“Estamos falando de uma comunidade que está há 75 anos no mesmo lugar”, disse Eduardo Canejo, presidente da associação de moradores da comunidade Sousa Ramos, na Vila Mariana, ao iniciar sua fala diante do auditório lotado para a audiência pública sobre uma obra prioritária da gestão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB).
“Não tem como remover essa relação. Isso tem que ser tratado com mais humanidade”, continuou, seguido por gritos e aplausos das pessoas na plateia, que empunhavam cartazes com os dizeres: “Sousa Ramos fica”, “Sousa Ramos resiste” e “túnel não”.
Sousa Ramos é uma de duas comunidades que a prefeitura quer remover para dar lugar ao “túnel Sena Madureira”, cujo objetivo declarado é eliminar um semáforo entre a rua Sena Madureira e a rua Ricardo Jafet, na Vila Mariana, o que, segundo a gestão Nunes, facilitará o trânsito de veículos entre os bairros Ipiranga, Morumbi, Itaim Bibi e Saúde.
Trata-se de um projeto antigo e repleto de problemas. Depois de iniciar a obra em setembro do ano passado – quando os moradores da Sousa Ramos foram surpreendidos com tratores arrancando árvores no lote ao lado da comunidade –, a prefeitura se viu obrigada a rescindir o contrato anterior, após recomendações do Ministério Público de São Paulo (MPSP), que apontavam uma série de irregularidades no processo.
Por que isso importa?
- Projeto do túnel existe desde 1970 e teve licitação extinta por decisão do Controladoria-Geral do Município (CGM);
- Famílias das comunidades que será afetadas pela obra não tiveram resposta da prefeitura de SP sobre para onde poderão ser movidas.
Agora, a gestão parece ter pressa. Depois da rescisão em fevereiro, a gestão Nunes afirma ter realizado “novos estudos” para a viabilizar o projeto, que foi submetido à consulta pública entre 25 de agosto e 4 de setembro, pouco mais de uma semana. Ele foi apresentado aos moradores da Vila Mariana, em audiências públicas nos últimos dias 4 e 8 de setembro. O próximo passo seria a publicação de uma nova licitação, prevista já para a próxima semana.
Tudo isso sem que a prefeitura tenha acordado com as mais de 200 famílias das comunidades Sousa Ramos e Luís Alves qual será o destino delas.
Segundo o secretário de habitação do município, Sidney Cruz, a primeira opção a ser oferecida é uma indenização. Em caso de negativa, as famílias “poderão optar por atendimento habitacional definitivo”.
“Nós temos uma opção, mas é uma das opções, que é o empreendimento que está sendo construído lá no Sacomã, ao lado do metrô”, disse Cruz, durante a audiência pública nesta segunda-feira, 8 de setembro, sem dar mais detalhes sobre a localização exata e nem explicar quais seriam as outras opções.
“As pessoas [da comunidade Sousa Ramos] descobriram por meio de um PowerPoint que podem ir para o Sacomã”, afirmou o urbanista Marco Martins, porta-voz da Rede Sustentabilidade em São Paulo, e morador da Vila Mariana.
A falta de explicação sobre o destino da comunidade é um dos pontos de maior preocupação entre os moradores da Sousa Ramos, que cobram a realização de uma reunião com a gestão Nunes.
“Eu mostrei a minha residência para o senhor”, disse Fagner Teixeira ao secretário de habitação. “Você viu minha sala, minha cozinha. Se o prefeito tiver uma residência melhor do que a minha, daí ele pode pegar a chave”.
Gerente de atendimento, Fagner Teixeira vive na Sousa Ramos com a esposa e o filho pequeno, que estuda numa creche vizinha. Em outubro do ano passado, quando a Pública esteve na comunidade, ele disse que a casa, planejada por ele da planta aos móveis, “foi uma conquista”.
“Todo mundo sabe a batalha que é ter uma casa própria, eu passei 15 anos construindo a minha casa”, disse Teixeira na audiência, sob aplausos dos presentes.
“O que vocês querem é fazer esse projeto para tirar os mais pobres do metro quadrado mais caro de São Paulo”, disse ainda um dos manifestantes.
Segundo registros da própria prefeitura, a comunidade Sousa Ramos existe desde 1949. Estabelecida em um terreno público, a comunidade foi se urbanizando cada vez mais ao longo dos anos. Os moradores asfaltaram a rua, implementaram pequenas garagens, colocaram um portão para segurança e investiram suas economias nas residências – hoje, cerca de 85 casas.
Também estruturam suas vidas a partir da infraestrutura e dos serviços oferecidos na Vila Mariana, um dos bairros mais nobres de São Paulo. Várias crianças e jovens possuem bolsas de estudo nas escolas privadas da região. E pelo menos cinco pessoas fazem tratamento de câncer nos hospitais do bairro.
