegada da mineradora em 2012, a região viu a oferta de empregos aumentar e a economia se aquecer – ainda que em nível aquém ao esperado –, mas também passou a conviver com a poluição do ar, o barulho ensurdecedor, os danos às casas e ainda os aumentos nos preços, nos aluguéis e na demanda dos serviços de saúde.
Na comunidade de Piauí Poço Dantas, a mais afetada pela operação da Sigma, encontramos moradores decepcionados e sem esperança. Eles reclamam de problemas respiratórios, dificuldade para dormir, contaminação do ribeirão que dá nome ao local e afirmam preferir receber indenização para deixar a região a permanecer sujeitos aos impactos da Sigma.
“Esse povo veio pra cá, a gente estava de boa. Eles podiam ter deixado a gente quietinho, não precisavam ter judiado de nós. Eu não sou contra tirar o minério, mas eles podiam ter legalizado direitinho, ter afastado as pessoas daqui. Acabaram com a minha casa, mas eu não posso reclamar para eles, porque o dinheiro fala mais alto”, desabafa o aposentado Amilcar Viana, morador da região há décadas.
“Eu quero sair, mas eu não tenho condição, nem de consertar minha casa e nem de comprar outra. Só tenho se eles pagarem, porque foram eles que quebraram minha casa. Eu tenho medo que ela caia em cima da gente de noite”, relata a também aposentada Maria de Fátima, conhecida como Dona Fatinha. Sua mãe, que morava na residência mais próxima da pilha de estéril da Sigma, a menos de 100 metros, morreu no início de 2025 aos 94 anos, após contrair uma pneumonia que a família relaciona à poeira da mineradora.
Para a professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) Aline Faé Stocco, o discurso “verde” da mineração não se sustenta. “A sustentabilidade passa pela permanência das pessoas nesses locais. O que a gente vem observando é que essa permanência está insustentável”, aponta Stocco, que integra o Liquit – Vozes do Território, um grupo de pesquisa formado por diferentes universidades públicas de Minas Gerais em consórcio com uma universidade britânica, que tem estudado os impactos da exploração de lítio no Jequitinhonha.
A Pública enviou uma lista de perguntas para a Sigma Lithium, que não respondeu até a publicação. A operação da mineradora segue paralisada.
Transição energética injusta
O boom da exploração de lítio no norte de Minas Gerais não está descolado do contexto global das mudanças climáticas e tem tudo a ver com a necessidade de reduzir a dependência de combustíveis fósseis, como o petróleo, que são a maior fonte de emissão de gases estufa. Substituí-los por fontes renováveis de energia, como eólica e solar, e trocar os automóveis a combustão por veículos elétricos faz parte da solução para conter o aquecimento do planeta – e é aí que o lítio entra na história.
Além de outros usos, como na cerâmica e na indústria farmacêutica, esse elemento químico é componente essencial tanto para as baterias de automóveis elétricos quanto nas utilizadas para armazenar energia de fontes renováveis. Ainda que haja resistência das potências petrolíferas em abandonar os combustíveis fósseis e oscilações na velocidade da transição energética, a tendência é que a demanda pelo lítio cresça nos próximos anos.
No Brasil, que em 2024 teve participação de cerca de 10% na produção mundial, a região apontada como a de maior potencial para a exploração de minérios que contêm lítio é justamente o Jequitinhonha – o que disparou uma corrida pelo “ouro branco”.
Dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), citados em uma perícia feita pelo Ministério Público Federal (MPF), revelam que há quase 1.400 processos minerários ligados ao elemento químico na região. O possível impacto da exploração desenfreada fez com que o MPF recomendasse à ANM e ao órgão estadual de meio ambiente a suspensão e revisão das autorizações de mineração do lítio no Jequitinhonha, já que ao menos 248 comunidades tradicionais e quilombolas podem ser afetadas, com processos minerários diretamente sobrepostos a 80 territórios. Os órgãos ainda não responderam à recomendação.
Entre os projetos mais avançados estão os da australiana Pilbara Minerals, da americana Atlas, e da MGLit, subsidiária da canadense Lithium Ionic. As duas últimas sofreram reveses, com os processos de licenciamento travados por falta de consulta prévia a comunidades tradicionais. Enquanto a primeira incide nas comunidades quilombolas da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão, a segunda pode afetar o Quilombo do Baú – que já sofre com impactos da Sigma.
