*O artigo foi escrito pelas professoras Deyse Carvalho, pós-doutoranda de imunologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e Sandra Rodrigues Mascarenhas, biotecnologista da UFPB, e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
Um hormônio presente em mamíferos e extraído de plantas, a ouabaína, tem demonstrado efeitos promissores contra o vírus Zika. Historicamente usado como veneno de flecha na África Oriental, essa substância foi utilizada em alguns países como esteroide cardiotônico, ou seja, para fortalecer as contrações do coração, e tem potencial de ser reposicionada como tratamento antiviral.
O vírus da Zika é associado a distúrbios neurológicos, principalmente em fetos, causando uma Síndrome Congênita. As epidemias de Zika em 2015 e 2016 tiveram um impacto devastador no Brasil, levando ao nascimento de milhares de bebês com microcefalia. Apesar de a emergência sanitária ter mobilizado muitas pesquisas na área, até hoje ainda não há medicamentos específicos ou vacinas disponíveis para o tratamento da doença.
Segundo o Ministério da Saúde, entre janeiro e junho de 2024, foram registrados 8.519 casos prováveis de Zika no Brasil, um aumento de 9% em relação ao mesmo período do ano anterior. E a presença disseminada do vetor de transmissão, o mosquito Aedes aegypti, torna possível a ocorrência de novos surtos e epidemias. Diante desse cenário, é essencial o desenvolvimento de antivirais eficazes para mitigar os impactos dessa infecção.
Ouabaína: de veneno a tratamento médico
A ouabaína foi identificada em 1888, sendo extraída de plantas como Acocanthera ouabaio e Strophanthus, usadas tanto para envenenar flechas quanto em práticas medicinais na África. Algumas tribos acreditavam que essas plantas tinham poderes divinos, sendo capazes de curar ou punir, dependendo do merecimento da pessoa. Mesmo reconhecendo sua toxicidade, curandeiros já utilizavam a ouabaína em pequenas doses para tratar insuficiência cardíaca e úlceras.
Por mais de dois séculos, essa substância foi usada no tratamento de condições cardíacas, embora o mecanismo exato de sua ação fosse desconhecido. Apenas na década de 1960, descobriu-se que ela regula as concentrações de cálcio, sódio e potássio nas células do coração, aumentando sua capacidade de contração.
Dengue, zika e chikungunya são doenças cujos nomes são conhecidos no Brasil. Os três vírus transmitidos pelo mesmo mosquito, o Aedes aegypti, têm maior incidência no país em períodos de chuva e calor, e apresentam sintomas parecidos, apesar de pequenas sutilezas os diferenciarem
Joao Paulo Burini
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Febre, dor no corpo e manchas vermelhas são sintomas comuns da dengue e das outras as doenças. Apesar disso, a forma distinta como evoluem, a duração dos sintomas e o grau de complicação são algumas das diferenças entre elas
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Estar atento aos sinais e saber identificar as distinções é importante para um diagnóstico e tratamento precisos, pois, apesar do que se pensa, essas doenças são perigosas e podem matar
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Na dengue, os sinais e sintomas duram entre dois e sete dias. As complicações mais frequentes, além das já mencionadas, são dor abdominal, desidratação grave, problemas no fígado e neurológicos, além de dengue hemorrágica
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Além disso, dores atrás dos olhos e sangramentos nas mucosas, como a boca e o nariz, também podem acontecer em pacientes que contraem a dengue
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Os sintomas da zika são iguais aos da dengue, só que a infecção não costuma ser tão severa e passa mais rápido. Há, no entanto, um complicador caso a pessoa infectada esteja grávida
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Nestas situações, a doença pode prejudicar o bebê em formação causando microcefalia, alterações neurológicas e/ou síndrome de Guillain-Barré, no qual o sistema nervoso passa a atacar as células nervosas do próprio organismo
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Já os sintomas da chikungunya duram até 15 dias e, segundo especialistas, provoca mais dores no corpo, entre as três doenças
