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Não conhecemos a identidade de boa parte dos (pelo menos) 121 mortos pela operação policial do governador Cláudio Castro, com exceção dos quatro policiais identificados, e a imprensa já qualifica as vítimas como “117 suspeitos”, como se isso de alguma forma amenizasse as execuções – sem prisão, processo legal ou julgamento – praticadas por agentes do Estado.
Afinal, na terra do infame “bandido bom é bandido morto” pode pegar bem para a audiência, e para os eleitores, como acredita Castro, esquecer que, por mais crimes que uma pessoa possa ter cometido (e nesse caso nem sabemos se cada um dos “suspeitos” os cometeu, há inclusive relatos de inocentes mortos), continua a ser detentora de direitos constitucionais como qualquer cidadão brasileiro. Entre eles, o direito primordial à vida e a um julgamento justo – o que nos protege, ou deveria nos proteger, de ser vítima de execução.
É difícil falar em legítima defesa quando se promove uma guerra com o objetivo de matar, não de prender, como revelam os números do maior massacre perpetrado pela polícia, que chegou a superar os mortos do Carandiru. Foram mais mortes do que prisões (113), quase todas de gente do andar de baixo do crime organizado como a maioria dos que vivem ali – os chefes do crime moram bem e jantam com os colegas da Faria Lima como sabemos.
O fato de os integrantes do CV estarem fortemente armados, inclusive com drones-bomba como Cláudio Castro já sabia – tecnologia, aliás, obtida através de um militar da Marinha – só prova que a operação policial não foi planejada para prender, já que isso exigiria outra lógica operacional. Até porque, como revelado agora, embora a operação policial nem tenha sido comunicada às autoridades federais, os supostos alvos já tinham conhecimento dela. 
O tal do “muro do Bope”, aquela corporação que tem como “missão”, cantada em hino, “entrar pela favela e deixar corpo no chão”, foi explicado pelas autoridades do Rio como uma estratégia para encurralar os perseguidos na mata, onde estavam outros policiais das forças especiais – com certeza com permissão, senão ordem expressa, para executá-los.
Uma versão que não combina de jeito nenhum com a outra, apresentada pelas mesmas autoridades, de que a polícia “não sabia” que havia dezenas de mortos ali.
Mas o secretário de segurança não apenas sustentou o inverossímil como acusou de “fraude processual” os moradores da Penha, que carregaram dezenas de corpos abandonados de vizinhos, parentes, amigos e os expuseram em praça pública, desmascarando a farsa. O gesto acompanhado pelo desespero e choro das mães, das companheiras grávidas, das crianças que perderam pais ou irmãos reafirma a humanidade negada às vítimas.
Essa não é uma estratégia de repressão ao crime que se coaduna com um estado democrático de direito, ao contrário, o coloca em xeque, como disse à Pública o pesquisador Pablo Nunes. Pura carnificina, que não deve ser confundida com guerra – a morte dos quatro policiais também é de responsabilidade dos que planejaram e autorizaram a operação cruel e sem resultados concretos previstos, além da pilha de cadáveres.
Especialistas têm sido unânimes em afirmar a inutilidade desse tipo de operação para combater o crime organizado, retomar o território ou trazer a segurança para as comunidades – objetivos mais uma vez oficialmente declarados pelo governo do Rio.
Ou seja, para além da perversidade, a operação não se justifica a não ser por motivos eleitoreiros ou ainda mais escusos, como sugere a coincidência da ação policial com os interesses da milícia, que vem perdendo território para a expansão do CV.
A política, a polícia e a milícia (com forte presença de policiais e ex-policiais e defendida por políticos, como os da família Bolsonaro) não podem ser vistas separadamente no estado em que um deputado federal e um vereador associados à milícia tramaram com o chefe do Departamento de Homicídios da Polícia Civil para contratar matadores (e ex-policiais) com o objetivo de assassinar uma vereadora, Marielle Franco, e não serem acusados pelos crimes.
É também nesse buraco que temos que cavar para entender porque o governador Cláudio Castro planejou a operação mais letal da polícia, já letal, do Rio de Janeiro. É por isso que Castro reclama de não receber ajuda do governo federal – por motivos eleitoreiros – mas quer Brasília e a PF bem longe de seus negócios.