Esta reportagem faz parte do Projeto Escravizadores, investigação exclusiva da Agência Pública. Acompanhe aqui.
Quando anoitecia, as embarcações deslizavam sorrateiramente pelo Rio Capibaribe, no Recife. Elas estavam abarrotadas de pessoas escravizadas fugidas, escondidas debaixo de feixes de palha. O destino final era o Cais do Porto, de onde homens, mulheres e crianças seguiam para outras províncias, principalmente o Ceará, que já tinham abolido a escravidão em março de 1884.
O Recife cresceu seguindo o curso das águas do Capibaribe, uma estrada fluvial que servia para transporte e por onde se escoava mercadorias, principalmente o açúcar produzido nos engenhos. No final do século 19, o rio tornou-se também uma rota secreta para as fugas de escravizados. Estima-se que, ao menos, três mil escravizados teriam fugido pela rota do rio entre 1884 e 1888, com ajuda de movimentos abolicionistas, sobretudo o Clube do Cupim.
Essa associação secreta e ilegal, fundada na capital pernambucana, era formada por ativistas de vários lugares do país. A maioria eram homens brancos abastados, com grande influência na sociedade, mas havia também mulheres negras libertas, embora a participação delas nos movimentos abolicionistas tenha sido relegada pela historiografia oficial. O fato é que, ainda que não sejam apontadas como protagonistas, as mulheres negras, escravizadas ou libertas, estiveram na linha de frente da luta contra a escravidão no Brasil. Uma delas foi Gertrudes Maria de Jesus.
A trajetória dela foi mapeada pelos pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Adriana Santana, Arthur Danillo Castelo Branco e José Bento Rosa da Silva. Eles apontam que Gertrudes de Jesus era “parte do primeiro escalão de auxiliares, os chamados ‘internos’ do Clube do Cupim” e “a única mulher negra reconhecidamente abolicionista a aparecer em uma fotografia no início do século 20”. O registro é uma edição de 14 de maio de 1910 do Jornal Pequeno, que circulava no Recife. Ela é a única mulher da foto entre nove homens, que aparecem atrás de uma miniatura da jangada da organização, um símbolo de liberdade.
“Na hierarquia, ela estava acima de mulheres brancas de elite, que eram auxiliares externas. Era provavelmente tão importante quanto os mais destacados auxiliares internos, todos homens, frequentemente mencionados na documentação e nas fotografias”, explica Santana.
Manchete sobre o Clube do Cupim no Jornal Pequeno
O Clube do Cupim era uma rede que corroia as estruturas da escravidão por dentro, organizando fugas, libertações e trabalhos para os ex-escravizados. Os chamados “cupins” se comportavam como espiões: se comunicavam em linguagem codificada, adotavam pseudônimos, e conseguiam burlar a polícia e a justiça com agentes secretos infiltrados em diversas esferas da sociedade, incluindo órgãos públicos.
A casa de Gertrudes, que ficava em uma área central da cidade, funcionava como um entreposto do Clube do Cupim, segundo Santana. Os canoeiros, geralmente homens negros libertos que ajudavam outros cativos, precisavam conhecer bem o traçado sinuoso do rio e tomar cuidado porque a polícia montava postos secretos no curso das águas.
“A casa dela era uma ‘panela’, ou seja, um local que escondia os escravizados até a hora do embarque final. Ela fazia parte do coração da organização. Era líder de um quilombo urbano”, explica. “Por ser negra e não ter tantas condições materiais como mulheres brancas que participavam do Clube do Cupim, ela corria muito mais riscos em abrigar escravizados na sua casa”, acrescenta Santana.
As fugas realizadas pelo rio eram épicas. O embarque era feito a partir das “panelas”, esconderijos espalhados pelas cidades, do interior à capital, que abrigavam os escravizados. Os planos de fuga eram “sussurrados entre os cativos e os cupins, a conspiração noturna das senzalas”, escreve o pesquisador Felipe Azevedo e Souza, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que registra as estratégias.
