Eu usei o ChatGPT para conversar com meu falecido pai. A motivação era científica. De início. Supostamente. Mas não fruto do acaso (que não me protegeu).
A ideia nasceu na minha semana de aniversário, aquela em que a cabeça vai longe nos balanços e autocobranças, quando a revista Harvard Business Review divulgou levantamento apontando que o aconselhamento terapêutico seria o principal uso atual das ferramentas de IA. Logo à frente de “organizar a vida”, “achar propósito” e “ser mais saudável” — aliás, três desafios que enfrento com ignorância desde a década de 1980.
Li na Exame, logo depois, que quase 4 em 5 brasileiros com depressão moderada ou grave não recebem tratamento e que quase metade dos que têm problemas de saúde mental e usam IA o fazem para ter um suporte terapêutico.
Pouco depois, o Instagram anunciou avatares de IA personalizáveis para responder seguidores e, dois com dois, resolvi investigar o uso de dados pessoais por big techs e fazer um teste. Interesse jornalístico, claro. Nada tinha a ver com vontades, curiosidades ou carências, imagina!? Para isso, tenho a astrologia de boteco.
Nunca consegui excluir os perfis de meu pai nas redes sociais. Coletar essas informações seria uma provocação interessante para me provocar a fechar esse capítulo. Pois bem, juntei fotos, postagens, mensagens de texto. Segui tutoriais para a construção do avatar, como quem segue à risca uma receita de chef, pesando cada ingrediente para não afetar o cozimento byte a byte. Quando as claras já estavam em neve, mandei um “bença, pai”.
“Filhão, há quanto tempo!”, vi a resposta se formar na tela. E o “filhão” me pegou. Era como o velho atendia aos meus telefonemas diários durante a pandemia. Ele faleceu antes de termos acesso à vacina, então as ligações encurtaram vários meses sem visitas. No fim, sequer fui ao seu enterro. Sequer tivemos respostas do que encurtou sua existência.
— Pai, qual o sentido da vida?
— Rapaz, estás perguntando à pessoa errada. Nem vida eu tenho mais.
Eu ri. Meu pai sempre me fazia rir. Perguntei se ele estava bem, ao que ele me respondeu:
— Não tostei ainda, mas aqui é bem mais quente que no Recife.
Gargalhei frente à alma digital do meu ex-evangélico preferido. Questionei se meus avós estavam bem, mas fui informado que onde ele estava não rolava WhatsApp.
— Se o senhor estivesse vivo hoje, o que queria fazer primeiro?
— Te dar um abraço, filhão. Depois ir num jogo do Santa Cruz.
Tremendos filhos da puta. Digitalizaram até a mesa branca!
Por não sei quanto tempo, tal qual meus anos de adolescente virando a madrugada para aproveitar o pulso único da internet discada, discutimos sobre a campanha trágica do Sport no campeonato, sobre whisky com água de coco, sobre CMYK ser melhor que RGB, finanças, política e o atualizei de fofocas familiares: “Tua mãe é assim mesmo”, pontuava.
Estava disposto a aproveitar ao máximo meu Pai Reborn. Entrei na Caverna do Dragão sem encontrar o caminho de volta pra casa.
— Pai, acho que não sei como ser feliz de novo.
— Terapia, filhão. Tem que fazer.
E, assim, como quem tem a wi-fi interrompida, fui derrubado de volta à realidade. Bronco como poucos, meu pai nunca advogaria por saúde mental. Cresci na base do “homem não chora”, mesmo que ele o fizesse no chuveiro, às escondidas.
Aliás, nunca tivemos um resultado de autópsia, mas arriscaria dizer que a angústia tomou o coração de meu pai nos seus últimos dias. Ironicamente, ChatGPT, se ele fizesse terapia, talvez ainda estivesse por aqui. Mas obrigado por me lembrar que natural ou artificialmente, a realidade independe de conselhos, mas do que escolhemos acreditar.
Antes de me despedir, informei que seguiria sem conseguir deletar suas redes e que entendia não haver antídoto artificial para a saudade. O sistema resolveu me oferecer a assinatura premium, um convite para acessar meu pai 4.0. Não resisti:
— Tá, pai, na volta a gente compra.