A brasiliense Marcela* ainda luta para se reerguer do rombo de R$ 500 mil em suas contas bancárias causado pelo seu ex-namorado. A servidora pública foi enganada pelo seu então parceiro que inventou ter uma doença renal grave para convencê-la a financiar um falso tratamento e custear viagens ao exterior. A mulher se viu vítima de um golpe quando descobriu as mentiras e percebeu que o ex não pretendia devolver os valores emprestados.
“Hoje, eu não tenho nada. Não consegui gerar um patrimônio, nem constituir bens. Mesmo trabalhando há 12 anos no serviço público, porque a maioria desse tempo foi pagando dívidas que ele contraiu no meu nome”, conta Marcela*.
Além do prejuízo financeiro, a mulher carrega as marcas psicológicas deixadas pela traição. Ela conta que a vergonha e a culpa a impediram de procurar ajuda no início. O namoro durou cinco anos, mas a vítima só conseguiu levar a denúncia adiante cerca de dois anos depois do rompimento.
Casos como o dela expõem como a violência patrimonial e o estelionato amoroso podem ser tão devastadores quanto a violência física, e como o amor pode se tornar uma arma nas mãos de golpistas.
Entre 2014 e 2019, Peterson Willener Barbosa Ribeiro manteve relacionamento afetivo com a vítima e, durante esse período, solicitou diversos empréstimos e transferências bancárias. Para obter os valores, ele alegou necessidade de custear tratamento médico para doença renal grave, incluindo sessões de hemodiálise, além de viagens a Dubai e Canadá para cursos profissionais que nunca ocorreram.
“Não dava mais para eu entender que era um relacionamento normal. Eu via ele com traços de psicopatia, de uma pessoa extremamente nociva. Eu passei a olhar para ele como um uma pessoa que fez uma violência comigo. Um agressor”, afirma.
Ciclo de empréstimos
Marcela* e Peterson se conheceram ainda na adolescência, quando estudaram juntos em uma escola do Distrito Federal. Anos depois, se reencontraram e começaram um relacionamento amoroso. Segundo a vítima, antes mesmo do namoro ser oficializado, ele já pedia dinheiro emprestado para investir no trabalho dele na área de construção.
“Ele sempre estava criando alguma situação na qual tinha que ajudá-lo porque eu seria a única pessoa que naquele momento poderia ajudar. Sempre era uma questão de urgência. E eu emprestava o dinheiro por achar que era meu compromisso enquanto namorada”, relembra.
Inicialmente, os pedidos de Peterson eram modestos, passando em pouco tempo de R$ 800 para R$ 3 mil. A situação escalou quando surgiu a oportunidade de um curso no exterior, para o qual a mulher se dispôs a ajudar, apesar das dúvidas sobre a distância. O curso não se concretizou, mas a dívida, sim.
Com as reservas pessoais esgotadas, o homem começou a incitar a vítima a buscar crédito facilitado, explorando sua condição de servidora pública.
Marcela*, que nunca havia feito empréstimos, se viu em um ciclo vicioso que começou com empréstimos no caixa eletrônico até chegar no crédito consignado. Tudo para conseguir ajudar o parceiro, acreditando que ele pagaria as dívidas posteriormente.
Durante o relacionamento, a mulher fez sete empréstimos e também contraiu R$ 90 mil em dívidas com cartões de crédito emprestados ao golpista.
“Ele também me fez assinar como testemunha da locação de um espaço que seria um escritório de trabalho. Só que, no final, não era isso. Eu assinei como fiadora de um imóvel para a mãe dele e ele não pagou o aluguel. Então, a a dívida foi para mim. Inclusive, ainda estou arcando com ela”, acrescenta.
Doença de mentirinha
Com a fonte dos pedidos de dinheiro por motivos de trabalho se esgotando, o golpista mudou a tática, apelando para problemas de saúde. Tudo começou com uma infecção urinária, evoluindo para internações e a necessidade de diálise dia sim, dia não, em Goiânia.
Peterson usava a suposta doença renal para se ausentar e evitar a presença da ex-companheira, que se oferecia para visitá-lo. Ele dizia precisar fazer o tratamento em hospitais particulares, alegando que morreria se fosse tratado na rede pública.
Com pena da situação, a mulher passou a ajudá-lo financeiramente, realizando transferências que chegaram mil a R$ 15 mil, acreditando que ele usaria o dinheiro para o tratamento. Nesse meio tempo, ele também inventou viagens para Curitiba, que suspostamente seriam com o intuito de tratar a doença.
A vítima afirmou que nunca o acompanhou a nenhuma consulta médica tampouco viu qualquer exame dele e que ele sempre dava um jeito de ela não acompanhá-lo. Durante todo o relacionamento, ele evitou conhecer a família dela e apresentá-la aos seus próprios parentes até que o tal tratamento acabasse. Peterson dizia para a mulher que não queria ser visto “como uma pessoa doente”.
