Por Ana Paula Miranda*
Roberto Kant de Lima (FOTO) formou-se em Direito, mas, ironicamente, foi justamente para se afastar dele que decidiu seguir carreira na Antropologia. No entanto, o acaso — ou melhor, seu orientador no Museu Nacional (MN), Roberto DaMatta — o colocou de volta nessa temática: obrigou-o a cursar uma disciplina de Antropologia Jurídica com o professor Robert Shirley, que na ocasião era professor visitante no MN. Essa experiência mudou o rumo de sua vida para sempre.
Após concluir o doutorado em Harvard, Kant de Lima retornou ao Brasil e criou, na Universidade Federal Fluminense (UFF), a disciplina de Antropologia do Direito — da qual tive o privilégio de ser aluna e orientanda de graduação. A partir dali, iniciamos uma parceria que uniu amizade, afinidade intelectual e trabalhos, de pesquisa e gestão universitária. Fui sua orientanda de iniciação científica em um projeto financiado pelo CNPq (“Religião, Direito, Sociedade em uma Perspectiva Comparada”) que conectava religião, direito e sociedade, numa abordagem comparada, juntamente com meus colegas Glaucia Mouzinho, Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Rosane Carreteiro, no final dos anos 1980. Desde sempre se mostrou muito preocupado com a institucionalização e os modos de financiamento da pesquisa antropológica, problema que persiste até hoje.
Kant de Lima construiu sua carreira com base em uma sólida prática etnográfica. Ele sempre insistiu na necessidade de enxergar a polícia como parte integrante do sistema judiciário — uma visão inovadora, especialmente em um campo ainda tão preso à normatividade. Sua postura contrastava com a de muitos juristas, sociólogos e cientistas políticos, que, segundo ele, observavam o sistema de justiça com pouca base empírica. Criticava a visão universalista do direito, argumentando que o direito é também uma construção cultural, que precisa ser compreendida em função de seus contextos locais.
Sua crítica era dupla: apontava a falta de reflexividade tanto nos operadores do direito e da segurança pública, quanto entre os próprios cientistas sociais, que muitas vezes ignoravam os efeitos da normatividade sobre a realidade observada. Foi a partir dessa tensão que ele formulou um modo original de pensar políticas públicas e de intervir em campos diversos — como nas pesquisas que coordenou sobre comunidades pesqueiras em Itaipu e Arraial do Cabo, por exemplo. Seu legado é que não se pode falar de dados se não há a construção de consensos sobre os fatos.
Em 1999-2000 escrevemos um artigo, juntamente com Michel Misse, para o BIB/Anpocs, no qual analisamos a produção bibliográfica brasileira em ciências sociais sobre criminalidade, violência urbana, justiça criminal e segurança pública, o que se confirmou posteriormente com o crescimento sistemático de pesquisas nessa área, revelando o quanto ainda é preciso seguir pesquisando.
Sua excelência em pesquisa foi reconhecida com a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico (ONMC) em 2008, um dos maiores reconhecimentos da ciência brasileira. Sua contribuição à segurança pública foi simbolizada com o grau Comendador da Ordem do Mérito Policial Militar, Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 2002, e com a Medalha do Mérito Segurança Pública, no Grau Cavaleiro, Secretaria de Estado de Segurança Pública, RJ, em 2006.
Outra contribuição notável foi sua dedicação à divulgação científica. Kant de Lima defendia que, ao contrário de outras ciências — marcadas pela lógica da patente e da apropriação particularizada do conhecimento —, a pesquisa em ciências sociais só avança quando é compartilhada e debatida amplamente. “Nosso negócio é falar”, dizia ele. Essa filosofia foi uma das chaves do sucesso do INCT/INEAC (Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração de Conflitos), que ele coordenou com brilhantismo.
Roberto Kant de Lima – que morreu na terça-feira passada aos 80 anos – nos deixou um legado que vai muito além da academia, desenvolveu, coletivamente, um projeto de segurança pública voltado para a democracia, em que a universidade tem papel central na formação crítica e na atuação sobre políticas públicas. Ele nos ensinou que pensar a justiça e a segurança pública a partir de dentro, com método, com escuta e com transformação social, é não apenas possível — mas necessário e urgente.
*Ana Paula Miranda é antropóloga e professora da UFF