Pela primeira vez, a Petrobras terá que compensar o impacto climático da sua produção de petróleo e gás.
No último dia 15 de setembro, o Ibama concedeu a primeira licença ambiental da próxima mega operação da empresa no pré-sal. Mas, diante da grande quantidade de gases do efeito estufa que o empreendimento vai emitir, o órgão obrigou a Petrobras a apresentar um plano com ações específicas contra mudanças climáticas no processo de licenciamento. Uma solicitação que a empresa relutou em atender, como mostram os documentos do licenciamento analisados pela reportagem. A Petrobrás só cedeu 14 meses depois do pedido inicial.
Os dez navios-plataforma da chamada “Etapa 4 do pré-sal”, que ficarão na Bacia de Santos, devem produzir uma média de 773 mil barris de petróleo por dia, mais do que nas outras etapas do pré-sal e o equivalente a 23% de toda a produção brasileira, segundo a empresa.
Toda essa extração, porém, tem um alto custo climático. Sozinha, a operação do empreendimento poderá emitir mais de 7,6 milhões de toneladas de gases do efeito estufa em 2035, o que equivale a quase 1% da meta de emissões de todo o país para o ano e a cerca de 9% da meta de emissões do setor de energia como um todo, conforme o Ibama.
Por que isso importa?
A nova operação de extração pré-sal na Bacia de Santos pode emitir em 2035 mais de 7,6 milhões de toneladas de gases do efeito estufa, o que equivale a 9% da meta de emissões do setor de energia como um todo.
Uma das principais expectativas em torno da 30ª Conferência do Clima da ONU, que será realizada em Belém, é que ela dê encaminhamento a uma decisão tomada em 2023, na COP28, em Dubai, de que os países façam uma “transição para longe” dos combustíveis fósseis.
Resistência e concessão: 14 meses para a Petrobras ceder
Diante desses impactos, o Ibama quer que a Petrobras faça sua parte no enfrentamento das mudanças climáticas (causadas pela concentração cada vez maior de gases do efeito estufa na atmosfera). Pela primeira vez no licenciamento ambiental de um empreendimento do pré-sal, o órgão solicitou, ainda no ano passado, a apresentação de um programa específico sobre mudanças climáticas, como revelou, em julho, o jornal Folha de S.Paulo.
Nos primeiros meses de tratativas, a Petrobras se limitou a informar ações voluntárias que já realiza, argumentando contra a necessidade de tomar medidas adicionais contra os impactos climáticos, principalmente no caso de ações de compensação e adaptação. As duas primeiras respostas da empresa foram consideradas insuficientes pelo Ibama, inclusive pela diretoria de licenciamento, que afirmou, em julho, que a análise da licença prévia só continuaria se a empresa atendesse às recomendações do órgão sobre o programa.
Foi só na terceira resposta, apresentada em agosto, que a petroleira cedeu e trouxe medidas mais específicas para enfrentar os impactos climáticos do projeto – ainda que com valores de investimento baixos se comparados ao montante destinado à extração de petróleo e mantendo sua argumentação contra a solicitação.
Foi o necessário para destravar o licenciamento do projeto. Com ressalvas, o Ibama acatou a proposta da empresa e concedeu a licença prévia ao empreendimento. Mas com um porém: para conseguir a próxima licença, a de instalação, a Petrobras precisará fazer ajustes no plano contra mudanças climáticas.
“Pelo senso de urgência imposto pela crise climática, é inegável a pertinência dessas exigências e o papel irrecusável de protagonismo que tanto o Ibama quanto a Petrobras devem assumir em seu enfrentamento”, afirmou o Ibama no documento em que avaliou a última proposta da empresa.
Segundo o órgão, uma vez definidas as medidas específicas contra as mudanças climáticas no caso da Etapa 4, esse tipo de exigência deve ser incorporado a todos os processos de licenciamento de produção de petróleo e gás na costa brasileira.
