Poderia ter sido um ato de “gringos” ou restrito a ambientalistas e suas organizações. Mas não. Na manhã deste sábado, 15 de novembro, as ruas de Belém, cidade sede da COP30, foram tomadas por aqueles que realmente estão na linha de frente da crise climática.
Ribeirinhos, quilombolas, jovens de periferias, povos indígenas do Brasil e da América Latina, pessoas atingidas por grandes empreendimentos minerários, energéticos e por barragens, agricultores familiares, camponeses sem terra e muitas – muitas – mulheres marcharam em conjunto para exigir “justiça climática já”, em um ato que, segundo os organizadores, reuniu mais de 30 mil pessoas.
Com cartazes, palavras de ordem e canções, eles demonstraram que a mobilização contra as mudanças climáticas é, antes de tudo, uma luta por seus territórios – sejam eles de água ou de terra, no cerrado ou nas florestas, em áreas rurais ou urbanas, de povos indígenas ou afrodescendentes.
E em nenhum outro lugar a importância disso poderia ficar mais evidente do que em uma cidade no meio da floresta amazônica e voltada para um rio.
“A COP da Verdade é o que está acontecendo nas ruas de Belém. Eles estão lá negociando, mas a sociedade está aqui, sentindo de verdade o que está acontecendo. A crise climática não vai afetar todo mundo igual. Eles estão no transatlântico, a gente está numa canoinha. Por isso foi muito acertado trazer a COP para cá”, disse José Carlos Lima, de 67 anos, ativista da Pastoral da Ecologia Integral em Belém.
Os manifestantes pediram a demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas e a solução para os conflitos fundiários. Também se colocaram contra grandes empreendimentos em seus territórios, sejam eles do agronegócio, do setor de mineração ou de geração de energia, exigindo um lugar à mesa nas discussões sobre as transformações econômicas necessárias para frear o aquecimento global.
Esta foi a primeira grande manifestação em uma conferência do clima nesta década. Em 2021, em Glasgow (Escócia), o mundo ainda em pandemia não era propício para aglomerações. Já as três COPs seguintes – em Sharm-el-Sheik (Egito), em Dubai (Emirados Árabes) e em Baku (Azerbaijão) –, ocorreram em países não democráticos, que não autorizaram um protesto dessas proporções.
A sociedade civil estava ansiosa para ter a sua voz ouvida e compareceu em peso na marcha, sob calor intenso e um sol inclemente. Foi o dia do “povo dominando – para ninguém nos dominar”, como cantava uma dupla num pequeno carro de som.
‘Povo dominando’ quer justiça climática com dinheiro e respeito aos territórios
As cobranças mais óbvias de se imaginar em um ato pelo clima estavam lá – como um funeral para os combustíveis fósseis e mensagens contra a exploração de petróleo na Amazônia –, mas os manifestantes foram muito além e trouxeram as mais variadas demandas. Muitas delas bastante conectadas com os principais itens da negociação diplomática em andamento na Conferência do Clima da ONU.
A principal é a reivindicação por justiça climática e por uma transição justa. Esses conceitos ecoam o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, que pautam os acordos internacionais sobre o clima. A ideia é que aqueles que contribuíram mais para o problema (como os países que se industrializaram primeiro e emitiram mais gases do efeito estufa para a atmosfera) devem também atuar mais agora para resolvê-lo – por meio de financiamento ou compartilhamento de tecnologia.
Não à toa, manifestantes trouxeram a “conta da dívida do Norte Global”: um boleto imenso a ser pago aos “territórios originários, populações e comunidades tradicionais”, já vencido, e no valor de 1,3 trilhão de dólares. O valor é o mesmo que havia sido requisitado, no ano passado, pelos países mais vulneráveis às mudanças climáticas como forma de financiamento climático.
Na COP de 2024, realizada em Baku, os países tinham de definir uma nova meta de financiamento – os recursos financeiros que os países desenvolvidos deveriam “mobilizar” para os países em desenvolvimento. O anseio era por essa quantia, mas a decisão foi por um valor bem aquém da necessidade: apenas 300 bilhões de dólares. Essa discrepância tem ressoado na COP30 e é um dos elefantes na sala para os quais os negociadores de muitos países têm preferido dar as costas.
Na marcha, manifestantes também levaram cartazes pedindo a taxação de super ricos e criticaram bilionários. Daniela Bobadilla, de 27 anos, vinda da Colômbia, carregava um cartaz em inglês que dizia: “Parem de financiar guerra e genocídio e paguem sua dívida climática”, em cobrança para que os países ricos do norte global arquem com sua responsabilidade.
Já a juventude do PSOL entoava: “Esse calor está quente para c*, dá para fazer churrasco de bilionário”. Havia ainda gente exigindo mudanças na indústria da moda e nos hábitos de consumo, especialmente por parte daqueles que mais emitem gases que aquecem o Planeta.
