“Nepal já”: Onda bolsonarista é tentativa de inspirar novo 8 de janeiro, diz especialista

As imagens das sedes do Parlamento, da Suprema Corte e do governo do Nepal em chamas rodaram o mundo, mas, no Brasil, foram impulsionadas numa espécie de inspiração diante do julgamento da trama golpista pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A crise no Nepal, que levou à renúncia do primeiro-ministro e à morte da ex-primeira dama, queimada viva, motivaram slogans digitais como “Nepal já”, incentivando a mobilização digital de bolsonaristas que aguardavam a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sete aliados, nesta quinta-feira (11). As postagens inspirando movimentos semelhantes no Brasil já estão na mira da Polícia Federal.

Por que isso importa?

  • Mesmo durante o julgamento da trama golpista, centenas de pessoas, inclusive políticos, usaram a crise no Nepal na tentativa de promover uma versão brasileira dos eventos contra o governo – muitos deles também pedem anistia irrestrita aos atos de 8 de janeiro.
  • Contexto de conflito no país está ligado à tentativa de regulação das big techs no país, o que também está em discussão no Brasil.

O uso do episódio asiático durante o julgamento da trama golpista no Supremo segue uma lógica de “criar esperança” entre militantes bolsonaristas, mas também de instrumentalizar uma crise externa para legitimar narrativas de instabilidade no Brasil, avalia o pesquisador do Grupo Ásia do Núcleo de Política e Relações Internacionais (NUPRI) da Universidade de São Paulo (USP) João Chiarelli.

“[Seria necessário para os bolsonaristas] criar uma perspectiva de que há uma saída. De tentar inflar o movimento para que [a condenação de Bolsonaro] não vingue”, explica Chiarelli. “Apesar da participação popular expressiva no dia 7 de setembro, ela foi menor do que as participações populares dos movimentos bolsonaristas nos anos anteriores. Então, precisa, a todo momento, botar lenha nessa fogueira para que o movimento não se perca”, avalia Chiarelli, que também é professor da Universidade Federal dos Pampas (Unipampa) e coordenador da Oficina de China e Leste Asiático (Ofchila) da UFRGS.

Para o professor do departamento de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Lucas Rezende, a apropriação do episódio asiático segue uma lógica de desacreditar instituições democráticas. “Essa forma de ação política, ela tem uma coerência que é semear a discórdia e dúvidas com relação ao funcionamento das instituições do Estado”. Para ele, a tentativa de associar o Nepal ao Brasil é uma tentativa de repetir “a mobilização que levou ao 8 de janeiro”.

Deputados como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Gustavo Gayer (PL-GO) compartilharam vídeos traduzidos por inteligência artificial, com legendas que exaltavam o “povo que cansou”, conforme registrou o Jota. “Menos um regime comunista no mundo. Amém”, escreveu Ferreira. O desembargador aposentado Sebastião Coelho chegou a defender uma paralisação nacional, enquanto seus seguidores assimilavam Nepal como “a solução”, nos comentários.

O ministro do STF Flávio Dino pediu providências à Polícia Federal (PF) após receber ameaças com menções constantes ao Nepal na última quarta-feira (10). As ameaças, segundo o ministro, iniciaram após o voto pela condenação de Bolsonaro e seus sete aliados, que compunham o núcleo crucial da trama golpista que culminou nos ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. O grupo foi condenado por cinco crimes, incluindo golpe de Estado e tentativa de abolição do estado democrático de direito. O ex-presidente, por ser considerado líder do grupo, foi sentenciado a 27 anos e 3 meses de reclusão, além de multa de R$ 376,4 mil.

“Entre os traços que chamam atenção, há uma constante alusão a eventos ocorridos no ‘Nepal’, o que parece sugerir uma ação concertada com caráter de incitação”, relatou Dino em seu pedido de investigação do caso à PF.

“O ministro Flávio Dino está correto no encaminhamento que fez, porque é um estímulo à violência política e, mais uma vez, um estímulo à descrença nas instituições para poder justificar a interrupção do regime democrático brasileiro”, avalia Rezende.

Nepal, big techs e Brasil: coincidências?

A crise que se instaurou no Nepal foi motivada por uma crônica insatisfação social e desemprego juvenil que bateu os 20,8% e culminou com a decisão do governo de bloquear redes sociais no país, após tentativas de regulá-las. Os protestos que se formaram após essa decisão mobilizaram uma quantidade significativa de jovens, revoltados não apenas com a perda de meios de comunicação com familiares, mas de fontes de renda a partir de plataformas como YouTube e Instagram. A insurreição no país acabou resultando em 19 mortes até o momento.

Segundo o professor de ciência política do Instituto Brasileiro do Mercado de Capitais (Ibmec) Arthur Wittenberg, “slogans como ‘Nepal já’ não explicam o contexto do Nepal, mas funcionam como gatilhos para mobilizar apoio à resistência contra regulamentações das big techs, criando um senso de urgência e legitimidade para o confronto contra as instituições governamentais”. 

Essa resistência é coordenada pelas próprias empresas, como mostra o especial A Mão Invisível das Big Techs, que aponta como essas corporações promovem quase 3 mil ações de lobby para influenciar parlamentos e governos ao redor do mundo. 

“Existe um padrão de apropriação dessas crises internacionais para reforçar discursos locais. Isso acontece por meio de uma rede de influenciadores e grupos organizados que atuam de forma coordenada”, complementa Wittenberg e adiciona: “O principal risco é o enfraquecimento da legitimidade das instituições democráticas, especialmente em momentos sensíveis, como o julgamento de lideranças políticas”.

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