Assim, as ações estabelecidas pela Petrobras podem vir a servir de exemplo para outros empreendimentos produtores de petróleo e gás, acelerando a redução e a compensação das emissões.
Impactos climáticos no licenciamento: por que isso importa?
Nos documentos apresentados ao órgão, a própria Petrobras reconhece que as emissões da Etapa 4 representam um impacto ambiental negativo que vai muito além dos 30 anos de duração previstos para o empreendimento.
“Considerando que a vida média do CO₂ atmosférico [dióxido de carbono, principal gás do efeito estufa] é superior a 100 anos, este impacto é permanente e irreversível”, afirma o Estudo de Impacto Ambiental do projeto.
“Os impactos sobre o clima são também impactos ambientais”, afirmou à reportagem Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e hoje diretora no Observatório do Clima, apontando para o cerne de todo processo de licenciamento ambiental: identificar impactos de um determinado empreendimento e prever medidas para reduzir ou compensá-los.
“A inclusão de variáveis relacionadas ao clima nas análises [do Ibama], bem como de condicionantes com essa perspectiva nas licenças, pode ocorrer, mas na prática é muito rara. Acho excelente que o Ibama tenha incluído essa demanda no processo da Etapa 4 do pré-sal na Bacia de Santos”, completou Araújo.
No Rio de Janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da cerimônia de posse da presidente da Petrobras, Magda Chambriard, em junho de 2024
A Petrobras já se comprometeu publicamente à meta de reduzir as emissões de suas operações em 30% nos próximos cinco anos e neutralizá-las totalmente até 2050. Também já vem realizando algumas das ações recomendadas pelo Ibama – como publicar os dados de suas emissões, agir para monitorar as emissões de metano (gás com maior potencial de aquecimento que o CO₂) e implementar medidas para reduzir as emissões dos navios-plataforma.
Até agora, porém, todas essas iniciativas não faziam parte do licenciamento ambiental. Assim, não passavam de compromissos voluntários, cuja evolução era acompanhada e reportada apenas pela própria Petrobras.
Já a inclusão dessas medidas no licenciamento exige cronogramas e indicadores específicos, monitorados pelo Ibama, o que pode vir a impulsionar a redução das emissões da Petrobras no pré-sal.
A empresa, porém, tentou fazer o que pôde para evitar o que classificou como “obrigações exclusivas”. Ao Ibama, argumentou que medidas contra mudanças climáticas, especialmente de compensação das emissões e de adaptação de comunidades, precisam de regulamentação específica e “aprimoramento do ordenamento jurídico”.
O Ibama discordou desses argumentos, lembrando que a legislação ambiental brasileira segue o princípio do “poluidor pagador”, segundo o qual os custos de medidas para prevenir e controlar impactos poluidores são de responsabilidade dos empreendedores.
“Nesse sentido, dissociar a obrigação de agir da existência de uma norma regulamentar específica para mitigar um impacto identificado pode ser entendido como tentativa de transferência para a sociedade e para o futuro de um passivo que é, originalmente, do empreendimento”, afirmou o órgão no documento que analisou a emissão da licença prévia.
“Mudança climática não é coisa do futuro”
Para justificar a demanda, o Ibama citou relatórios científicos que mostram como a queima de combustíveis fósseis (derivados de petróleo, gás e carvão) é a principal responsável pelo aquecimento global e como os atuais compromissos firmados pelos países são insuficientes para enfrentar as mudanças climáticas.
Em 2023, último ano com dados disponíveis, as emissões do setor de energia somaram 18% de todas as emissões brasileiras, 420 milhões de toneladas. O Brasil se comprometeu internacionalmente a reduzir pelo menos 850 milhões de toneladas de suas emissões totais nos próximos dez anos.
