As forças de segurança pública do Rio de Janeiro, sob as ordens do governador Cláudio Castro (PL), realizaram nesta terça-feira (28/10) a operação mais letal da história do estado, nos complexos do Alemão e da Penha, conjuntos de favelas na zona norte da capital fluminense. Aos menos 64 pessoas foram mortas, entre as quais 60 eram civis e as outras quatro, policiais.
A maior chacina policial do Rio de Janeiro era até então a do Jacarezinho, de 2021, em que 28 pessoas foram assassinadas. O novo recorde ocorre seis meses depois de ter sido encerrado o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”.
A ADPF havia sido ajuizada justamente em função da alta letalidade policial no estado, mas terminou com uma reviravolta, na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou não mais haver um “estado inconstitucional” na segurança pública fluminense e ordenou a formulação de um plano para “recuperar territórios”, o que movimentos sociais alertaram ser um incentivo à lógica de guerra às drogas e de ocupação militarizada das comunidades.
Governo Cláudio Castro diz que ação se adequa à ADPF 635, em que STF determinou plano para “recuperar territórios”
Governo Cláudio Castro diz que ação se adequa à ADPF 635, em que STF determinou plano para “recuperar territórios”
Matança causa pânico entre moradores e fecha escolas
A matança ocorreu em meio ao cumprimento de 51 mandados de prisão contra suspeitos de tráfico de drogas que estariam nos complexos da Penha e do Alemão, todos eles ligados à facção criminosa Comando Vermelho (CV). Ao menos 81 pessoas foram presas, segundo a Polícia Civil fluminense.
Em razão dos tiroteios da chamada Operação Contenção, 48 unidades municipais de ensino foram impactadas, segundo a prefeitura do Rio — entre elas, 31 estão no Alemão e as demais, na Penha. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) cancelou as aulas noturnas na capital e em Duque de Caixas nesta terça, medida também adotada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Mais de 200 linhas de ônibus tiveram o itinerário afetado e 71 veículos foram usados como barricadas, segundo o Rio Ônibus, entidade que reúne empresas de transporte na capital. “Não há como consolidar os números que aumentam a cada instante”, escreveu em nota. “As principais regiões afetadas são: Anchieta, Méier, Serra Grajaú-Jacarepaguá, Av. Brasil, Linha Amarela, Cidade de Deus, Chapadão, Engenho da Rainha, Complexo do Alemão e Penha.”
À Ponte, o ativista Raull Santiago, morador do complexo do Alemão, relatou que, enquanto circulava pelo local na tarde desta terça, recebeu todo tipo de pedido de socorro: relatos de desaparecimentos, vizinhos que haviam sido baleados e até crianças em crise de pânico em função dos tiros. “Acabei de ver dois blindados passarem aqui na minha frente, ainda tem muita polícia no entorno, uma tensão muito grande na região”, afirmou ele, que é diretor-executivo do Instituto Papo Reto.
O Voz das Comunidades, jornal comunitário criado no complexo do Alemão, divulgou um vídeo de uma moradora que precisou ficar trancada em um quarto junto dos filhos para se proteger. A casa dela ficou destruída e com rastros de sangue após a operação.
Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro
Operação não diz se prendeu alvo principal
A operação deveria cumprir mandados expedidos pela 42ª Vara Criminal da Capital, solicitados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Os pedidos vieram após uma investigação conduzida pelo órgão, por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), junto da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), submetida à Polícia Civil.
Segundo o Ministério Público, 67 pessoas foram denunciadas pelo crime de associação para o tráfico. Três delas também devem responder por tortura. O principal alvo seria Edgar Alves de Andrade, liderança do CV — até aqui, a operação não conseguiu, no entanto, prendê-lo. A Polícia Civil diz que foram apreendidas “diversas armas, drogas e rádios comunicadores”.
