Mulheres e democracia: O espelho que falta no Supremo

Foto: Antônio / STF

Foto: Antônio / STF

Por Claudia Maldonado

A saída antecipada do ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) não é apenas uma mudança de composição: é um espelho que reflete o déficit democrático que o Brasil ainda reluta em reconhecer. Aos 67 anos, Barroso decidiu deixar o cargo oito anos antes da aposentadoria compulsória, abrindo uma nova vaga que caberá ao presidente da República indicar e ao Senado aprovar. Essa decisão reabre uma questão que define a maturidade da nossa República: como falar em democracia representativa se metade da população continua invisível nas instâncias de poder?

ausência feminina nos espaços de decisão — especialmente no Judiciário — não é apenas desigualdade de gênero, mas déficit de legitimidade democrática. Ela rompe a coerência entre o princípio constitucional segundo o qual “todo o poder emana do povo” (art. 1º da Constituição Federal de 1988) e a realidade de que esse poder, em sua estrutura, é exercido quase exclusivamente por homens. Democracia representativa não é apenas a soma de votos; é a pluralidade de olhares que transforma o Estado em espelho do seu povo. E o espelho brasileiro ainda reflete um rosto masculino e homogêneo.

A democracia é como uma casa construída a muitas mãos. Mas, se só homens forem chamados a desenhar os cômodos, as mulheres continuarão entrando como visitantes — nunca como donas do espaço que também sustentam. Hoje, entre os 11 ministros do STF, há apenas uma mulher. No Congresso Nacional, as mulheres representam 52,5% da população e 53% do eleitorado, mas ocupam apenas 18,1% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 19,8% no Senado. No Judiciário, menos de 38% dos magistrados são mulheres, e menos de 20% chegam às cortes superiores. Esses números não revelam apenas um atraso cultural, mas um déficit institucional: quando o poder deixa de incluir a metade da sociedade, ele deixa de representar o povo.

Constituição de 1988 consagra no art. 3º, inciso IV, o dever de o Estado “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação”. Esse dever é reforçado pela Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), ratificada pelo Brasil em 1984, que impõe aos Estados o compromisso de assegurar igualdade substantiva — não apenas formal. No âmbito interno, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 255/2018, instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Judiciário, reconhecendo oficialmente que a sub-representação das mulheres compromete a legitimidade das decisões judiciais. A Lei nº 14.133/2021, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, também reforça a cultura de integridade e igualdade ao permitir que os editais de contratação exijam programas de compliance voltados à promoção da equidade de gênero (art. 25, §9º). E, no plano internacional, a Agenda 2030 da ONU (ODS 5) estabelece que a igualdade de gênero não é uma opção política, mas um dever de governança democrática. Exigir pluralidade de gênero na mais alta Corte do país, portanto, não é um ato de benevolência, mas o cumprimento de mandatos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

Brasil se define como uma democracia representativa, mas permanece, na prática, uma democracia de espelhos quebrados. Elegemos representantes, mas eles não refletem a diversidade do povo que os elege. Norberto Bobbio lembrava que “a democracia é o governo do público sobre o público”, e Ronald Dworkin ensinava que “a igualdade não é uma estatística, é uma virtude política”. Ambos convergem na ideia de que, sem diversidade, o poder perde legitimidade moral. Estudos recentes comprovam essa relação: processos de violência doméstica têm 31% mais chance de condenação quando julgados por juízas — diferença que demonstra que a diversidade não é estética, é substancial. Quem julga importa, porque a experiência de quem decide influencia a justiça de quem é julgado.

A vaga aberta pela saída de Barroso é mais do que uma cadeira: é um teste da coerência republicana brasileira. A escolha presidencial deve ser feita no interesse público, e não apenas no interesse político. O art. 1º da Constituição, ao afirmar que “todo poder emana do povo”, impõe um dever de completude: se metade do povo está ausente, há um vácuo de legitimidade. Indicar uma mulher ao STF — e, idealmente, uma mulher negra ou de trajetória vinculada à defesa dos direitos fundamentais — não seria um gesto de cortesia, mas um ato de reparação institucional. Como afirmou o ministro Edson Fachin, “a Constituição não é neutra: ela é um projeto de transformação social”. Cumpri-la integralmente significa assegurar que as mulheres participem dessa transformação desde o topo do sistema de Justiça.

Democracia não é espetáculo; é construção. Por isso, a sociedade civil, as universidades, as entidades de classe e os movimentos de mulheres devem ocupar esse debate com argumentos, listas, indicações e pressão pública legítima. Existem caminhos concretos: exigir transparência e critérios públicos nas sabatinas do Senado, apoiar e divulgar listas de juristas mulheres qualificadas, promover debates e audiências públicas sobre pluralidade institucional e cobrar o cumprimento das resoluções do CNJ e dos compromissos da CEDAW. Como alertava Celso Antônio Bandeira de Mello, “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma: é ofensa ao próprio sistema”. Negar voz às mulheres é violar o princípio fundante da República — o da igualdade cidadã.

O STF é o guardião da Constituição — mas quem guarda o STF? Essa pergunta é, hoje, um espelho moral do país. A democracia brasileira é representativa apenas em forma; falta-lhe substância. E a substância da democracia é o reconhecimento recíproco: cada cidadão deve ver-se no poder que o representa. A nomeação da próxima ministra — sim, ministra — será mais que um gesto simbólico. Será um passo necessário para reconstruir o espelho da República, tornando a justiça não apenas imparcial, mas inclusiva. Democracia verdadeira não é apenas o direito de votar a cada quatro anos, mas o direito de ser visto, ouvido e lembrado — em cada cadeira onde o destino do país é decidido.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a linha editorial do Capital Brasília.

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