Em 2016, a prefeitura revisou o zoneamento e classificou a área como uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), onde o poder público deve agir para promover a regularização fundiária e urbanística. A regularização fundiária, inclusive, já estava em andamento pela Sehab, mas foi interrompida pela obra.
“É um pesadelo que eu não desejo para ninguém”, disse à Pública a assistente jurídica Ana Clara Costa, que cresceu na comunidade, onde seus pais e seus irmãos ainda vivem.
“Minha família, assim como todos os moradores, são pessoas trabalhadoras, mas humildes. Não tem condições de comprar nada ou pagar um aluguel de casa do tamanho da que eles moram na região. Para a prefeitura é bem simples: paga um auxílio aluguel, promete um reassentamento futuro. Em um apartamento de qual tamanho? 50m²? Você imagina morar uma família de cinco pessoas, mais cachorros, num local distante do trabalho deles. Mudar a vida do dia pra noite. É um desrespeito muito grande”, diz ela.
O primeiro estudo de impacto ambiental para o túnel, produzido ainda em 2009, já reconhecia esse problema. “Há um agravante considerando que a região é de valor imobiliário significativo, não havendo condições prováveis para a manutenção das famílias na mesma região. Do mesmo modo, não há condições de implantação de unidades habitacionais populares nesta região”, relata o documento.
Durante a audiência, o secretário Marcos Monteiro, da secretaria de Infraestrutura e Obras, responsável pelo empreendimento, acatou a proposta de realização de uma câmara técnica, proposta pela vereadora Marina Bragante (Rede Sustentabilidade). A câmara deve ser composta pelos representantes das secretarias envolvidas, uma comissão de moradores e os vereadores Marina Bragante (Rede), Nabil Bonduki (PT), Luana Alves (PSOL) e Renata Falzoni (PSB) – todos contrários à obra.
A ideia é que essa câmara faça um debate técnico sobre o empreendimento, analise alternativas e chegue a uma definição sobre o destino das comunidades. Mas ainda não há uma previsão para o início dos trabalhos e nem um cronograma estabelecido.
Morte de árvores e foco exclusivo em carros
A remoção das famílias não é a única fonte de críticas sobre o túnel. Moradores da região presentes nas audiências se manifestaram contra o corte de árvores e dizem que a prefeitura nega a existência da nascente de um córrego na área da obra – o que exigiria um licenciamento ambiental mais rigoroso.
Também dizem que a instalação do túnel ignora o Plano Diretor, o Plano de Mobilidade Urbana e o Plano Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres, todos elaborados pela prefeitura.
Denunciam ainda o aspecto “rodoviarista” da obra, que prioriza carros, em detrimento do transporte coletivo, dos ciclistas e dos pedestres. Dizem que em nenhum momento a prefeitura apresentou outras opções para enfrentar o tráfego intenso na região.
Para se blindar das críticas, a prefeitura alterou o projeto da obra em relação ao que começou a ser executado no ano passado, quando os moradores da região realizaram várias manifestações contra o corte de árvores e a remoção das comunidades.
Na comparação com o projeto anterior, o novo desenho diminuiu a extensão do emboque e desemboque do túnel, o que reduziu de 170 para 97 o número de árvores a serem cortadas, além de passar a prever o transplante de 25 árvores adultas para outro local na mesma região.
A prefeitura também passou a dizer que o novo projeto não inviabiliza o corredor de ônibus da avenida Sena Madureira. Pelo Plano de Mobilidade Urbana, o corredor de 2,2 km deveria ter sido implementado ainda em 2024, mas que ainda nem foi iniciado pela gestão.
Ainda assim, moradores dizem que o novo projeto não resolve os problemas do túnel. A morte das árvores nas avenidas, por exemplo, vai contra o corredor verde identificado pela própria Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, que liga os parques Ibirapuera e Aclimação.
Já a nascente, que a gestão afirma não existir, é mencionada no Estudo de Viabilidade Ambiental do projeto, elaborado no ano passado, e em documentos anteriores da própria prefeitura.
“O estudo de tráfego apresentado não cita pedestres, só fala de carros. A cidade não é um autorama”, afirmou o especialista em mobilidade urbana Rafael Calabria, durante uma apresentação na segunda audiência.
“Moro na Luis Alves há 39 anos. Lá a gente vive em paz. Falam desse túnel desde os anos 1970, só que a necessidade mudou. E daí, agora, surge uma proposta que ninguém sabe de onde veio e que não coloca acessibilidade para pedestre, para cadeirante”, disse um participante identificado como Cauê, que usa cadeiras de rodas.
O presidente da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), Milton Persoli, apresentou durante a última reunião, um “estudo de semáforos” para ilustrar o impacto positivo do túnel. Segundo ele, 83 mil veículos circulam diariamente pelo cruzamento, local do semáforo que seria eliminado pela obra.
