Visibilidade trans: mudanças de gênero crescem 330% em 5 anos no DF

Em 2016, a assistente social e militante transfeminista Lucci Laporta, 32 anos, enfrentou uma longa e burocrática jornada para retificar o nome no registro civil. À época, a transexualidade ainda era tratada como transtorno mental, e o processo exigia laudos médicos, perícias e autorização judicial, uma realidade bem diferente da que existe hoje.

O número de pessoas que alteraram nome e gênero diretamente em cartórios no Distrito Federal cresceu 330% entre 2019 e 2024. Enquanto há seis anos foram registradas apenas 39 retificações, em 2024 esse número saltou para 168, refletindo maior acesso aos direitos da população trans e não-binária.

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Dados consolidados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) também apontam que 70 mudanças de gênero já foram registradas nos primeiros cinco meses de 2025 no DF.

Para conseguir fazer a retificação dos documentos, a assistente social participou de um mutirão da Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF). Em um primeiro momento, Lucci foi orientada a mudar apenas o nome.

“Eu estava bem no começo da minha transição. O juiz da Vara de Registros era mais propenso a deferir o pedido do que qualquer outro juiz da Vara de Família, porque quando você troca o gênero, o processo é direcionado para essa outra vara”, conta.

Após conseguir a autorização na Justiça, ela começou a peregrinação para mudar o nome na certidão de nascimento, na identidade e na Receita Federal. Em 2018, o processo se repetiu para trocar o gênero nos documentos.

Dessa vez, o juiz que analisou o pedido dela pediu que passasse por uma psicóloga do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). A assistente social avalia que o processo foi constrangedor e vagaroso.

“A gente tinha que falar da nossa infância, quando que começou a gostar de boneca e a se sentir menina, como se nossas experiências fossem todas padronizadas, e até as mulheres cisgênero tivessem que gostar de boneca”, relembra.

Veja o relato da Lucci:

 

Mudança regulamentada em cartório

Hoje, a mudança de nome e gênero nos documentos é possível sem a necessidade de ação judicial. Qualquer pessoa com mais de 18 anos pode requerer a adequação de sua certidão de nascimento ou casamento à identidade autopercebida.

Desde 2018, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o pedido para a realização da mudança de prenome e gênero pode ser realizado diretamente em um dos mais de sete mil cartórios de registro civil do país. Na retificação, é possível alterar somente o prenome, somente o gênero ou ambos.

Para quem é menor de idade, o procedimento só é feito judicialmente. A ação é feita com base na autonomia da pessoa, não sendo necessária a efetivação da cirurgia de redesignação sexual. Todavia, apesar das mudanças, o trâmite de mudança no registro civil ainda é caro e burocrático, o que dificulta o acesso para uma grande parcela da população trans do país.

O processo legal de alteração do nome implica na cobrança de diversas taxas. Após esta etapa, ainda é preciso pagar pela emissão da segunda via de diversos documentos oficiais como era o caso, no Distrito Federal, da carteira de identidade.

Na capital do país, desde 2023, a Lei Complementar nº 1.024/2023, de autoria do deputado Fábio Felix (PSol), isenta as pessoas transexuais e travestis do pagamento pela segunda via do documento de identidade civil.

“Renascimento”

O servidor público da Defensoria Pública do DF (DPDF), Rudá Nunes Alves, 38 anos, passou pelo processo de mudança de nome e gênero no cartório em 2018. Atualmente, ele é referência no Ofício da Diversidade LGBTQIAPN+ do Núcleo de Direitos Humanos.

De acordo com ele, o procedimento demorou cerca de três meses para se concretizar. “O processo demorou um pouco, já que nasci no interior do Piauí. Nesses casos, o cartório de Brasília precisa se comunicar com o cartório [do local] em que eu nasci para realizar a averbação. O trâmite é complexo, são ao menos 12 certidões e diversos documentos que precisam ser apresentados”, detalha.

Para ele, não ter que justificar a divergência nos documentos e, principalmente, não ter a identidade trans exposta todas as vezes que precisava se identificar impactou positivamente na vida dele.

“Simbolicamente, representa o meu renascimento. Diversas vezes, as pessoas se utilizam da ausência da retificação para negar o reconhecimento dos nossos nomes, identidades e direitos”, comenta.

Rudá avalia que um dos mais importantes avanços na legislação seria uma lei de identidade de gênero que vise garantir o direito à identidade de gênero e facilite a alteração de nome e gênero nos documentos de pessoas trans.

“No que se refere ao atendimento à população trans é imprescindível que haja cursos de formação continuada obrigatórios para servidores públicos em direitos da população LGBTQIAPN+ em todas as áreas de atuação de forma a garantir o atendimento humanizado e sem discriminação a população trans”, enfatiza.

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“Identidade respeitada no papel”

O estudante Marco Lucca Nunes Rodrigues, 27 anos, decidiu buscar a retificação quando já se reconhecia plenamente como um homem trans. “Viver com documentos que me desrespeitavam era um peso desnecessário. Não era só uma questão burocrática, era sobre respeito e segurança. Quis que minha documentação refletisse quem eu sou de verdade”, comenta.

Nascido e criado em Brasília, ele conviveu com uma realidade onde ser quem era nem sempre foi permitido, pois veio de uma família católica e conservadora. Aos 18 anos, foi expulso de casa por causa da sua identidade de gênero.

Em 2018, Marco deu entrada no processo de alteração de nome e gênero no cartório com apoio do Centro de Referência Especializado da Diversidade Sexual, Religiosa e Racial (Creas). De acordo com ele, depois que reuniu os documentos e entrou com o pedido, levou exatamente quatro dias úteis para a nova certidão ficar pronta.

“Foi uma libertação. A retificação simbolizou o fim de um ciclo de um nome que não mais me representava e o início de um onde minha identidade é respeitada no papel. Verem um nome que não condiz com sua identidade é um gatilho constante de vergonha e invisibilidade”, reflete.

Marco conta que a retificação lhe abriu portas e transmitiu maior segurança para ele. “Evitei situações constrangedoras e me sinto muito mais confortável em entrevistas, atendimentos e até em novas relações pessoais que eu não preciso ficar me explicando, sem antes saber se a outra pessoa pode ser transfóbica ou não”, comenta.

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Como fazer a mudança de nome e gênero em cartório?

Para a alteração de nome e gênero, é necessário apresentar todos os documentos pessoais, comprovante de endereço e certidões dos distribuidores cíveis e criminais (estaduais e federais) dos últimos cinco anos, além das certidões de execução criminal, dos Tabelionatos de Protesto e da Justiça do Trabalho. Após análise documental, o oficial de registro realiza uma entrevista com a pessoa interessada.

A Arpen-Brasil disponibiliza uma cartilha completa com orientações para o público. Clique aqui para acessar.

Não é necessário laudo médico ou psicológico para a realização do ato. Eventuais apontamentos nas certidões não impedem a mudança, cabendo ao Cartório comunicar os órgãos competentes sobre a alteração realizada.

A emissão dos demais documentos (como RG e CPF) deve ser solicitada diretamente aos órgãos responsáveis.

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