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Na semana passada, publicamos mais uma leva de reportagens sobre o lobby das Big Techs. Desta vez, o foco da nossa investigação transnacional foi nos intermediários – organizações que fazem o chamado “lobby indireto”, ou seja, trabalham avançando os interesses dessas corporações, mas mesclados em outras bandeiras, escondidos sob uma capa de “independência”.
E o personagem principal das reportagens é ninguém menos que Tony Blair, o ex-primeiro-ministro britânico famoso principalmente por ter, ao lado de George W. Bush, engambelado o mundo todo com a história mentirosa de que havia armas de destruição em massa no Iraque, ignorando apelos da ONU e invadindo o país para derrubar Saddam Hussein – e matar mais de meio milhão de iraquianos no processo.
Pois Tony Blair, desde que deixou o governo em 2007, tem se dedicado à sua fundação, o Tony Blair Institute for Global Change (TBI), que promove projetos “em prol do desenvolvimento” em países pobres. No começo, o foco era “fazer com que a globalização funcione”, depois Blair surfou na onda do antiterrorismo. Seu instituto manteve contratos com a Arábia Saudita, país que visitou após o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi e consultoria estratégica ao ex-governante do Cazaquistão, depois que as forças de segurança do país mataram manifestantes. Funcionários do instituto também foram flagrados envolvidos na discussão sobre um plano pós-guerra para Gaza que incluía a criação de uma “Riviera trumpista” em território palestino. Hoje, Blair é considerado para presidir uma “autoridade de Gaza” depois do genocídio.
Bom, nos últimos anos, o foco do instituto passou a ser “ajudar governos e líderes a transformar ideias ousadas em realidade” por meio do aconselhamento em estratégia e construção de políticas públicas, com foco no “poder da tecnologia”. E em especial, propagar o uso de Inteligência Artificial (IA).
Coincidentemente, entre 2021 e 2023 o bilionário Larry Ellison, fundador da Oracle e um dos homens mais ricos do mundo, doou US$ 130 milhões ao TBI e prometeu mais US$ 218 milhões em investimento.
O aporte mudou a cara da instituição, segundo funcionários ouvidos pelo Lighthouse Reports, um dos 17 veículos parceiros na investigação transnacional A Mão Invisível das Big Techs, liderado pela Pública e pelo CLIP, Centro Latinoamericano de Periodismo de Investigación. Criou-se, segundo essas fontes, uma relação absolutamente promíscua – os executivos do Instituto teriam passado por “retiros” juntos com os da Oracle, e os funcionários das Big Techs participariam de reuniões e teriam acesso até aos calendários de reuniões dos funcionários do Instituto. Mas, pior do que isso, funcionários e documentos relatam que o Instituto passou a sugerir produtos da Oracle para governos de diferentes países.
As soluções e IA eram empurradas inclusive para países que têm outros problemas, em especial na África. “Eles têm problemas com fome, pobreza, desemprego em massa, e nós estamos fazendo com que se comprometam com projetos sofisticados, como o uso de drones e IA”, disse um funcionário. Outros insiders relataram que os potenciais problemas e perigos da IA não eram abordados pelos projetos do TBI.
Por trás desse tipo de atuação há três grandes interesses da Big Tech. O primeiro é mais direto: enquanto constrói uma estratégia de uso de IA pelo poder público, o TBI sugere que a melhor tecnologia para abraçá-la é da Oracle – o que é conhecido no mundo tech como “land and expand” (conquistar e expandir). O segundo é descrito em especial no Reino Unido, onde o TBI tem pressionado pela criação de uma “biblioteca” única de dados do sistema público de saúde, uma base de dados valiosíssima (estimada em até US$ 12 bi por ano) com dados desde 1948.
Finalmente, talvez de maneira mais perniciosa, o que o instituto tem feito é propagar uma agenda aceleracionista da Inteligência Artificial.