A exploração de lítio, vale destacar, não é novidade para os moradores do Jequitinhonha. Há mais de 30 anos, a Companhia Brasileira de Lítio (CBL) opera na região, atendendo a demanda de setores como cerâmica, metalurgia e farmoquímica. Mas, de acordo com os relatos ouvidos pela Pública, a atuação da CBL nunca chegou perto de gerar os problemas que a jovem operação da Sigma tem ocasionado. A explicação para isso tem a ver com o método de exploração escolhido pela mineradora.
Durante o World Climate Summit, o evento paralelo à COP30 citado no início da reportagem, a fundadora e CEO da Sigma, Ana Cabral, afirmou que “sustentabilidade virou uma conversa sobre energia” e “energia significa fazer mais com menos porque, inevitavelmente, ela precisa ter baixo custo”. “Essa é a discussão: como torná-la de baixo custo?”, questionou.
Dentro da estratégia da Sigma para reduzir os custos, está a opção por explorar o lítio com lavra a céu aberto, um modelo mais barato do que a mina subterrânea adotada pela CBL, mas com maior impacto ambiental e também social – o que tem provocado uma crescente judicialização.
A Pública identificou ao menos 12 ações judiciais movidas por moradores de Piauí Poço Dantas contra a Sigma tramitando na Justiça estadual de Minas. Os afetados pedem indenização e a compra de suas residências, para que possam deixar a região. Além deles, também há uma ação judicial movida na esfera federal por indígenas Pankararu e Pataxó da Terra Cinta Vermelha de Jundiba, localizada em Araçuaí.
Apesar dos embates judiciais e da resistência de órgãos como o MPF, a própria Sigma, que foi beneficiada por incentivos fiscais, tem planos de expansão: são 29 processos minerários ativos em Araçuaí e Itinga, divididos em quatro propriedades, que ocupam quase 19 mil hectares. A empresa já conseguiu o licenciamento ambiental para uma nova mina e tenta conseguir a licença para ampliar a atualmente em atividade, a Grota do Cirilo.
O processo de licenciamento dessa ampliação, no entanto, foi questionado pelo grupo de pesquisa Liquit. Aline Weber Sulzbacher, também da UFVJM e do Liquit, aponta que o avanço da mineração na região tem reproduzido “o velho modelo que internaliza todos os lucros e externaliza os danos sociais e ambientais. “Para que [as empresas] operem e garantam sua expansão, elas seguem inclusive externalizando danos psicossociais, de aniquilamento da perspectiva de continuidade das comunidades nos territórios”, diz.
A visão de Sulzbacher é compartilhada ao menos parcialmente por um dos fundadores e ex-co-CEO da Sigma, o britânico Calvyn Gardner, que enfrenta um divórcio litigioso com Ana Cabral. Em entrevista ao Observatório da Mineração, o empresário afirmou que mudanças na gestão da empresa deixaram a atenção ao desenvolvimento de longo prazo da região em segundo plano, levaram a “decisões focadas quase exclusivamente em lucros de curto prazo” e à priorização de “aumento rápido da produção e a valorização das ações, com pouca atenção à sustentabilidade operacional ou à segurança”.
Gardner encomendou um estudo técnico que constatou problemas técnicos e de segurança na operação da Sigma, com uma possível instabilidade nas cavas – o que a empresa nega. O Observatório também revelou que o Plano Integrado de Aproveitamento Econômico (PAE) protocolado pela Sigma em 2023 foi considerado “insatisfatório” e que a maior parte das exigências técnicas emitidas pela ANM estão pendentes de atendimento.
No fim das contas, o Jequitinhonha está participando da transição energética, mas ela não está ocorrendo de maneira justa; os moradores estão lidando com os ônus, enquanto as empresas ficam com os bônus. “Eu não sou contra a mineração, eu sei que nós precisamos dela para tudo. Eu sou contra o jeito que as mineradoras fazem. Chegam, invadem, sufocam o povo e fica por isso mesmo”, afirma Márcio*, um morador de Poço Dantas que preferiu não ser identificado por temer represálias. “Eles chegaram falando que não iam trazer impacto nenhum, só iam trazer benefícios, que iam empregar quase 100% da comunidade. Eu fiquei alegre demais, porque antigamente era escasso de serviço. Só que foi totalmente ao contrário do que eles falaram”, diz.