A ação fez uso de 2,5 mil policiais, dois helicópteros, drones, 32 blindados terrestres e 12 veículos de demolição. Também participam a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil; a Coordenadoria de Segurança e Inteligência (CSI), do MPRJ; e o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), unidade de elite da Polícia Militar (PMERJ).
A DRE e o Bope também estiveram presentes em uma outra operação noticiada pela Ponte, em setembro, nos bairros de Senador Camará e Vila Aliança, na divisa entre a capital fluminense e o município de Bangu. Naquela ocasião, seis pessoas foram mortas. A ação tinha o objetivo, segundo as forças policiais, de prender dois traficantes que estariam na região, o que também não foi atingido.
O MPRJ comunicou que o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) acompanhou a ação para “assegurar o cumprimento das diretrizes fixadas pelo STF na ADPF 635”. Afirmou ainda ter enviado técnicos ao Instituto Médico Legal (IML) para realizar perícia própria.
Matança tem relação direta com decisão do STF, diz especialista
Para Fransérgio Goulart, coordenador-executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), a operação no Rio de Janeiro é resultado direto da ação do Estado na ADPF das Favelas. “As favelas perderam, e o Estado ganhou. O STF tem responsabilidade nesse processo, assim como o governador”. A própria gestão estadual chegou a publicar nas redes sociais que “a operação está sendo realizada cumprindo as exigências da ADPF 635”.
Fransérgio destacou ainda que o número de mortos da ação, que chamou de genocídio, tende a crescer. Para ele, a violência não é um episódio isolado, mas expressão de uma política que destina recursos públicos para financiar a morte: “Cada vez mais eles abocanham o orçamento público para isso”.
Já Raull Santiago criticou a postura de Claudio Castro, que comemorou em uma coletiva de imprensa o resultado da operação policial: “É muito doloroso a gente olhar a televisão e ver o governador comemorando como se houvesse um grande êxito, diante de mais de 60 corpos, de moradores baleados, escolas sem aula, trânsito interrompido e famílias em pânico”.
Segundo ele, a operação escancara “a falha da segurança pública do nosso país”, que aplica nos territórios de favela uma lógica de “belicidade do conflito pelo conflito”. Raull também relaciona a ofensiva ao calendário político: “Infelizmente, mais uma vez a gente vê a falência estratégica da política de segurança que usa o morador de favela como experimento de violências extremas. E, ao mesmo tempo, a gente pode facilmente associar isso a uma tentativa eleitoral de chamar a atenção”.
Em meio à megaoperação, houve troca de acusações entre o governador Cláudio Castro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Castro acusou o governo federal de negar apoio, afirmando que o estado está “sozinho” no enfrentamento ao crime organizado e que pedidos de blindados e reforço das forças federais teriam sido ignorados pelo governo Lula (PT).
Em entrevista coletiva, Lewandowski rebateu dizendo que nunca houve solicitação formal desse tipo, que todos os ofícios enviados foram atendidos e que a União mantém presença no estado com recursos, equipamentos e operações da Polícia Federal. O ministro ainda cobrou que o governador “assuma suas responsabilidades” e que “se ele sentir que não tem condições, ele tem que jogar a toalha e pedir GLO ou intervenção federal”.
Leia a íntegra do que diz o MPRJ
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) acompanha a operação policial em andamento nos complexos do Alemão e da Penha por meio do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP/MPRJ), e de seu Plantão de Monitoramento, com o objetivo de assegurar o cumprimento das diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 635.
O MPRJ informa ainda que enviou técnicos periciais ao Instituto Médico Legal (IML) para a realização de perícia independente, em conformidade com suas atribuições institucionais. As informações referentes aos desdobramentos da operação foram encaminhadas pelo Plantão de Monitoramento para a análise da 5ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada do Núcleo Rio de Janeiro.
O procurador-geral de Justiça, Antonio José Campos Moreira, está mantendo contato permanente com as equipes do MPRJ em atuação, e a Instituição segue em monitoramento contínuo dos desdobramentos da ação e de seus impactos sobre a cidade.