Enquanto os prédios modernistas do Plano Piloto eram erguidos, mulheres negras movimentavam Brasília em busca de direitos políticos, melhores condições de vida e reconhecimento em um espaço que historicamente lhes foi negado.
“A primeira instituição que eu participo é de forma clandestina, na 414 Sul. Eu ia para aquela reunião, tinha que ser de noite e tinha que ser tudo fechado. Era a estratégia que nós tínhamos de Zumbi dos Palmares, a estratégia do papel de um quilombo”, relata a jornalista Jacira da Silva, 74 anos, que acompanhou de perto e participou ativamente do desenvolvimento da Constituição Federal de 1988.
O relato de Jacira e outras seis mulheres negras que vieram para Brasília na época da fundação da nova capital do país compõe o dossiê “O lugar das mulheres pretas na construção de Brasília nas décadas de 70, 80 e 90”, uma iniciativa do Núcleo de Arte do Centro-Oeste (Naco) e coordenada pela consultora chilena Paloma Elizabeth Morales Arteaga.
Além das entrevistas, uma profunda pesquisa foi realizada em raros documentos do Arquivo Público do Distrito Federal para localizar e evidenciar a atuação dessas lideranças femininas durante a construção de Brasília e o processo de redemocratização.
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Paloma conta que, mesmo não sendo brasileira, sua percepção sobre o Brasil foi marcada pela presença majoritária da população negra nas ruas e, ao mesmo tempo, pela ausência de reconhecimento dessa maioria.
“Eu tenho viajado para Bahia, se a gente vai para o Rio de Janeiro, a maioria das pessoas que tem na rua são pessoas negras. Então, é impressionante que as mulheres ainda tenham que estar em uma luta em um país que, majoritariamente, é povoado por pessoas negras”, disse.
Jacira chegou a Brasília em 1960, aos 9 anos, quando o pai, que era carteiro e foi transferido do Rio de Janeiro. A cidade recém-inaugurada estava longe do ideal vendido ao país. Ela relata que morava na 414 Sul, mas estudava na 206 Sul, então tinha de ir a pé até a escola. Para ela, isso mostra como Brasília era uma capital federal seletiva, onde não havia espaço para o trabalhador.
Jacira cita Milton Santos para explicar a segregação espacial do Distrito Federal, onde a geografia atuou como instrumento de separação: pessoas negras e trabalhadoras foram afastadas do centro para regiões como Ceilândia e Taguatinga.
“Essas pessoas que vêm de outros estados vieram para viver naquele modelo, naquela propaganda de que aqui você tem tudo, casa, comida e moradia, que foi assim que vendeu a capital federal”.
Ativismo e o Movimento Negro Unificado
A politização de Jacira começou na adolescência, quando se mudou para a 405/406 Norte, próximo à Universidade de Brasília (UnB), em plena Ditadura Militar. Ela lembra das cenas de racionamento de alimentos e de manifestações e represálias que aconteciam na universidade.
“Eu saí de uma aula uma vez, com as colegas, e fomos ao mercado. Aí quando chega lá, cadê os alimentos? Era o período do racionamento dos alimentos em mercados […] Só podia comprar dois quilos de açúcar por pessoa, cinco quilos de feijão”.
Veja imagens da construção de Brasília:
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Trabalhadores atuam na construção das grandes estruturas em Brasília
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Construção da famosa caixa d’água em Ceilândia
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Foto mostra mapa de construção da região
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Operários iniciam as fundações de moradias provisórias em Brasília, em meio a canteiros improvisados que marcaram os primeiros anos da nova capital.
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Pessoas distribuem panfletos
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A caixa d’água em Ceilândia, considerada cartão postal da região
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Homens discutem projetos de construção
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Trabalhadores iniciam a construção de uma residência
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Pessoas negras e trabalhadoras foram afastadas do centro para regiões como Ceilândia e Taguatinga
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A vida nas periferias improvisadas da capital contrastava com o projeto modernista do Plano Piloto
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A entrada no Movimento Negro Unificado do Distrito Federal (MNUDF) ocorreu em 1981. Antes, ela já atuava no Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB), especialmente nas áreas de cultura e educação.
“Eu trabalhava com a questão cultural e com o entendimento de que, a partir da educação e da cultura, começaríamos a entender também o que era a democracia racial, que era um engodo que o Estado brasileiro pregava, na época, para a sua sociedade, para nós, população negra, que sempre fomos maioria, mas não maioria de oportunidades e nos espaços de poder”, disse Jacira.
Jacira lembra que mesmo dentro dos movimentos, demorou para que fosse respeitada como mulher negra militante.
“Demorou muito também para que o meu colega, o ativista preto, o meu companheiro de luta, me visse e me respeitasse como uma mulher que também tinha o conhecimento, que tinha o direito de estar na mesa de debate, de estar numa negociação”.
Outras narrativas
O dossiê também reúne relatos de Maria Luiza Júnior, uma das fundadoras do MNU-DF, e da assistente social Cristina Guimarães.
Maria Luiza conta que, antes de o MNU se popularizar no DF, havia o Instituto Nacional Afro-Brasileiro (INABRA), inspirado no movimento negro norte-americano, mas com foco no modelo do “negro bem-sucedido” e que isso excluía muitas pessoas. O MNU, então, foi criado para “nos manter vivos e principalmente manter viva a juventude”, diz.
Cristina, por sua vez, relata como o feminismo hegemônico da época não contemplava a experiência da mulher negra. “A gente não tava se identificando com aquele espaço. A gente perguntava: ‘Mas de que mulher esse movimento está falando? É a mulher negra, indígena, trabalhadora doméstica?’”.
Dessa inquietação nasce o Encontro Nacional de Mulheres Negras, em 1988, fundamental para o surgimento do Coletivo de Mulheres Negras do DF, que Cristina coordenou por quatro anos.
Ela recorda como o encontro gerou resistência dentro de movimentos já estruturados, que temiam a criação de uma nova entidade nacional. E descreve como aquele período coincidiu com a Constituinte e o centenário da abolição.
O Movimento Negro reagiu às comemorações oficiais da abolição, questionando a “falsa abolição”, e promovendo mobilizações que culminaram em uma grande marcha no Rio de Janeiro.
Segundo Cristina, 1988 foi decisivo para o surgimento de diversas organizações negras e feministas, como Criola (RJ), Geledés (SP) e o grupo Mãe Andresa (MA).
“Então, várias organizações foram criadas a partir desse movimento de 1988, né? E até hoje estamos aqui na resistência, na luta, sempre denunciando o racismo”.
Todos os depoimentos do dossiê podem ser acessados na página do Instagram.