Ele também se encontrava com a então namorada com camisas de mangas compridas, porque falava que estava muito feio o braço por conta da diálise e não queria que a mulher visse.
Promessa de “vida normal”
Já no último ano em que estavam juntos, Peterson falou para a então namorada que havia se curado da doença renal, mas que iria precisar que ela o ajudasse financeiramente para que ele conseguisse voltar a trabalhar na área da construção.
“A minha expectativa era da gente viver numa boa depois, já que ele tinha se curado, e agora conseguiríamos ficar juntos, ter uma vida normal que não foi possível durante os tratamentos em outras cidades”, justifica.
Segundo a vítima, ele dizia ter perdido a clientela por causa do tempo afastado e chegou a afirmar que recebera uma proposta de trabalho em uma construtora em São Paulo.
Nesse meio tempo, o golpista também pediu dinheiro para fazer cursos em Dubai e no Canadá sob o pretexto de que eram oportunidades de “formação única”. Ele também alegou que a experiência duraria alguns meses e que iria aprender técnicas da área do drywall.
Pouco depois de retornar dessas supostas viagens, o homem contou que viajaria ao Maranhão para o casamento de um tio, antes de seguir para São Paulo. A namorada chegou a ajudá-lo financeiramente na viagem. Mas descobriu, mais tarde, que o casamento era do próprio Peterson com outra mulher.
“A desculpa dele foi que virou uma bola de neve os empréstimos, que ele não sabia como me pagar e, também, não sabia como sair da relação me devendo. Vivi essa dor muito sozinha, tendo que recuperar dinheiro. Na época, meu salário caía, o banco pegava tudo para pagar dívida”, diz.
Peterson admitiu ter mentido para a ex-namorada sobre a gravidade de um problema de saúde e sobre supostas viagens internacionais, com o objetivo de conseguir dinheiro emprestado.
Ele afirmou que, entre o período do namoro, realmente teve cálculo renal, mas negou ter sofrido de uma doença grave que exigisse hemodiálise. Peterson disse que aumentou o problema de saúde porque estava com vergonha, precisava de dinheiro emprestado e já não sabia mais como pedir.
Reparação na Justiça
Depois de diversas tentativas frustradas de receber o dinheiro, e já orientada por uma advogada, a mulher procurou a polícia e registrou uma ocorrência contra Peterson por estelionato e entrou com uma ação na Justiça do DF nas esferas cível e criminal. Apesar das promessas, o acusado não pagou nem 10% do valor que devia.
Com a tramitação do processo na Justiça, ela descobriu que não foi a primeira, nem a última vítima dele. Peterson já respondia por diversos estelionatos na área civel envolvendo o trabalho dele como construtor.
“Demorei muito até entender que tinha sido enganada. Eu sempre tentava me colocar na situação de culpa e desvalidar meus sentimentos. Peterson agiu de modo a me colocar numa situação que eu até duvidasse do que aconteceu. Ele me induziu ao erro”, desabafa Marcela.
Peterson foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) por estelionato praticado contra a ex-namorada, em contexto de violência doméstica. A decisão foi assinada em 2 de outubro deste ano.
Ele deve cumprir uma pena de dois anos e 11 meses de reclusão, em regime aberto, além de 20 dias-multa e indenização de R$ 1 mil por danos morais.
Estelionato sentimental
Atualmente, o estelionato sentimental é entendido como uma modalidade do crime de estelionato tipificado no artigo 171 do Código Penal, ainda não possui uma tipificação criminal própria.
A advogada Isadora Costa, responsável pela defesa da servidora pública relatou que um dos maiores desafios ao representar a mulher foi provar que, de fato, ela havia sido vítima de um crime.
“A gente precisava demonstrar que nunca existiu nada do que ele disse, e que a vítima não queria o dinheiro de volta só porque não tinham mais um relacionamento. Pouco se falava sobre o estelionato sentimental, né? E pouco se falava da violência patrimonial, a violência psicológica não era nem tipificada ainda”, relembra a advogada.
Para a advogada, a perversidade dos atos de Peterson e o valor do prejuízo foram chocantes. Como em casos de estelionato não é possível ajuizar uma ação diretamente, era necessário construir um inquérito policial sólido.
Na visão de Isadora, o resultado vai além da punição criminal: é uma forma de validar a dor da cliente. “É mais do que uma condenação criminal, é uma questão de mostrar para ela que foi uma vítima e que tá tudo bem ser vítima”, pontua.
A batalha judicial, embora desafiadora, caminha para a conclusão, aguardando o trânsito em julgado para que a servidora possa, finalmente, colocar um ponto final nesse processo.
“Às vezes a gente faz o estereótipo da mulher vítima de violência doméstica, que tem uma escolaridade inferior, é de uma situação mais vulnerável, tem uma dependência financeira do companheiro, mas não, hoje a violência contra a mulher é generalizada”, pondera a vítima.