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Assim como a infecção pela zika, a chikungunya pode resultar em alterações neurológicas e síndrome de Guillain-Barré
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Apesar de não existirem tratamentos para as doenças, há medicamentos que podem aliviar os sintomas, bem como a indicação de repouso total. Além disso, aspirinas não devem ser utilizadas, pois podem piorar o quadro do paciente
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Caso haja suspeita de infecção por qualquer um dos vírus, é importante ir ao hospital para identificar do que se trata e, assim, iniciar o tratamento adequado o mais rápido possível
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O Aedes aegypti é um mosquito que se aproveita de lixo espalhado e locais mal cuidados e é favorecido pelo calor e pela chuva. Por isso, impedir a presença de água parada em sua casa, rua e empresa é o suficiente para travar a proliferação do inseto
Então, em parceria com o professor Lindomar Pena, da Fiocruz Pernambuco, testamos a ouabaína em culturas de células infectadas pelo Zika. Os resultados foram promissores: a substância reduziu significativamente a quantidade de partículas virais nas células. Além disso, em colaboração com o doutor Elton Chaves e o professor Demetrius Araújo, da UFPB, fizemos simulações computacionais para entender a interação entre a ouabaína e proteínas do vírus. As análises sugerem que a molécula pode inibir a replicação viral, mas esses achados ainda precisam ser confirmados em testes laboratoriais. Esses primeiros resultados foram publicados na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
Em seguida, a aluna Deyse Carvalho foi contemplada com uma bolsa Fulbright para realizar parte de seu doutorado na University of Texas Medical Branch, sob a orientação dos Drs. Scott Weaver e Ping Wu. Lá, fizeram testes em células-tronco neurais humanas e em um modelo animal da Síndrome Congênita do Zika.
Os resultados, publicados na revista Molecular Therapy, mostraram que a ouabaína reduziu a infecção viral e evitou danos ao desenvolvimento de novos neurônios. Nos modelos animais, preveniu a redução do tamanho dos fetos e das cabeças, além de diminuir a presença do vírus na placenta e nos tecidos fetais. Também reduziu a inflamação associada à infecção. Esses achados reforçam o potencial da ouabaína como um possível tratamento para a síndrome congênita associada ao Zika.
Nosso grupo continua investigando os efeitos dessa substância, agora focando na interação entre neurônios e células do sistema imunológico. Além disso, iniciamos uma nova colaboração com o Dr. Stephan Ludwig, da University of Münster, na Alemanha.
Desafios e perspectivas futuras
A ouabaína representa um avanço importante porque já é um medicamento conhecido, o que pode acelerar seu desenvolvimento como um antiviral. Esse processo, chamado de reposicionamento de fármacos, reduz custos e tempo na criação de novos tratamentos.
No entanto, há desafios. Embora em alguns países, como a Alemanha, a ouabaína ainda seja utilizada no tratamento de condições cardíacas, a substância não é mais aprovada para uso clínico pelos órgãos reguladores no Brasil (Anvisa) nem nos EUA (FDA). Isso é devido ao risco de ser tóxica em doses elevadas – afinal, não é à toa que já foi usada como veneno em flechas.
Para contornar essas limitações, pesquisadores da Universidade Federal de São João del-Rei, liderados pelo professor José Augusto Villar, desenvolveram moléculas semelhantes, que apresentam menor toxicidade, mas mantêm seus efeitos terapêuticos. Essas novas versões já estão sendo testadas quanto à sua eficácia contra o vírus Zika.
Ainda assim, transformar a ouabaína em um medicamento contra o Zika exige muitos testes, especialmente porque a população-alvo principal inclui gestantes e fetos, o que requer protocolos de segurança rigorosos. Nosso estudo representa um passo importante no combate à Síndrome Congênita do Zika. Já solicitamos uma patente relacionada ao tema e seguimos trabalhando para que, no futuro, essa pesquisa possa se transformar em um tratamento eficaz e seguro contra o vírus Zika e suas doenças associadas.