Enquanto isso, apenas os dez navios-plataforma da Etapa 4, que ficarão a dezenas de quilômetros da costa do Rio de Janeiro e de São Paulo, devem emitir até 2058 mais de 234 milhões de toneladas. Só no ano de pico, as emissões devem chegar a quase metade (43%) de todas as emissões das usinas termelétricas do país (movidas a carvão, diesel e gás). E isso considerando apenas as emissões da produção do petróleo e do gás – as emissões estimadas no uso desses produtos são de uma ordem muito maior, mais de 3.600 milhões de toneladas até 2058.
“Considerando o contexto de agravamento da crise climática, a urgência na redução das emissões líquidas, e a responsabilidade compartilhada de atendimento das metas climáticas, não parece razoável o desenvolvimento da exploração petrolífera com tamanho saldo positivo de emissões de gases de efeito estufa”, afirmou o Ibama em relação às estimativas apresentadas pela Petrobras de emissões do empreendimento.
A solicitação de um programa específico sobre mudanças climáticas é respaldada por manifestações do Ministério Público de São Paulo, que acompanha o processo e considerou insuficiente o diagnóstico inicial que a Petrobras apresentou sobre seus impactos climáticos.
Também encontra eco nas preocupações expostas em audiências públicas pelos moradores locais, que falaram da falta de informações sobre mudanças climáticas nos primeiros estudos apresentados pela empresa e lembraram as chuvas extremas de fevereiro de 2023, que mataram 65 pessoas no litoral de São Paulo.
Casas destruídas em deslizamentos em São Sebastião, depois de chuvas extremas no litoral de São Paulo, em fevereiro de 2023
“Percebi que, nos impactos ambientais, estão completamente invisíveis as questões da mudança climática”, afirmou Tatiana Cardoso, liderança caiçara do Fórum de Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira, em uma audiência realizada em abril deste ano, no litoral de São Paulo, conforme a ata do encontro.
“A mudança climática não é coisa do futuro, vários de nós aqui estamos passando por desastres e impactos nos seus territórios, e isso não está colocado. E sabemos que a extensão do petróleo tem impacto direto nas mudanças climáticas”, completou ela.
Para várias das comunidades diretamente afetadas pelo empreendimento, a adaptação às mudanças climáticas é um problema urgente. Em maio, povos indígenas e comunidades tradicionais do Vale do Ribeira pediram que o Ibama determine à Petrobras a criação de um programa de adaptação climática, com “medidas concretas”, como a proteção de manguezais e zonas de pesca e a criação de sistemas de alerta para eventos extremos.
Compensação e adaptação: desafios além das ações voluntárias
Ainda antes desse pedido, o Ibama já havia estabelecido a adaptação como um dos cinco eixos do programa que a Petrobras teve que apresentar (os outros eixos são: transparência, monitoramento, mitigação e compensação).
No caso das ações previstas para os eixos de transparência, monitoramento e mitigação, a empresa já publica os dados de suas emissões de gases do efeito estufa e também atua para monitorar as emissões de metano (gás mais potente que o CO2) por fazer parte de uma iniciativa internacional da ONU sobre o problema. Também usa tecnologias para reduzir as emissões de suas operações – ações chamadas de “descarbonização”. Assim, terá apenas que realizar alguns ajustes para atender às novas exigências.
Já os eixos de adaptação e compensação vão além do que a empresa já realiza hoje e, nesse sentido, são mais desafiadores. Os documentos analisados pela reportagem mostram a resistência da Petrobras em aceitar essas duas frentes.
As bases para esses pedidos do órgão foram criadas há quinze anos, quando o Ibama publicou uma regulamentação determinando que a diretoria de licenciamento avaliasse medidas de mitigação e compensação de impactos de atividades emissoras de gases do efeito estufa. Ainda assim, esse tipo de exigência não havia aparecido no licenciamento de etapas anteriores do pré-sal.
“Desde o licenciamento ambiental da Etapa 3 do pré-sal, o agravamento da crise climática e a urgência de agir impõem a busca por medidas adicionais”, afirmou o Ibama em um dos documentos analisados.