100% afetados por ruídos; 50% com rachaduras nas casas
No período em que a Pública esteve em Piauí Poço Dantas, o som ambiente era uma combinação de latidos de cachorros, cacarejar de galinhas e o canto de passarinhos. Apesar do calor, o horizonte estava limpo e o ar respirável, aliviando a tosse constante de alguns moradores. Se não fossem as enormes pilhas de rejeito (ou de “estéril”) que circundam as mais de 60 casas e as rachaduras em várias delas, a presença da mineração passaria despercebida.
A paralisação das atividades da Sigma trouxe desemprego e aprofundou o desequilíbrio das contas municipais, mas também trouxe de volta, ainda que temporariamente, a tranquilidade para as comunidades vizinhas à mineradora. A perspectiva de retorno da operação, porém, atormenta os locais, que temem voltar a conviver com as explosões diárias, a poeira persistente, o fedor dos explosivos e o barulho de caminhões dia e noite.
Um relatório do Ministério Público mineiro (MPMG), feito a partir de entrevistas com moradores atingidos, revela um pouco do impacto da mineradora quando em atividade: 100% dizem ser afetados pelos ruídos do empreendimento, com 70% afirmando que o barulho é alto ou muito alto; 76% reclamam da poeira, com 55% apontando impactos na saúde; 89% dizem sentir as detonações e 50% relatam rachaduras em suas residências.
“É uma bênção essa empresa estar parada agora. Se eu limpo a casa, ela mantém limpa. Você não ouve barulho, dorme tranquilo. Essas pedras [que a empresa coloca nos caminhões], parece que tá jogando dentro da casa da gente, é doído”, conta o morador Antônio Souza, que tem outros parentes vivendo na comunidade e nos relata uma realidade bem diferente do discurso “verde” da mineradora.
Um dos exemplos do marketing focado em ESG da Sigma é a sua planta de mineração “quíntuplo zero”: zero barragens, zero produtos químicos, zero consumo de água potável e zero utilização de energia de origem fóssil. Até pelo menos outubro deste ano, o “quinto zero” alardeado pela empresa era de zero emissões de carbono, afirmação que aparece em inúmeros comunicados publicados no site oficial.
Desde que a Repórter Brasil revelou que os créditos de carbono utilizados pela empresa para compensar suas emissões de gases estavam ligados a um esquema de desmatamento ilegal e grilagem investigado pela Polícia Federal, no entanto, o “quinto zero” passou a ser de zero acidentes de trabalho.
A situação reflete algo que especialistas que vêm se debruçando sobre os impactos da mineradora apontam: mais do que apenas exportar um produto da cadeia do lítio, a Sigma aposta em vender um modelo de “mineração sustentável”, que a permite elevar o valor de seu produto. “Essa imagem de ‘lítio verde’ aparentemente traz mais dinheiro do que a produção real de minério”, afirma o professor da UFMG Klemens Laschefski no documentário “À beira do abismo – a batalha por matérias-primas: a mineração de lítio no Brasil”.
Não por acaso, os questionamentos e as críticas têm gerado reações ruidosas da empresa, com veículos de imprensa e organizações recebendo notificações extrajudiciais ou ameaças de processo, e com moradores da região preferindo não se identificar por temerem retaliações a parentes que estão empregados na mineradora.
Dificuldades econômicas fazem Sigma adiar planos de expansão
A saída da empreiteira Fagundes Construção e Mineração – que rendeu um processo judicial, tramitando em sigilo – e a consequente paralisação da mineração foram minimizadas pela Sigma em seus comunicados oficiais. Segundo a empresa, trata-se de uma “troca de fornecedores” para “aumentar a eficiência”, uma nova terceirizada está sendo contratada e os trabalhadores demitidos serão reabsorvidos – ainda que não haja divulgação de quantos e nem de quando isso ocorrerá. Mas o embate com a empreiteira está longe de ser a única dificuldade enfrentada pela mineradora nos últimos tempos.
Apesar de ter apresentado números vistos como positivos pelo mercado em seu último relatório trimestral, o crescimento prometido não tem se concretizado. Os balanços anuais apresentados pela empresa mostram prejuízos líquidos consecutivos entre 2022 e 2024, anos com dados disponíveis. Nos nove primeiros meses de 2025, o prejuízo líquido ficou em torno de 25,7 milhões de dólares canadenses (quase R$ 100 milhões).
As dificuldades financeiras da Sigma, que levaram a empresa a ter sua classificação rebaixada na Nasdaq, estão relacionadas a uma baixa expressiva no preço do lítio no mercado internacional. O minério está longe de ser raro e, nos últimos anos, uma combinação entre aumento da oferta e um avanço da transição energética menos acelerado do que as previsões, fizeram com que seu valor despencasse.
