Por Claudia Maldonado
Faço parte do Women Business Alliance BRICS como Líder do eixo Turismo. Em 2025, com o Brasil na presidência rotativa do grupo, lideramos o trabalho com os nove países do bloco. A missão é clara: identificar a participação feminina na cadeia produtiva do turismo e propor políticas públicas com base em evidências. Mas diante de um sistema que sequer enxerga essas mulheres, como agir?
Durante semanas, buscamos dados de gênero nos principais cadastros públicos federais — e nos deparamos com o vazio.
Em pleno século XXI, o Brasil ainda não sabe quantas empresas são lideradas por mulheres. Não por falta de tecnologia, mas por ausência de vontade política. Em tempos de “governo digital” e “dados abertos”, a verdade é mais incômoda: as mulheres estão apagadas dos sistemas que deveriam dar visibilidade à sua existência econômica.
Onde começa a exclusão? Nos cadastros mais importantes do país — como o CADASTUR, a Junta Comercial, RAIS/CAGED ou mesmo o sistema da Receita Federal — não existe campo obrigatório para declarar o gênero do responsável legal pela empresa. Nem ao abrir uma MEI, nem ao registrar uma sociedade anônima.
Na prática, isso significa que uma mulher que empreende sozinha, em condições adversas, sem acesso a crédito ou rede de apoio, é invisível aos olhos do Estado.
Ela não é um número. Não entra em nenhuma estatística. Não é considerada ao se pensar políticas públicas. Não é ouvida. Nem lembrada.
A ausência de dados de gênero não é apenas uma falha burocrática — é uma forma de exclusão institucionalizada. Suas consequências são severas:
- Sem dados, não há mapeamento preciso das mulheres por setor, território ou porte empresarial.
- Sem rastreio, ações afirmativas podem ser fraudadas — empresas laranjas “com nome de mulher” recebem recursos destinados a quem nunca verá o dinheiro.
- Sem visibilidade, programas de capacitação, crédito e inovação não alcançam quem mais precisa.
- Sem medição, nenhuma transformação é possível. Apenas repete-se o histórico ciclo de desigualdade.
Lá fora, o futuro já começou. Países como Canadá, Reino Unido, Chile já criaram cadastros que identificam explicitamente empresas lideradas por mulheres.
No Canadá. O CEEDD (Canadian Employer–Employee Dynamics Database), mantido pelo Statistics Canada, é um grande banco de dados administrativo que cruza informações fiscais e empresariais. Ele inclui explicitamente o gênero dos proprietários de empresas, permitindo análises precisas sobre empreendedorismo feminino.
É a prova de que é possível, prático e seguro incluir gênero nos sistemas de cadastro empresarial. Esses dados são essenciais para: construir políticas públicas fundamentadas na realidade das mulheres empreendedoras; promover transparência e eficácia em iniciativas com recorte de gênero; assegurar que ações afirmativas sejam realmente direcionadas a quem precisa e representa. (Fonte: https://www150.statcan.gc.ca/n1/pub/11-633-x/11-633-x2018017-eng.htm )
No Reino Unido o The Gender Index (UK) é uma plataforma inovadora que analisa todas as 5,2 milhões de empresas ativas no Reino Unido e identifica quais são lideradas por mulheres. Indicam: total de empresas lideradas por mulheres; participação de gênero por região e setor; distribuição de investimentos (capital de risco, dívida). Exibe informações em tempo real, com filtragens por setor, região, faixa etária dos fundadores e investimento. (Fonte: https://www.thegenderindex.co.uk/ )
No Chile, o órgão CORFO -Corporación de Fomento de la Producción de Chile criou o programa Start-Up Mujer, com editais públicos destinados exclusivamente a negócios fundados por mulheres — validados por CPF e cruzamento de dados bancários. Resultado? Mais acesso ao crédito, mais inovação, mais justiça. (Fontes: https://www.corfo.cl/sites/cpp/sala_de_prensa/regional/movil/23_03_2025_triple_convocatoria?utm_source=chatgpt.com; https://www.corfo.cl/sites/Satellite?c=C_NoticiaNacional&cid=1476727273030&d=Touch&pagename=CorfoPortalPublico%2FC_NoticiaNacional%2FcorfoDetalleNoticiaNacionalWeb&utm_source=chatgpt.com)
No Brasil, só exceções! Alguns estudos como os do SEBRAE sobre Empreendedorismo Feminino — tentam cobrir essa lacuna. Mas dependem de inferências estatísticas, não de dados diretos. Mesmo os programas federais de crédito para mulheres não exigem prova de que a beneficiária é, de fato, mulher. A brecha está aberta. E as desigualdades persistem.
As mudanças necessárias não são complexas nem caras. Exigem apenas decisão e compromisso:
- Incluir um campo de gênero nos registros de abertura de empresa (Juntas Comerciais, Gov.br).
- Criar um selo opcional “empresa liderada por mulher”, como já existe para empresas familiares no Cadastur.
- Integrar CPF e IBGE para validar a autodeclaração de gênero de forma segura e eficaz.
- Tornar obrigatório o preenchimento desse dado em todos os programas com recorte afirmativo.
- Publicar anualmente relatórios públicos sobre a presença de mulheres no setor produtivo brasileiro.
A ausência de um simples campo de gênero não é um detalhe técnico. É uma metáfora cruel da realidade que insiste em se repetir: as mulheres constroem, movem, lideram — mas não são contadas.
O que não se mede, não se muda. Mas o que não se enxerga, também não se respeita. É hora de mudar isso. Não apenas para que o sistema “reconheça” essas mulheres — mas para que o país as trate como parte legítima de sua força econômica e social. Com direito a visibilidade, financiamento, proteção e voz. Se o Brasil quiser caminhar para o futuro com justiça, o primeiro passo é simples: olhar para as mulheres que já estão fazendo esse futuro acontecer.