Um dos pontos mais polêmicos em debate na proposta de reforma do Código Civil é a sugestão de reduzir ou até eliminar o direito sucessório do cônjuge ou companheiro sobrevivente. A mudança, que vem sendo apresentada como medida de “modernização”, levanta fortes críticas entre especialistas por representar, segundo eles, um grave retrocesso jurídico e social — sobretudo no que diz respeito à proteção das mulheres e à valorização dos laços afetivos.
Caso seja aprovada, a proposta poderá permitir que mulheres que viveram décadas ao lado de seus parceiros fiquem excluídas da herança, mesmo após uma vida de convivência, cuidado e construção conjunta de patrimônio. Na prática, transforma o fim da vida em comum em uma disputa de bens, e não em um momento de proteção e reconhecimento.
Afeto não pode sair de cena
A sucessão, ressaltam os juristas, não se limita à partilha de bens. Ela carrega um valor simbólico, ético e social. Ao restringir os direitos de quem compartilhou uma história de vida, o projeto ignora pilares da Constituição Federal de 1988, que consagra a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o pluralismo das formas de família (art. 226) e a igualdade entre os membros da família (art. 5º).
A proposta sinaliza uma possível volta à lógica patrimonialista do antigo Código Civil de 1916, quando apenas o cônjuge formalmente casado tinha algum direito à herança — e ainda assim, de forma limitada. Já os companheiros em união estável não eram sequer reconhecidos como herdeiros legítimos.
Esse modelo foi superado com o reconhecimento, pela Constituição e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), das múltiplas formas de entidade familiar. A decisão do STF no julgamento do RE 878.694/MG (Tema 809), por exemplo, equiparou os direitos sucessórios de cônjuges e companheiros, reforçando o papel do afeto como elemento estruturante do direito de família.
Mulheres idosas: as mais atingidas
A mudança afeta diretamente um grupo específico e vulnerável: mulheres acima dos 60 anos, que muitas vezes se dedicaram à vida familiar e hoje enfrentam dificuldades no mercado de trabalho, exclusão social e dependência econômica. Para essas mulheres, retirar o direito à herança significa privá-las de segurança e dignidade justamente na velhice.
“É uma forma sutil, mas devastadora, de violência institucional. O Estado diz: ‘você cuidou, construiu, esteve ao lado, mas não tem direito’”, afirma uma advogada especialista em direito das sucessões.
Um risco à segurança jurídica
Outro ponto de preocupação é a quebra da confiança no sistema jurídico. Famílias foram formadas com base nas regras vigentes, que hoje garantem proteção tanto ao cônjuge quanto ao companheiro. Alterar essa lógica, sem transição ou proteção às relações já estabelecidas, fere o princípio da segurança jurídica, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Segundo os críticos, a proposta tem aparência técnica, mas carrega uma carga ideológica profunda: tenta esvaziar o papel do afeto e recolocar o patrimônio no centro das decisões, como se a família fosse apenas uma sociedade de bens.
Modernização com exclusão não é progresso
Embora o Código Civil precise, sim, de atualizações, especialistas defendem que essas mudanças devem caminhar em direção à inclusão e à valorização da diversidade familiar, e não ao apagamento de vínculos não formalizados em cartório. O Brasil do século XXI é marcado por uniões diversas, afetos plurais e arranjos familiares que desafiam modelos tradicionais.
“Atualizar a legislação é necessário. Mas isso não pode significar apagar conquistas. Modernizar não é excluir”, resume a jurista e ex-ministra do STF, Cármen Lúcia, em recente entrevista sobre o tema.
Um debate que exige mobilização
A exclusão do cônjuge ou companheiro sobrevivente da sucessão não é inevitável. Trata-se de uma escolha legislativa e, portanto, política e cultural, que pode (e deve) ser contestada. A sociedade, o Congresso e os tribunais terão de decidir se o país seguirá avançando na proteção da dignidade humana ou retrocederá à lógica de um passado excludente.
A sucessão deve refletir não apenas quem deixa bens, mas principalmente quem permaneceu, quem cuidou e quem dividiu a vida. E isso, concluem os especialistas, o patrimônio sozinho não pode medir.