A menina que morava no mundo invisível

Quando somos crianças, a realidade das coisas nos chega pelo aroma forte do café coado na cozinha, pelo ranger dos passos apressados no chão de madeira, pelo toque morno das mãos que nos amparam e pelas frases repetidas pelos adultos, como canções de ninar. São verdades incorporadas, moldando a respiração, o ritmo do coração, o espaço do corpo no mundo.

Nesse território frágil, tudo floresce. Somos heróis de capa improvisada, salvadores em chinelo de dedo, corações cheios de esperança e pés descalços sobre calçadas quentes. Brincamos de acreditar. É por isso que os pais avisavam: cuidado com a fantasia. A roupa do Super-Homem não é para levantar voo. Era preciso não acreditar demais. A imaginação podia ser encantamento, mas também armadilha.

Na infância, entre o riso e o medo, também ecoam os gritos nos ouvidos, as mãos que pesam no ombro pequeno, e as frases que diminuem: “você não consegue”, “fique quieta”, “não é coisa de criança”, “engole o choro”. A inocência ainda não conhece o gosto amargo da violência, mas já pressente que nem todo gesto é proteção, nem toda palavra é afeto.

E foi nesse intervalo — entre o encanto e a vulnerabilidade da infância — que uma fantasia surgiu. Não veio da imaginação da menina, mas de uma brincadeira do pai. Ela tinha só dois anos quando foi fotografada: rosto sujo de carvão, roupa rasgada, um saco quase vazio nas mãos. Debaixo do braço, carregava um pão velho, como parte do figurino. Para completar o estereótipo perfeito, só faltou a garrafa de cachaça. Para os adultos, uma cena engraçada. Para a criança, apenas mais um jogo sem explicação. Mas a imagem ficou: não de heroína, não de princesa, mas de uma pequena moradora de rua, invisível antes mesmo de entender o que isso significava.

A foto existe. Um sorriso doce escapa, mas é treinado para não chamar atenção. O coração leve, quase ingênuo, aprendeu cedo a humildade silenciosa. Pelas ruas do centro da cidade, o barulho dos ônibus misturado aos passos apressados do ir e vir das pessoas. A menina estendia pacotinhos de biscoito aos homens que dormiam no chão. A mãe, cúmplice, sempre carregava na bolsa algo para dar de comer — era ritual, um gesto discreto de cuidado com quem precisa.

Na loja de calçados, o cheiro de couro novo e do chão encerado. Enquanto a mãe escolhia sandálias ortopédicas, a menina viu, pela vitrine, uma criança deitada na calçada. O peito apertou. Pela ingenuidade, pegou apenas uma peça do par de tênis que estava à mostra na loja e atravessou o espaço para estender à menina de rua. Simples assim: se eu precisava de sapatos, ela também precisava. A cena foi quebrada pelo sussurro nervoso da vendedora e pelo sorriso amarelo da mãe. O gesto ficou.

Essa menina cresceu. O som das palmas nunca foi dela. Acostumada, preferiu o silêncio dos bastidores, a penumbra atrás da cortina, a respiração contida de quem faz brilhar os outros. Tornou-se jornalista, e o que mais gosta de fazer é contar as histórias de pessoas — aquelas que passam despercebidas, ignoradas pela sociedade. Ser invisível parecia destino, mas ao dar voz a quem não tinha espaço, descobriu que podia existir em meio ao mundo sem precisar se expor. A menina do carvão ainda tem um lugar no coração da mulher que se tornou, mas outros personagens começaram a surgir — novas experiências, novos papéis, novas conquistas — permitindo que ela se realize na vida. Descobre que prosperar não é pecado. Que sucesso não é arrogância. Que a simplicidade pode conviver com a grandeza. O medo do olhar alheio ficou para trás.

Que os pais saibam que toda fantasia é semente. Heróis, pessoas em situação de rua, fadas ou monstros. O que floresce depois — no corpo, na alma e no coração adulto — ninguém pode saber.

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