No final de 2022, quando a Sigma avançava na construção de sua operação no Jequitinhonha, o preço do lítio atingia seu pico, chegando a valer quase 600 mil yuans (mais de R$ 450 mil) a tonelada – a mercadoria é negociada em moeda chinesa pois o país asiático, líder na produção de baterias elétricas, é o principal comprador. Este ano, em junho, despencou para cerca de 60 mil yuans, 10% do valor registrado no pico. Nos últimos meses, registrou alguma recuperação, chegando a quase 95 mil yuans (R$ 72 mil), mas ainda muito distante dos valores registrados três anos atrás.
Isso se refletiu no preço das ações da companhia. Na bolsa de valores canadense, em que a Sigma foi listada pela primeira vez, o preço da ação chegou a valer quase 56 dólares canadenses (cerca de R$ 204, na cotação da época) em junho de 2023, quando as primeiras remessas do produto foram exportadas, mas despencou para menos de 6 dólares canadenses em julho de 2025. Atualmente, a ação está na casa dos 14 dólares canadenses (cerca de R$ 56).
Com o mercado pagando muito menos pelo lítio do que antes, vários dos planos da mineradora têm sido adiados, como a intenção de verticalizar a produção, fabricando um produto de maior valor agregado.
Além disso, a construção de uma segunda planta industrial estava prevista para ser concluída ainda em 2025, o que não ocorreu. A ampliação permitiria que a empresa aumentasse sua capacidade de produção de concentrado de lítio de 270 mil toneladas/ano para 520 mil.
A obra recebeu, em agosto de 2024, aprovação de um financiamento de R$ 486,7 milhões do BNDES, com recursos do Fundo Clima, instrumento voltado para projetos que ajudem na mitigação ou na adaptação às mudanças climáticas. Só que, sem conseguir obter a carta fiança exigida pelo banco, a empresa ainda não executou o empréstimo e a obra não avançou, levando outra empresa terceirizada, a FX Minas Construtora, a demitir parte da equipe que estava mobilizada para o serviço.
Com os percalços, para além de impactos socioambientais, a promessa de “desenvolvimento” do Jequitinhonha não tem se concretizado.
Só da Sigma, as promessas de royalties pela exploração minerária beiravam R$ 1 bilhão em 20 anos – uma média de quase R$ 50 milhões/ano. Nesses primeiros anos de operação, porém, o montante não chegou nem perto disso. Em 2023, seu primeiro ano de operação, a empresa pagou R$ 9,5 milhões de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), metade para Itinga e metade para Araçuaí. Em 2024, o valor saltou para R$ 12,5 milhões, na mesma proporção. Em 2025, no entanto, os dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) revelam que a empresa não pagou um centavo sequer de CFEM.
O orçamento das duas prefeituras revelam um impacto significativo com essa falta de pagamento. Itinga, por exemplo, recebeu apenas 10% dos R$ 11,2 milhões de royalties previstos para 2025 (equivalente a 11% do orçamento). Araçuaí, por sua vez, previu R$ 14,6 milhões (5,6% do orçamento previsto), mas registra em seu Portal da Transparência o recebimento de apenas R$ 155 mil em CFEM (pouco mais de 1% do previsto). A discrepância entre expectativa e realidade também aparece na arrecadação com o Imposto Sobre Serviços (ISS), uma das principais fontes de receita dos municípios. Araçuaí, por exemplo, previu R$ 8 milhões e arrecadou R$ 5,1 milhões até o fim de novembro. Em Itinga, a previsão foi de R$ 17 milhões, mas menos de R$ 1 milhão foi arrecadado.
“[Esses recursos] têm feito falta. Os essenciais a gente procurou manter, mas eu não consegui executar muita coisa do orçamento em 2025 A informação que se tem é que a empresa não está financeiramente tão bem”, afirma o prefeito de Itinga, João Bosco Cordeiro, conhecido como Bosquinho (PSD).
“O Vale é uma região com algumas vulnerabilidades, mas dizer que era absolutamente miserável e que, a partir da Sigma, houve uma redenção, não condiz com a realidade. Criou-se a expectativa de uma prosperidade absoluta, mas isso não se concretizou ainda”, afirma o mandatário, que ressalta apoiar a chegada da mineração na região e acreditar que o cenário irá melhorar no médio prazo.