“Existem registros de que os escravizados custeavam parcialmente as despesas das fugas e há todo um anedotário sobre os diferentes expedientes utilizados pelos escravizados para desaparecer. Alguns sumiram na agitação dos dias de carnaval, uma outra embebedou seu senhor. Os disfarces também eram comuns – Miquelina, mucama de um casarão na Madalena [bairro da zona norte da cidade], saiu de sinhá, com vestido à francesa, chapéu, sapatos lustrados e pó de arroz,” descreve Azevedo e Souza.
No jornal A Província, de 21 de maio de 1918, uma crônica descrevia o dia em que os cocheiros de uma casa funerária precisaram simular um cortejo fúnebre, levando escravizados dentro de caixões e disfarçados em trajes de luto até as embarcações. A “legendária jangada” dos cupins, como citou o Jornal do Recife de 13 de maio de 1890, realizou muitas outras façanhas.
Trecho do Jornal do Recife, edição de 1890
A última grande fuga protagonizada pela associação secreta aconteceu em 23 de abril de 1888, quando foram embarcados 119 escravizados de uma só vez. O grupo saiu à noite, em uma canoa de capim, do bairro do Poço da Panela, zona norte da cidade, um reduto abolicionista onde ficava a casa do político José Mariano, que abrigava escravizados fugidos junto com sua esposa Olegária da Costa Gama, conhecida como dona Olegarinha.
O casal branco é reverenciado até hoje entre os principais ativistas do abolicionismo pernambucano, com homenagens pela cidade, como nome de lugares públicos, como o Cais José Mariano, e exposições em museus. Do Poço da Panela, segundo os registros históricos, o barco desceu até a Capunga, atualmente a área do bairro das Graças, que fica próximo ao centro da cidade, sendo rebocados por dois botes até o cais e, de lá, para a liberdade.
Uma mulher negra que resistiu à escravidão e ao esquecimento
Os pesquisadores da UFPE encontraram outros registros da participação de Gertrudes de Jesus na linha de frente do clube abolicionista. “Ao narrar a passeata de despedida que o Clube do Cupim fez pelas ruas do Recife logo após a Abolição, em 23 de maio de 1888, Fernando de Castro Paes Barreto, membro interno do Clube, citou que após deixarem a casa de Dom Leonor Porto, os abolicionistas seguiram à casa ‘da mulata Gertrudes’, auxiliar interna do Clube. Iam agradecê-la pelos serviços prestados à causa”, descreveram em artigo, com base em documentos da época.
“[Ela] não apenas resistiu à escravidão, mas também ao esquecimento histórico, forçando os abolicionistas brancos – responsáveis pela construção das narrativas e documentos sobre o movimento – a reconhecê-la como uma liderança fundamental e agente crucial na árdua e prolongada missão de erradicar a escravidão no Brasil”, dizem os pesquisadores.
O Brasil, com destaque para a região Nordeste, foi onde mais se registrou alforria de cativos nas Américas. Depois que o tráfico negreiro foi proibido, a Lei do Ventre Livre (1971), além de libertar os filhos de escravizadas nascidos no Brasil, reconheceu o direito dos cativos de juntarem dinheiro, alugar seus serviços e comprarem sua própria liberdade.
Os pesquisadores da UFPE destacam a prevalência de mulheres negras na atuação pela compra de alforrias e na busca por liberdade, seja delas mesmas ou das suas famílias. Eles citam as mulheres de Feira de Santana, na então Província da Bahia, que entre os anos de 1850 e 1888 foram maioria entre as cartas de liberdade. Também uma análise de mais de 150 processos que tramitaram no Tribunal de Campinas, na Província de São Paulo, onde foi identificada a predominância feminina nos autos e ações por liberdade.
Em Pernambuco, os pesquisadores afirmam que “há consistentes provas documentais da ação direta de mulheres cativas, libertas e livres em processos de alforria e de coordenação de fugas de escravizados.” Um dos casos que eles descobriram durante a pesquisa foi o da escravizada Josepha, indicada nos documentos da Justiça apenas pelo primeiro nome e como “ex-escrava de Luís da Costa Gomes”, no distrito de São Bento, atualmente a cidade de São Bento do Una, na Zona da Mata pernambucana.
