Sérgio Pererê é músico, cantor, compositor e multi-instrumentista, considerado uma das maiores expressões da cultura afrodescendente em Minas Gerais. O artista, herdeiro das tradições afro-brasileiras, se apresentou em 1º de junho no altar da Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Ouro Preto, cidade histórica mineira, a convite da organização da segunda edição do Festival de Fado.
Com voz e violão num estilo MPB contemporâneo, a apresentação de Pererê, “Canções de bolso”, levou centenas de pessoas à igreja para celebrar o evento. Mas o que era para ser um momento de celebração artística se transformou em tempestade digital contra o artista mineiro, que foi alvo de uma onda de ataques online que juristas e sociólogos, consultados pela Agência Pública, classificam como racismo religioso.
Racismo religioso é quando há discriminação, ódio ou preconceito direcionado a indivíduos ou grupos devido às suas crenças, especialmente quando essas crenças estão associadas a religiões de matriz africana como Candomblé e Umbanda. Segundo dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos em 2024, o Disque 100 recebeu 2.472 denúncias de intolerância religiosa — um aumento de 76,8% em relação a 2023.
Os estados com mais denúncias são: São Paulo (618); seguido do Rio de Janeiro (499) e Minas Gerais (205). “E vale lembrar: esses números estão muito abaixo da realidade porque muita gente tem medo de denunciar. Há estigma, risco de violência física, represálias. É comum pessoas de terreiro se identificarem como “espíritas” ou “sem religião” por medo”, explica a doutora em sociologia Carolina Rocha, do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Em Ouro preto: “não é cristão, é espiritualista”
Fernanda Rocha, uma mulher branca cristã, que se autointitula influenciadora no Instagram (com 32 mil seguidores) acusou Pererê de “profanar” um espaço sagrado ao se apresentar no templo religioso. Embora não mencione o nome do artista, o vídeo publicado por ela exibe a imagem do cantor na igreja de Ouro Preto. “Houve um show na frente do altar”, narra Fernanda, que diz que os trabalhos do artista “não condizem com a fé católica”. Referindo-se a músicas comuns ao repertório do artista como Samba de Preto Velho e Conversas de Terreiro, Fernanda insinua que a apresentação era uma ameaça: “não é cristão, é espiritualista”.
O vídeo que segue publicado foi amplamente compartilhado por perfis como “Guerreiro da Santa Igreja” (hoje, fora do ar), Osmar de Matos (59 mil seguidores) e com colaboração do @sementesdafesdf (com mais de 400 mil seguidores) gerando para Fernanda mais 5 mil curtidas; 1.300 compartilhamentos e 600 comentários, divididos entre apoio à Pererê e discursos inflamados de desaprovação ao evento.
Entre os comentários, muitas pessoas questionam a permissão da igreja para liberação da apresentação: “temos que descobrir quem é o bispo e cobrar reparação”. Outras afirmam que “Quando chega no inferno, não sabe o porque (sic) de ter chegado lá”. Há, inclusive, a invocação à Virgem Maria que estaria em prantos: “O (sic) Virgem dolorísissima (sic) as vossas lágrimas derrubaram (sic) o império infernal! ”
Muitos comentários, no entanto, foram contra o posicionamento de Fernanda Rocha. Um deles traz uma reflexão: “(…) Jesus é amor, é união, é partilha… quem tá errado, aí? A moça que critica no vídeo ou as pessoas que ocuparam a igreja para partilhar o amor, a sabedoria popular e a cultura? ”. Em outra postagem, uma pessoa destaca a importância de unir arte e espiritualidade para se construir pontes.
O caso foi levado à justiça de Belo Horizonte, que determinou em primeira instância, em 24 de julho, a quebra de sigilo dos perfis envolvidos, abrindo caminho para responsabilização judicial. O episódio, ocorrido no mesmo mês em que os Reinados, Congados e Congadas foram reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural imaterial do Brasil, expõe as tensões entre memória, fé e intolerância religiosa.
Procurada pela reportagem, Fernanda Rocha não se manifestou. Ela usou a própria página do Instagram para rebater questionamentos sobre a conduta dela ao postar o vídeo.
Carolina Rocha: “Presença negra incomoda”
De acordo com Sérgio Pererê, sua trajetória de vida e artística não pode ser compreendida fora da matriz cultural afro-brasileira que sustenta sua obra — e nem fora da história dos reinados, tradição de origem banto que fincou raízes profundas em Minas Gerais. Filho de benzedeira, rei do Congado e devoto das expressões que uniram resistência e fé no corpo da cultura negra, Pererê conta ser herdeiro e agente de uma memória coletiva que sobreviveu à escravidão de povos africanos e ao silenciamento histórico.
“Desde muito novo, eu compunha canções que remetem ao sagrado da cultura africana-brasileira. Aos nove anos, já me expressava assim”, relembrou à reportagem. O artista conta que sua conexão com a ancestralidade é religiosa, estética, existencial e política — e que sua apresentação em Ouro Preto foi escolhida justamente pelo tom leve e introspectivo. “Nem era um show sobre religiões afro. Foi só voz e violão. Fui convidado pela Igreja.”
