A doação de órgãos é um gesto de generosidade capaz de salvar inúmeras vidas, mas ainda enfrenta barreiras importantes no Brasil. Pela legislação do país, não existe cadastro nacional de doadores, a decisão final cabe à família, e esse tem sido um dos maiores obstáculos.
Segundo o Ministério da Saúde, a taxa de negativas familiares foi de 45,4% em 2024, número que se mantém praticamente estável. Para a professora Ilka Boin, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Transplante De Órgãos (ABTO), o problema não é de resistência, mas de falta de conscientização.
“Metade das famílias ainda recusa a doação, muitas vezes por desconhecimento. É fundamental que a pessoa manifeste em vida o desejo de doar e deixe isso claro para seus familiares. Essa comunicação faz toda a diferença”, afirma
Mais de 78 mil pessoas na fila
Em 2024, o país bateu recorde histórico de transplantes realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), com mais de 30 mil procedimentos, um crescimento de 18% em relação a 2022. De acordo com o Ministério da Saúde, foram 4.086 doadores efetivos, o maior número já registrado.
Os transplantes mais realizados no último ano foram de córnea (17,1 mil), rim (6,3 mil), medula óssea (3,7 mil) e fígado (2,4 mil). Ainda assim, a demanda é muito superior. Atualmente, cerca de 78 mil pessoas aguardam por um órgão ou tecido. Só para rim, são 42,8 mil. Em seguida, os mais demandados são córnea (32,3 mil) e fígado (2,3 mil).
Doação de órgãos depende da autorização de todos os familiares diretos do falecido
Desconfiança é fruto da desinformação
Boa parte da desconfiança vem do desconhecimento sobre a morte encefálica, condição necessária para a doação de órgãos vitais, como coração, fígado, rins e pulmões.
“É diferente de um derrame, que pode ter tratamento. Na morte encefálica não há mais circulação sanguínea no cérebro, e a situação é irreversível. Somente após os testes clínicos, com autorização da família, podemos iniciar o processo de doação”, explica Ilka, que também é responsável pelo transplante hepático da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ela lembra que os avanços recentes — como a prova cruzada virtual, que acelera a compatibilidade entre doador e receptor — têm contribuído para melhorar a qualidade dos transplantes. Ainda assim, a informação correta à população continua sendo um dos principais fatores para aumentar as doações.
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Regra em outros países
Para facilitar a doação, alguns países adotam o modelo de consentimento presumido, também chamado de “opt-out”. Nesse sistema, todos são considerados doadores, a menos que expressem formalmente a vontade de não doar. França, Bélgica, Holanda, Irlanda e Espanha seguem esse formato.
No Brasil, a legislação chegou a adotar esse modelo na década de 1990, mas ele foi revogado pouco tempo depois. Segundo o professor Sérgio Arap, cirurgião de cabeça e pescoço e presidente da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT), do Hospital Sírio-Libanês, a discussão voltou à pauta recentemente.
“Há um projeto de lei em debate que propõe retomar esse modelo, embora o tema ainda divida opiniões”, explica.
Para Arap, qualquer mudança deve vir acompanhada de campanhas educativas. “Quando alguém próximo precisa de um órgão, a comunidade se sensibiliza. Mas é preciso ir além, começando desde cedo, nas escolas, com informações claras sobre a importância da doação. Também é importante reforçar que o ato de doar não interfere no velório nem no aspecto do corpo, o que ajuda a quebrar resistências”, diz.
Lei de conscientização
No Distrito Federal, uma lei sancionada em novembro de 2023 criou a Política Distrital de Conscientização e Incentivo à Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos. A iniciativa estabelece ações para aumentar o número de doações e oferecer melhores condições aos pacientes transplantados.
Entre as medidas estão o acolhimento às famílias, a capacitação de profissionais de saúde, campanhas educativas e a ampliação do acesso a serviços especializados. O texto também prevê apoio psicológico a transplantados e familiares, fornecimento contínuo de medicamentos e incentivo à reinserção dessas pessoas no mercado de trabalho.
“Doar é um ato nobre, capaz de mudar destinos. Mas para que isso aconteça, precisamos conversar mais sobre o tema dentro de casa, antes que seja tarde”, finaliza Ilka Boin.
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