A prefeitura diz que o túnel beneficiará 800 mil pessoas por dia, mas não apresentou cálculos para embasar o número. Questionada pela reportagem sobre esse ponto, a administração não respondeu. Em vez disso, enviou uma nota na qual afirma que “os estudos do projeto foram atualizados para ampliar os ganhos socioambientais e de mobilidade urbana” e que “o novo desenho prevê a preservação de mais árvores, o plantio de 1.377 exemplares arbóreos e atendimento habitacional aos moradores atingidos”.
O que vale: novo túnel ou velho túnel?
Ainda de acordo com a prefeitura, “as contribuições colhidas nas etapas de consulta e audiência pública estão em análise para a posterior publicação do edital de contratação das obras”.
A ideia de uma nova licitação para a obra tenta, também, estancar as irregularidades do contrato anterior, identificadas pela Controladoria-Geral do Município (CGM) e pelo MPSP.
Em agosto de 2024, pouco antes da prefeitura reiniciar a obra, a CMG apontou que, em 2011, a construtora Queiroz Galvão (rebatizada como Ayla Construtora) fraudou a licitação da obra do túnel Sena Madureira, fato destacado pelo MPSP para recomendar a rescisão do contrato, o que a prefeitura acabou por acatar.
Risco de judicialização da obra
Além disso, três ações judiciais questionam o túnel na Justiça. São duas ações civis públicas (ajuizadas pelo MP) e uma ação popular (ajuizada pelo deputado estadual Eduardo Suplicy e pela vereadora Luna Zarattini, ambos do PT), que foram protocoladas antes da suspensão do contrato anterior e ainda estão tramitando.
A prefeitura foi perguntada pela reportagem sobre a insegurança jurídica de seguir com a obra, mas não respondeu.
Uma das ações questiona aspectos ambientais da obra, entre eles o uso do Estudo de Viabilidade Ambiental (EVA) para a obtenção da licença ambiental, expedida em agosto do ano passado. Uma perícia, realizada em dezembro, concluiu que “dada a magnitude do empreendimento”, o EVA “não apresenta todas as ferramentas, métodos e estudos necessários para garantia da prevenção de danos ambientais futuros decorrentes da obra, bem como não sustenta quais são os benefícios dentro do conceito de sustentabilidade”.
Segundo a gestão Nunes, a licença ambiental do ano passado, ainda que tenha sido expedida para o projeto anterior, permanece válida. Moradores, no entanto, defendem que diante da mudança do desenho do túnel, e como será realizada uma nova licitação, seria preciso refazer o processo de licenciamento ambiental. Não há, porém, segundo especialistas, uma regra clara sobre isso, cabendo interpretação.
“A prefeitura fala em novo túnel para tentar se descolar das acusações de cartel e falta de lisura na licitação (e atender a recomendação do MP de cancelar o pleito fraudado anterior), e dos problemas ambientais das árvores cortadas”, diz Lucian de Paula arquiteto e urbanista que integra o Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana, e fazia parte do conselho participativo da Vila Mariana.
“A prefeitura se defende nos processos ambientais dos danos causados pela obra dizendo que houve “perda de objeto”, porque o contrato foi cancelado. Então, os processos deveriam ser extintos. Mas na hora de reciclar o estudo de impacto de trânsito ou licenciamento ambiental, aí é o ‘mesmo’ túnel”, complementa o urbanista.
Moradores excluídos de reunião
Sobram, ainda, críticas à forma com que a retomada do projeto vem sendo conduzida pela prefeitura, como a forma de realização das audiências e o tempo curto entre a abertura da consulta pública e a previsão de publicação da nova licitação.
Na primeira audiência pública, realizada no dia 4 de setembro, os moradores da Sousa Ramos relataram que foram impedidos de entrar, em um primeiro momento, porque o espaço reservado já estava lotado.
Aqueles que estavam presentes, no entanto, denunciaram que a audiência estava sendo ocupada por moradores de outros bairros, que teriam sido trazidos ao local em ônibus fretados. A mesma suspeita se manifestou novamente na segunda audiência, no dia 8.
O primeiro evento foi marcado por confusão, com a Guarda Civil Metropolitana (GCM) impedindo a entrada de pessoas, entre elas o vereador Toninho Vespoli (PSOL), que foi filmado tentando entrar no auditório e sendo impedido pelos guardas.
Já a segunda audiência, acompanhada pela Agência Pública, foi realizada em um espaço maior, comportou todos os presentes, mas também foi marcada por um clima tenso, com gritaria e bate-boca entre a maioria de manifestantes contrários à obra e uma minoria favorável ao túnel.
Os moradores da Sousa Ramos compareceram em peso e vários se inscreveram para falar contra a obra. “Tem um cronograma para o túnel, mas para as casas para as famílias não?”, questionou Núbia dos Santos, que cresceu na comunidade, onde a mãe ainda vive com outra filha e netos. “Isso é imoral”, desabafou ela, já em lágrimas, sobre a remoção das famílias.