É isso que o TBI tem feito aqui no Brasil, majoritariamente, desde que aportou por essas terras há pouco mais de um ano. Segundo reportagem da Laura Scofield, o TBI já se reuniu 21 vezes com autoridades brasileiras. Tony Blair encontrou Lula duas vezes apenas neste mandato. Mas o principal foco do TBI é o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. O TBI tem convidado a ministra Esther Dweck para encontros internacionais “a porta fechadas”, realizou treinamentos no Ministério e chegou perto de fechar um acordo para ajudar na implementação do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, a cargo do Ministério.
Mas, como disse o estudioso professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Paulo Faltay, “a história mostra que, na verdade, não existe nenhuma tecnologia inevitável. Elas são fruto de decisões tomadas”.
Ele afirma que a noção da “inevitabilidade tecnológica” tem sido produzida “dentro desses lobbies e dessas ferramentas de pressão, especialmente junto de gestores e parlamentares, que às vezes, têm até uma boa intenção, mas são seduzidos por esse discurso de um solucionismo tecnológico”.
A agenda “aceleracionista” da IA é um dos exemplos de agenda que beneficia as Big Techs, e por isso elas gastam regiamente para que intermediários defendam essa agenda. Assim, parecem vozes da sociedade, experts ou acadêmicos clamando pela adoção de IA pelo poder público e se levantando contra qualquer tipo de regulação que coloque um freio a isso.
Alguns institutos fazem pesquisas patrocinadas que cabem como uma luva nos argumentos das empresas para influenciar a opinião pública.
Um exemplo que aconteceu aqui no Brasil foi um estudo publicado recentemente pelo Instituto Reglab. O relatório “Remuneração por Direitos Autorais em IA: Limites e Desafios de Implementação” foi patrocinado pelo Google, pela Meta e pelo escritório Baptista Luz Advogados, “mas conduzido e interpretado de forma independente pelo Reglab”, segundo o site. O estudo foi lançado meses depois do PL da IA ser aprovado no Senado, e enquanto ele tramita na Câmara dos Deputados, e embora funciona como um instrumento de lobby dos seus patrocinadores, foi repercutido por sites como Jota e Estadão.
Pouco depois, o Reglab lançou outro estudo, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) estava estudando a inconstitucionalidade do Marco Civil. Publicado em 2 de junho, quatro dias antes da retomada do julgamento pelo STF, o estudo argumentava que, se fosse declarada a inconstitucionalidade, isso poderia custar R$ 777 milhões aos cofres do Judiciário brasileiro nos próximos 5 anos. O estudo foi financiado pelo Google, que na mesma semana trouxe seus pesos-pesados como o Presidente de Assuntos Globais para “rodadas de conversa” em Brasília com políticos e jornalistas e acionou o CEO no Brasil, Fábio Coelho, para falar do risco de “censura” se o STF decidisse contra o Artigo 19.
Finalmente, tenho um outro exemplo de estudo encomendado para servir como arma de lobby, desta vez pago pela Amazon e feito pelo escritório Strand Partners, e enviado pela própria Amazon em resposta aos pedidos de comentários feitos pela equipe transnacional de reportagem do projeto A Mão Invisível das Big Techs. A pesquisa foi feita em diferentes países e, segundo a assessoria de imprensa da Amazon, “detalha os prós e contras da regulação de IA”.
No Brasil, o estudo pretensamente retratou o que pensam empresários pequenos, médios e grandes. E adivinhe? Ele conclui que uma das principais preocupações dos empresários brasileiros que usam IA são “custos crescentes de conformidade [com a lei]” e que “regulamentações novas, claras ou específicas restritivas podem inflar ainda mais esses custos, desencorajando a adoção e a inovação em IA num momento em que o impulso é crítico”.
Portanto, a lição de hoje é: se você vir algum estudo, pesquisa, ou proposta de projeto que defenda que há apenas benefícios na adoção de IA, desconfie. Ele pode ser mais uma das ferramentas sub-reptícias usadas pela mão invisível das Big Techs.