Navio-plataforma no campo de Itapu, no pré-sal da Bacia de Santos, a 200 km da costa do Rio de Janeiro
Nas discussões climáticas, adaptação se refere a medidas para aumentar a resiliência de cidades, comunidades, infraestruturas e atividades econômicas aos riscos da crise climática, como o aumento de eventos extremos e a elevação do nível do mar.
Para esse eixo, a Petrobras só propôs algo além de ações voluntárias em sua última resposta. Nela, sugeriu uma chamada pública com investimentos de R$ 18 milhões, entre 2025 e 2029, para apoiar projetos de adaptação climática em áreas urbanas vulneráveis, priorizando municípios no litoral norte de São Paulo e regiões do Rio Grande do Sul que enfrentam riscos crescentes de eventos extremos.
O Ibama considerou a proposta adequada, mas solicitou que a empresa justifique o valor de R$ 18 milhões.
Já em relação à solicitação sobre medidas de compensação de suas emissões, a Petrobras começou argumentando que não tem controle sobre as emissões indiretas do petróleo e do gás que produz. Disse ainda que na ausência de um marco regulatório medidas de compensação seriam inadequadas.
Assim, pediu que só fossem consideradas para compensação as emissões “associadas a eventos extraordinários”, como acidentes, por exemplo.
O Ibama não aceitou. E foi novamente só na terceira resposta que a empresa deu sinais de ceder. Ainda que mantendo sua argumentação contra a solicitação, a Petrobras apresentou uma proposta de aplicar R$ 100 milhões em projetos de restauração florestal, melhoria do mercado voluntário de créditos de carbono e conservação de biomas até 2035.
Para comparação, em um período de apenas 3 meses, no último trimestre do ano passado, a Petrobras investiu 2,8 bilhões de dólares no desenvolvimento da produção do pré-sal da Bacia de Santos.
Não à toa, o valor de R$ 100 milhões para compensação chamou a atenção do Ibama, que apontou se tratar de uma quantia 13 vezes menor do que o valor de referência usado nas compensações de emissões extraordinárias de projetos financiados pelo Fundo Amazônia.
Ao conceder a licença prévia, o órgão afirmou que a empresa não pode se limitar a um único montante até 2035 no eixo de compensação, “devendo haver o compromisso da Petrobras com novos aportes” para garantir que a empresa atinja a própria meta de neutralizar todas as suas emissões até 2050.
Questionada pela reportagem, a Petrobras afirmou que o plano apresentado “está alinhado com ações em andamento na empresa”, possibilitando o avanço no processo de licenciamento. Ainda assim, a empresa disse acreditar que a abordagem “mais adequada e efetiva” para o enfrentamento das mudanças climáticas é a que “vem sendo conduzida pelo governo brasileiro, no qual cada setor dará sua contribuição para as estratégias de mitigação e adaptação climática do Plano Clima”. Para a empresa, “essa integração é uma forma mais eficiente e custo-efetiva de unir esforços e ações relacionadas às mudanças climáticas”.
A Petrobras se coloca como uma das “líderes na transição energética”, ainda que esteja entre as 25 maiores produtoras de combustíveis fósseis do mundo e continue planejando a expansão da extração de óleo e gás – como mostram a Etapa 4 do pré-sal e os planos declarados da companhia de perfurar a região da Foz do Amazonas em busca de mais petróleo.
Seu plano estratégico prevê US$ 16,3 bilhões a serem investidos na transição energética entre 2025 e 2029 – um aumento de 42% em relação ao plano anterior, fato que costuma ser destacado pela Petrobras. “Esse montante abrange não apenas projetos de energias de baixo carbono, mas também iniciativas voltadas para descarbonização das operações e pesquisa, desenvolvimento e inovação, que permeiam todos os segmentos”, diz a empresa.
Ainda assim, esse volume de recursos representa apenas 14,7% do total disponível para investimentos. Quase 70% será destinado para a exploração e produção de fósseis.