Para o prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa (PSD), a região está vivenciando “um paradoxo de coisas boas e ruins”, citando impactos positivos em emprego e investimentos e negativos nos aluguéis, demanda de saúde e de educação. “A Sigma entra, traz diversificação e melhoria, só que não é como salvadora da pátria. Essa construção se dá com uma sequência de tempo que, no meu entendimento, ainda está em maturação. Nós vamos ver as coisas acontecendo em um prazo ainda não muito próximo”, diz.
CEO da Sigma virou alvo de notas de repúdio após declaração
Além de dificuldades financeiras e denúncias de impactos socioambientais, a Sigma também está enfrentando questionamentos perante a opinião pública da região, graças a uma entrevista de Ana Cabral à rede de televisão CNBC. Durante a COP30, a empresária deu declarações que uniram quase todo o Vale do Jequitinhonha – contra ela.
“Nós treinamos aquela geração perdida do Vale, que eram mulas d’água, crianças que não tinham escola. Elas passavam o dia carregando água da cisterna pública para a casa, da casa para a cisterna pública. Nós instalamos caixa d’água, abrimos quatro escolas. Essas crianças, que não foram educadas, foram trabalhar no bananal. Nós pegamos a mão de obra do bananal e treinamos para serem operadores de planta. 43 operadores da planta, dos 200 que nós temos, são ex-mulas d’água, olha que lindo, né?”, disse a fundadora da mineradora.
Na página do LinkedIn da Sigma, foi publicada uma versão editada da entrevista, sem as menções a “mulas d’água”. Desde que a polêmica foi disparada, a empresa restringiu comentários em suas redes sociais. Homenageada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em agosto, a CEO da Sigma agora virou alvo de notas de repúdio.
A fala, vista como “paternalista”, “irresponsável” e até “mentirosa” por moradores da região, gerou reações – em diferentes intensidades – de políticos locais (incluindo vereadores, deputados estaduais, federais e os prefeitos de ambos os municípios), da dona de um bananal localizado na região, entre outras figuras públicas. Ao longo dos dias em que a Pública esteve na cidade, bastava tocar no assunto “Sigma” para que manifestações efusivas de descontentamento fossem trazidas pelos habitantes do Vale.
A Diocese de Araçuaí também divulgou uma nota de repúdio contra a fala da CEO da Sigma. Dom Geraldo Maia, bispo responsável pela região, afirmou à reportagem que não retomará a interlocução que vinha mantendo com a empresa na tentativa de dirimir os conflitos enquanto não houver retratação.
“Nós não queremos que aqui seja chamado de Vale da Miséria e nem de Vale do Lítio. É o Vale do Jequitinhonha, com suas belezas, suas tradições, sua cultura. Não podemos deixar que essa beleza do Vale seja maculada em nome de um pretenso processo redentor”, aponta o religioso à Pública, destacando que o lítio não é a primeira tábua de salvação prometida à região, que já teve nas plantações de eucalipto uma saída “milagrosa” – sem que isso se convertesse em prosperidade para a população local.
Ao que tudo indica, porém, não haverá pedido de desculpas: em post no Instagram, a empresa dobrou a aposta, questionando quem estaria financiando “campanhas de marketing” milionárias “para incessantemente espalhar fake news sobre a Sigma”. Mas o fato é que a versão da empresa não se sustenta. A “construção” de quatro escolas, por exemplo, não procede: a Sigma ajudou na reforma de três e, segundo o prefeito de Araçuaí, “está comprometida com a reforma” de uma outra. Uma das escolas reformadas, justamente a da comunidade Piauí Poço Dantas, existe desde a década de 1970.
Além disso, a despeito de haver, de fato, registros de pessoas – inclusive de crianças – carregando latas d’água na cabeça, os moradores e autoridades ouvidos pela Pública repudiam a insinuação de trabalho infantil, negam a existência de “cisterna pública” na região, refutam que isso tenha tirado crianças da escola ou provocado uma “geração perdida” e afirmam que o termo “mula d’água” não faz parte do vocabulário da região e foi visto como altamente pejorativo. Mais do que isso, apontam que a Sigma chegou apenas na década de 2010, e que os registros de carregamento de água datam do século passado, dos anos 1970/80.
“Essa mulher vem de longe para tirar nossas riquezas, para ficar rica, e ainda sai falando mal do povo do Vale do Jequitinhonha? Isso eu não aceito!”, afirma uma moradora que preferiu não se identificar, resumindo o espírito da região após a fala de Cabral.