Josepha pedia pela libertação de seus dois filhos, identificados apenas como João e Izidoro. Ela argumentava que, antes de ser alforriada, havia sido matriculada pelo antigo senhor como “mulher sem filiação”, ou seja, que não teria filhos. Assim, defendia que sua prole seria automaticamente livre, em função dessa ausência de informações. Mas, seu pedido foi negado pela Justiça. A sentença foi publicada na edição de 14 de outubro de 1887 do Diario de Pernambuco.
Vista dos solares da passagem da Madalena, em Recife
Nas buscas documentais, os pesquisadores da UFPE encontraram ainda registros de uma outra Gertrudes, que também lutava pela liberdade em Pernambuco, nesse caso, da sua filha. A africana Gertrudes Rosário aparece em um processo judicial de 1890, acusada e presa pelo rapto de uma criança. Contudo, as peças processuais mostraram que o ato cometido por ela poderia ter sido enquadrado como uma tentativa de resgate.
No depoimento, Gertrudes Rosário disse que tinha 21 anos e fazia serviços domésticos. Segundo o pedido habeas corpus, ela tinha sido escravizada por uma família e embarcada ao Pará, destino de muitos escravizados fugidos, deixando uma filha de quatro anos com os antigos senhores. Com a informação de que a família iria se mudar de Pernambuco para o Ceará, Rosário voltou ao Recife, mas, ao chegar, a família teria se negado a devolver a criança. Assim, ela teria encarregado uma conhecida para buscar sua menina, que, por engano, teria levado a filha dos ex-senhores. Nos documentos resgatados pelos estudiosos, Gertrudes Rosário confirma que a menina não era sua filha. Ela chegou a ser julgada e foi absolvida, mas não se sabe se foi capaz de resgatar sua filha depois disso.
“Esquecimento seletivo” de mulheres negras na abolição
Além de Gertrudes de Jesus há, segundo os estudiosos, outras mulheres mencionadas como sócias auxiliares do Clube do Cupim. Olegária Gama Carneiro da Cunha, esposa de José Mariano, que era uma auxiliar externa ficou conhecida por entregar suas joias para financiar a campanha de Joaquim Nabuco, reconhecido como um dos principais nomes do abolicionismo brasileiro, para deputado.
“Todos os relatos indicam que ela fez isso por vontade própria, da mesma forma que teria empenhado seu anel de noivado para a compra de alforria de um jovem escravizado que sofria torturas num engenho”, explica a pesquisadora Adriana Santana.
Além do Clube do Cupim, operava no Recife a associação Ave Libertas, exclusivamente feminina, fundada por senhoras da sociedade pernambucana, entre elas Leonor Porto. Juntos, os “cupins” e as sócias do Ave Libertas promoviam ações planejadas e sincronizadas de fuga, um sistema coordenado e pulverizado que dificultava seu mapeamento e consequente repressão.
Olegária da Cunha se vinculou à Ave Libertas aos 25 anos. Ela morreu aos 38, deixando vários registros documentais da sua participação tanto em atividades como o financiamento das libertações quanto no acolhimento de escravizados em casa quanto no auxílio das fugas por barco.
Santana observa que, enquanto lutavam pelo fim da escravidão, essas mulheres também se posicinavam pelos seus direitos. Contudo, se para as mulheres brancas e ricas que se juntaram à causa já foi negado o protagonismo da luta abolicionista pela historiografia, no caso das mulheres negras, o “esquecimento é seletivo”.
Os pesquisadores não encontraram informações sobre o que aconteceu com Gertrudes de Jesus depois que a escravidão foi abolida. Para Santana, “mulheres negras do passado, como Gertrudes, tentavam burlar os silenciamentos com ações que só conseguimos enxergar hoje”. “Elas jogaram uma mensagem ao futuro. Deixaram rastros em processos judiciais, em ações por liberdade, em atas de clubes abolicionistas, em menções tímidas nos jornais. Abriram terreno para a luta das mulheres negras, que, infelizmente, ainda encontram eco nas desigualdades, injustiças, opressão e omissões.”
O fim do tráfico negreiro já tinha sido estabelecido em 1850 e, depois, a Lei do Ventre Livre (1871), além de estabelecer a liberdade para filhos de mulheres escravizadas, permitiu o direito de juntar dinheiro, de doações ou do próprio trabalho, para a comprar a alforria.