“Eu vejo muito essa questão da justiça climática, porque vivo entre dois mundos”, contou à Pública Nora Hausweirdh, de 42 anos, nascida na Suíça e moradora de Manaus. “Por um lado, eu vivo em uma cidade que já esquentou mais do que 5 graus. E, por outro, eu tenho a minha família na Suíça, onde pessoas continuam a consumir do mesmo jeito e não enxergam que seus hábitos de consumo tem que mudar drasticamente”.
A sociedade cobra, ainda, que o dinheiro para combater a crise do clima chegue nas mãos daqueles que de fato atuam na defesa dos ecossistemas e que, ao mesmo tempo, são os primeiros a enfrentar as consequências da crise climática – “os verdadeiros protagonistas”, como disse um manifestante do alto de um carro de som.
“Ano passado, teve uma seca extrema e depois veio uma inundação muito forte que matou todas as plantas da nossa agricultura familiar”, disse Ruth Braga, de 53 anos, ribeirinha de Humaitá, no Amazonas. Ela carregava um cartaz contra a “privatização do rio Madeira” – uma referência ao decreto presidencial que cria hidrovias em vários rios amazônicos e tem sido duramente criticado por povos indígenas e comunidades tradicionais.
“Se privatizar o rio, nós vamos deixar de ser ribeirinhos. Estamos lutando pelos nossos direitos junto com os indígenas. Nós continuamos lá. E o rio significa tudo para nós”, afirmou ela.
Indígenas de vários países amazônicos, entre eles o Brasil, criaram a campanha “a resposta somos nós”. Eles querem que a demarcação e a proteção de seus territórios passe a ser considerada pelos governos como uma medida de redução de emissões, algo que está sendo discutido entre os diplomatas, nos corredores de negociação da COP30.
Defesa da Palestina nas ruas
Para os manifestantes, “justiça climática” passa por tudo isso e, ainda, pela defesa da Palestina, que apareceu em inúmeros cartazes, bandeiras e camisetas. Em vários momentos foram entoados palavras de ordem como “Palestina livre” e uma imensa bandeira da região foi carregada por manifestantes.
“Israel está matando os humanos, os animais, destruindo a natureza. Nós viemos do Líbano, do Irã e da Palestina para condenar o genocídio e ecocídio israelense em Gaza e na Cisjordânia”, disse Ali, ativista iraniano que usava o tradicional lenço palestino kufiya.
Thiago Ávila, ativista brasileiro detido pelo governo de Israel em junho por tentar furar o cerco a Gaza no barco da Coalizão Flotilha da Liberdade, estava na marcha com a mulher, Lara Souza, e o filho, e também falou à reportagem sobre como a guerra se conecta com a crise do clima.
“Viemos aqui para a COP e para a mobilização da cúpula dos povos para dizer que o mesmo sistema que permite genocídio na Palestina, no Sudão, no Congo é o que implementa projetos ecocidas na Amazônia, no Cerrado, em todos os biomas do mundo. É um sistema que explora, oprime, destrói a natureza e que precisamos derrotá-lo”, disse ele.
Para manifestantes, crise climática é crise de modelo
A marcha englobar a defesa da Palestina e várias outras agendas, demonstra a proporção que a emergência climática tomou e como ela se conecta com várias outras crises (entre guerras, perda de biodiversidade e poluição das águas), como explicou Ávila.
“Se é um problema que afeta 99% da humanidade, não tem como tratar isso como uma caixinha de pauta ecológica e ambiental. É tudo parte da forma de viver nesse mundo, e os povos indígenas apontam o caminho muito melhor, as comunidades camponesas, ribeirinhas, os povos tradicionais. É neles que a gente tem de se inspirar, e o povo palestino entre eles”, afirmou.
Cartazes contra empresas e empreendimentos específicos, além de muitos cantos contra o agronegócio, mostraram como, para muitos ali, enfrentar a crise climática passa também por combater um modelo econômico predatório, que acumula riqueza na mão de poucos às custas do bem-estar de parte da população e da saúde de seus territórios.
“Estamos sofrendo com o agronegócio, os cultivos de arroz, soja e milho, que despejam agrotóxicos no nosso rio”, disse Eliane Assunção de Souza, de 52 anos. Ela e outras mulheres erguiam uma bandeira do território quilombola de Rosário, na ilha do Marajó – já faz mais de dez anos que elas lutam pelo título.
Depois de dias de protestos, que levaram a um reforço da segurança na área em que está sendo realizada a COP30, a Marcha Global por Justiça Climática ocorreu de forma pacífica e atraiu a atenção dos moradores de Belém, que saíram nas varandas e calçadas para ver a profusão de cores, sons, bandeiras e gente que tomou as ruas.
Foi o caso de Maristela Sousa Novaes, de 63 anos, que vive há 40 anos na cidade. “Eu acredito nessa manifestação em prol do nosso mundo e na escolha do povo para ter uma vida melhor”, disse ela. “É preciso que os grandes representantes do mundo parem para pensar em quem está aqui embaixo, nas pessoas que estão sofrendo as consequências desses problemas climáticos”. O recado está dado para os próximos dias da COP30.
