Na Terra

Quem mente não vai para o céu, estalou a frase como um tapa na minha cara. Olhei de novo para seu pequeno emissor: um menino de quatro anos, de cachos loiros sobre os ombros, com o verde-mar e azul-celeste ao fundo. Ele mantinha os olhos brilhantes, apesar do semblante sério e reflexivo. Talvez nem notasse a maravilha de estar em meio àquele cenário de cinema. A sentença dita de forma inesperada, ao mesmo tempo em que soava assustadora, principalmente a seu profeta, também trazia algo de esperançoso: a crença de que, após uma vida sofrida cá na terra, ainda nos encontraremos no paraíso para desfrutar a felicidade. No meu sadismo de adulta ateia, quis rebater: “Sabia que o céu não existe?”, mas me resignei na dúvida sobre qual seria o maior sofrimento: temer não chegar ao paraíso ou acreditar que ele não existe? Continuamos na brincadeira de esguichar água, quando a criança repetiu seu mantra: “Sabia que quem mente não vai para o céu?”. Outro golpe que ardeu em mim. 

Mas por que será que aquela sentença me incomodou e ainda incomoda tanto? 

Fui uma criança católica que frequentava as missas de domingo sozinha. Tenho na memória a imagem da primeira confissão — uma menina de onze anos que, enquanto aguarda sua vez para chegar ao confessionário, busca seus pecados numa lista extensa entregue pelo catequista e encontra suas três falhas: mentir para os pais, brigar com os irmãos e falar palavrão. Bom, a lista é irrisória e os pecados, os mais venais possíveis, mas a fixação pela mentira já estava lá. A falsidade sempre me incomodou, talvez por ter crescido, como muitos na década de 1980, imersa num ambiente com muitas inverdades que causavam medos. O país saía de uma fase em que os abusos da ditadura militar dominavam, apesar de serem anunciados como brandos. A atmosfera do medo da tortura, do desaparecimento e do desvio ainda estava impregnada no ar. 

Cresci e, já na adolescência, passei a questionar a existência desse Deus que é onisciente e onipresente, mas que mesmo assim nos castiga. Se ele existisse, seria um sádico. Então a melhor opção era não acreditar nele. Deus morreu para mim e com ele o paraíso tombou. Me tornei uma pessoa adulta que acredita na existência de uma única vida para cada ser e que, por isso, zela por seu corpo e mente, para aproveitar o seu tempo na Terra. Já recebi, sim, o adjetivo de hedonista, que aprendi a apreciar. 

Quanto à mentira, nunca consegui aturá-la. Aos poucos, fui superando os meus receios e deixando a farsa de lado. Aprendi a falar as verdades com a delicadeza e a firmeza que a situação ou interlocutor requer. Hoje gosto de dizer a verdade, mesmo sem saber exatamente o que ela significa. Sinto que dizer abertamente o que penso aumenta meu comprometimento com o mundo. 

Talvez perdure nesta busca pela verdade uma influência cristã, advinda da confissão, mas agora sem o peso da culpa. No confessionário, buscava a expiação dos meus erros para poder ser aceita. Nunca foi um processo de cura através da palavra, mas sim um pedido de autorização divina para errar, sempre sob a ameaça. Hoje o excesso de sinceridade vem em busca de humildade, como quem reconhece suas limitações e quer melhorar, mas não pede perdão por isso.

Olho de novo para a garota no confessionário e ao menino da praia. Sinto saudade de sonhar com o céu, mas prefiro minha certeza de viver bem o presente. Entendo que os familiares e pessoas queridas daquele menino tenham lhe apresentado o paraíso, mas me incomoda saber que usaram a ameaça para torná-lo obediente ou mais sincero. Desejo que as crianças possam superar os seus medos e cuidar de seu corpo, de sua mente e deste planeta. E que a utopia coletiva seja de um ambiente acolhedor, em que a diversidade e a liberdade sejam fundamentos, sem o perigo de uma história única e restritiva.

Sair da versão mobile