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Quando o assunto é segurança pública, o populismo de direita sempre ganha. E a imprensa tem um papel importante nisso, repaginado e intensificado pelas redes sociais. Primeiro, ao contrapor o combate à criminalidade à defesa dos direitos humanos, que seriam uma bandeira de esquerda, mais “frouxa” no combate aos “bandidos”; depois ao disseminar a falsa ideia de que violência policial e encarceramento sem garantias legais em presídios desumanos significariam rigor contra o crime; por fim, mas não menos importante, ao deixar fora do debate questões como o envolvimento de boa parte das polícias e de políticos com o crime organizado.
O noticiário acerca do debate sobre o PL Antifacção enviado pelo governo ao Congresso – e “roubado” pela direita – mostra claramente essa distorção. Os sucessivos pareceres do relator Guilherme Derrite (PL-SP), exonerado temporariamente pelo governador Tarcísio de Freitas apenas para habilitá-lo a cumprir esse papel, são apresentados como uma disputa entre o projeto do governo, que seria “mais brando”, ou “água com açúcar” nas palavras destacadas do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, em contraponto a governadores e parlamentares de direita que seriam “linha dura” contra o crime.
Mas não é isso que as divergências entre PL do governo e os pareceres de Derrite mostram.
Quase sempre colocados no pé das notícias, os argumentos do governo contra o que agora, em sua quarta versão, é chamado de Marco Legal do Combate ao Crime Organizado – e deve ser votado na semana que vem – podem ser resumidos em quatro pontos: a tipificação do crime; a sobreposição com outras legislações; o enfraquecimento do poder da Polícia Federal na investigação das facções criminosas; e o confisco dos bens do crime organizado, que pela proposta do governo seria feito já na fase de investigações, e de acordo com o relator só ocorreria depois do trânsito em julgado.
Isso, depois de Derrite ter sido obrigado a recuar de dois pontos que seriam desastrosos para o combate do crime organizado: o primeiro seria equiparar às facções a organizações terroristas, uma definição totalmente inadequada, inconstitucional e que expunha o país à interferência estrangeira (vide o combate ao “narcoterrorismo” de Donald Trump); e, o segundo, retirar da Polícia Federal a atribuição constitucional de investigar crimes federais – caso das facções e milícias, em seguida substituído pela obrigatoriedade de avisar as polícias estaduais das investigações em curso.
A PF reagiu com força – e aí contou com o apoio de boa parte da imprensa – e as tentativas de Derrite de deixar as raposas cuidando do galinheiro em total liberdade fracassaram. Imagine o que teria sido do caso Marielle, se a PF avisasse a Polícia Civil do RJ que entre os investigados como mandantes estavam patronos da milícias – como os irmãos Brazão – e o então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Rivaldo Barbosa?
Ou se em vez de operações como a Carbono Oculto, da PF, que apreendeu mais de 6 bilhões de reais do crime organizado e chegou aos fundos de investimento e fintechs da Faria Lima, centro financeiro de São Paulo, a gente pudesse contar apenas com massacres como o perpetrado pelas autoridades do Rio Janeiro no Complexo da Penha e do Alemão, mais sangrentos do que eficazes para combater o crime organizado?
Derrite foi obrigado a reformular mais uma vez o projeto em substituição ao enviado pelo governo, mantendo as competências da PF e limitando-se a abocanhar uma parte dos recursos federais para as polícias estaduais, mas manteve a proteção dos bens dos chefes do crime até que a sentença tenha transitado em julgado. Alguém pode explicar que rigor contra o crime justifica essa preocupação do relator?
Em compensação ao alívio proporcionado aos chefões do crime, o tal do “rigor” foi direcionado aos peixes pequenos. Pela proposta do relator, todos os acusados de ligação com facções criminosas teriam a mesma faixa de pena – de 20 a 40 anos – sem diferenciar o papel e o grau de envolvimento de cada um (ou seja, comandantes e soldados do crime teriam a mesma punição); além de exigir o cumprimento de 85% da pena em regime fechado, sem prever nenhum tipo de mecanismo para evitar a reincidência e o recrutamento feito pelas facções dentro dos presídios – quase uma necessidade de sobrevivência para os presos no atual regime carcerário.
No livro, “A Pauta é uma Arma de Combate”, a jornalista e acadêmica Fabiana de Morais questiona a pretensa objetividade da imprensa desnudando alguns de seus expedientes, como as falsas equivalências, a seleção de fontes (privilegiando os que detém o poder) e a exclusão de vozes e de fatores estruturais de nossa realidade, como o racismo, das notícias, distorcendo por completo a informação.
Em um país em que a polícia e a política estão infiltradas pelo crime organizado, em que a violência mata preferencialmente jovens negros e pobres, e com um sistema carcerário desqualificado, o que está na própria origem das facções e se traduz em altos índices de reincidência, o jornalismo só tem valor se não aderir a respostas simples, eivadas de preconceitos, a pretexto de satisfazer o desejo legítimo de segurança da população. Do contrário, está apenas jogando água no moinho da extrema direita, que utiliza o medo como capital político, explorado nas redes sociais.