A produção do festival confirmou que o show fazia parte da programação oficial e que todas as autorizações foram concedidas previamente pela Arquidiocese. Ainda assim, a viralização do vídeo associou a presença de Pererê à ideia de “profanidade” e até invocação de entidades demoníacas, mesmo sem qualquer menção direta às práticas religiosas afro-brasileiras, que segundo especialistas são condenadas e temidas, em geral, por muitos brasileiros por falta de conhecimento sobre o tema.
Para Carolina Rocha, do ISER, o episódio é mais do que intolerância: trata-se de racismo religioso, uma forma específica de violência que se disfarça de defesa da fé para criminalizar corpos negros, saberes e culturas negras. “O discurso de ódio contra Pererê reforça estigmas históricos e reverbera perigosamente num ambiente digital já tomado por desinformação e extremismo”, alerta.
Segundo ela, as tradições afro-brasileiras, como os congados e os reinados, são expressões culturais legítimas e profundamente brasileiras — e o incômodo com sua presença em espaços como igrejas católicas revela a tentativa de restabelecer barreiras raciais invisíveis. “O que vimos, no caso de Pererê, foi a tentativa de expulsar a cultura negra de um lugar que também é seu por direito (a igreja católica), por história e por presença. É uma violência racial travestida de ‘defesa da fé’. ”
“Assinatura do Satanás” é a peça-chave do processo
Embora a juíza responsável pelo caso em primeira instância na comarca de Belo Horizonte, Adriana Garcia Rabelo, tenha indeferido inicialmente o pedido de retirada imediata do vídeo das redes sociais, alegando exercício de liberdade de expressão por parte da autora do conteúdo, a Justiça mineira reconheceu a gravidade da situação e determinou a quebra de sigilo dos perfis envolvidos, além de marcar audiência de conciliação pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania – (CEJUSC).
O advogado que compõe a equipe de defesa de Pererê, Joviano Gabriel Maia Mayer, critica a decisão inicial que relativizou os danos. “A liberdade de expressão não é carta branca para cometer crimes. Seu limite é o patrimônio jurídico do outro. A honra, a moral e a dignidade da vítima (no caso Sérgio Pererê) foram publicamente atingidas”, pontua.
A nova etapa do processo conta também com a atuação do advogado Hédio Silva Jr, que já representou povos de religiões de matriz afro-brasileiras em ações no STF e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ele considera levar o caso a instâncias internacionais, se necessário. “Este precedente não pode ser perdido. É uma questão de respeito e sobrevivência da ancestralidade negra”, afirma.
Segundo Hédio Silva, a postagem em que a autora do vídeo se refere à apresentação de Pererê como uma “assinatura do Satanás” é a peça-chave do processo. A expressão, usada de forma para descrever a performance e o artista, foi classificada como a prova mais contundente da intolerância. “Isso supera a resistência inicial que o Judiciário costuma ter para reconhecer o racismo religioso”, observa.
O advogado faz, ainda, uma comparação sobre como a satanização de religiões afro-brasileiras tem efeitos semelhantes ao discurso nazista que atribuía aos judeus todos os males da humanidade. “Quando se diz que tudo de ruim vem dessas práticas, está se criando um inimigo imaginário, legitimando a perseguição”, explica. Para ele, o caso de Pererê escancara a forma como o racismo religioso continua operando — agora, com ainda mais força, nos ambientes digitais.
A ação movida por Pererê contra os perfis de Fernanda Rocha, Osmar de Matos, “Guerreiro da Santa Igreja” e as empresas Meta (Instagram e Facebook) e Bytedance (TikTok) agora segue com novo fôlego. A Justiça determinou que as plataformas forneçam dados cadastrais dos envolvidos e convocou as partes para uma audiência, com possibilidade de multa em caso de ausência injustificada. Caso não haja conciliação, os réus deverão apresentar defesa em até 15 dias. Os próximos passos incluem a consolidação das provas digitais e, dependendo da resposta das plataformas, o avanço para ação civil ou penal.
Pererê: “É cansativo ter que provar nossa presença”
Para a socióloga Carolina Rocha, o episódio envolvendo Pererê não é isolado. Trata-se de mais uma manifestação de um racismo estrutural que se reinventa nas plataformas digitais. “A fala preconceituosa ganha alcance. A difamação viraliza. E os danos são profundos: à imagem, à carreira, à segurança física e mental deste artista, que é uma pessoa pública, foram profundamente atingidas.”
A socióloga também chama atenção para o quanto o Brasil ainda está longe de se tornar uma nação plural. “Esse mesmo racismo aparece quando professores tentam aplicar a Lei 10.639/2003 e enfrentam resistência sob o argumento de que estão ensinando ‘macumba’. Quando, na verdade, estão ensinando Brasil, sobre a ancestralidade”.
Enquanto aguarda a tramitação do processo, Pererê segue sua caminhada artística. “O que me entristece não é só o ataque — é a dificuldade de convencer a Justiça de que é crime. É cansativo ter que provar nossa presença.” Para ele, o problema é mais profundo. “A internet amplifica, mas o problema é anterior. É um país que ainda não se reconciliou com sua história e com a beleza da diversidade de sua fé.”