Bets no Brasil: endividamento dos adultos e crianças como alvo de anúncios

O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) lançou, em junho deste ano, o relatório “Debate público digital em adicção digital”, que faz uma análise sobre os impactos negativos das plataformas de apostas online, conhecidas como bets, na sociedade brasileira. O estudo identificou violações à legislação, danos a crianças, adolescentes e consumidores em situação de fragilidade econômica.

Uma das conclusões é que pelo menos 24 milhões de brasileiros apostaram em bets em 2024, e desses apostadores, quase metade está endividada. Para falar sobre o tema, o entrevistado do Pauta Pública desta semana é Tiago Braga, diretor do instituto. Ele destaca que o fenômeno digital das bets explora vulnerabilidades e desafia direitos coletivos, em um ambiente de desinformação e pouca fiscalização. 

“O que mais me chocou foi ver publicidade de apostas voltada para crianças, usando canais que apagam o rastro logo depois […], é uma artimanha muito bem pensada que impede que os pais acompanhem, que o poder público fiscalize e que a sociedade compreenda o que está acontecendo”, afirma.

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.

EP 176
Quanto vale a aposta? Os dados do Império das Bets no Brasil


Tiago Braga, do IBICT, comenta impactos das apostas online e dados atuais sobre dependência digital no Brasil

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O IBICT publicou um relatório que faz análises muito importantes sobre o impacto das apostas online e sobre os direitos difusos. Vamos aprofundar alguns pontos aqui na nossa conversa, mas, para começar, você poderia contar um pouco sobre a pesquisa em geral e os pontos mais interessantes que vocês descobriram?

O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia surgiu na década de 1950 e tem a missão de estruturar infraestruturas de informação, ciência e tecnologia para o desenvolvimento do país. A desinformação é a antítese do que representa o IBICT. Por isso, começamos a lidar com esses temas e a trazer essa discussão sobre o problema da desordem informacional. Lidamos com essa problemática que impera principalmente nos meios digitais. É preciso compreender essas discussões que acontecem nesses ambientes para propor políticas públicas, garantir que os direitos sejam exercidos e assegurar que haja civilidade nessa interação social.

No caso das apostas online, elas são uma afronta, muitas vezes, aos direitos do consumidor, que se encaixam nesse lugar dos direitos difusos. Quando se oferece um produto enganoso ou quando há uma aposta que, na verdade, é um jogo de azar, ou ainda quando há uma publicidade inadequada voltada para crianças, que não deveriam receber publicidade de apostas, isso fere os direitos difusos.

Nesse processo, descobrimos várias coisas. Por exemplo: as publicidades de apostas apresentam informação de restrição etária para maiores de 18 anos, mas essa informação é quase imperceptível, dificilmente conseguimos enxergá-la. 

Identificamos, por exemplo, mecanismos usados por influenciadores e canais do YouTube que aproveitam o chat online, que funciona apenas enquanto a transmissão está acontecendo, para inserir links de apostas ilegais, que não estão validados no Brasil ou não obedecem aos critérios estabelecidos pela lei. E esses mesmos canais fazem publicidade voltada para crianças. 

Tudo isso foi identificado na construção do relatório, a partir da análise de publicações online e das discussões públicas, sempre com a perspectiva de garantir os direitos difusos.

E o que mais chamou sua atenção nessa pesquisa?

O que mais me chocou, como pai de três crianças, foi a publicidade voltada para o público infantil. Vimos canais do YouTube com seis milhões de assinantes, que normalmente veiculam vídeos de Minecraft [jogo eletrônico], conteúdos que realmente atraem crianças, mas que usavam o recurso de transmissão ao vivo para fazer publicidade de bets. Nós chamamos de “tigrinho” eventualmente, mas são essas apostas online.

Esses canais usavam a transmissão online para fazer esse tipo de publicidade. Essa propaganda é apresentada a crianças e, assim que a transmissão acaba, os canais deletam o vídeo. Então, acompanhar e verificar se esse problema existe de fato é muito difícil, porque não há registro do que foi publicado.

Essa artimanha, muito bem pensada, aproveita o espaço da transmissão online para veicular conteúdo que, na verdade, é um vídeo gravado, mas apresentado como se fosse ao vivo, justamente para ganhar mais relevância nas plataformas. E, logo que a transmissão é finalizada, todo o histórico de chat, que é usado para compartilhar os links de apostas, e todo o vídeo são apagados. Isso impede que os pais acompanhem, que o poder público fiscalize e que a sociedade compreenda o que está acontecendo. Essa foi, sem sombra de dúvidas, a questão que mais me impactou e que mais chamou minha atenção no relatório.

As casas de apostas também patrocinam as grandes mídias, que, por possíveis conflitos de interesse, acabam não problematizando práticas nocivas que prejudicam a saúde e a economia da população. Aqui na Pública estamos no meio de uma campanha de arrecadação para investigar quem está por trás das bets, porque esse ainda é um universo pouco transparente, não se sabe ao certo quem está por trás de tudo isso e quais são os interesses e os lucros reais. Mas quais são os riscos de apenas os meios de comunicação independentes conseguirem aprofundar esse assunto?

A mídia tem um papel fundamental e uma estrutura essencial para investigação e pesquisa. E as plataformas digitais também exercem uma influência muito grande, pois são os meios por onde essa informação é compartilhada e circula.

Por exemplo, o projeto que temos é sobre desinformação. Acompanhamos a desinformação vacinal, por exemplo, quando se afirma que uma pessoa adquire doenças ao tomar determinada vacina ou quando se vendem protocolos medicamentosos para outras vacinas. E isso não é mais coberto, é um assunto que não ganha espaço na mídia. Por quê? Porque passamos pelo processo da Covid-19 em que se falou muito disso, mas, depois, não há mais espaço na agenda para discutir o tema.

Quando discutimos, é a partir de um denuncismo: se tem vacina de mais, de menos, se foi desviada, algo assim. Mas, na perspectiva da discussão como mecanismo de exercício de direitos, não há espaço. Assim como não há espaço, por exemplo, para discutir salários iguais entre homens e mulheres. A discussão sobre gênero, sobre homofobia, quase sempre aparece pautada por denúncias pontuais, mas não há um debate social estruturado sobre essas questões.

Precisamos discutir isso com a sociedade, precisamos que a sociedade compreenda quais são os temas pertinentes a partir de um segundo nível, entende? Não dá para ficar apenas no primeiro plano, no senso comum. É preciso aprofundar e discutir esses temas de forma mais basilar, entendendo como percebemos a evolução da nossa sociedade.

As mídias têm um papel muito importante nisso, assim como as plataformas digitais. Quando propusemos esse projeto de acompanhamento do exercício dos direitos difusos a partir das plataformas digitais, nossa intenção era justamente entender se a sociedade está discutindo esses temas. E o que vemos é que não está — a sociedade permanece no senso comum, discutindo apenas aspectos superficiais, sem compreender, por exemplo, o impacto na educação, na saúde ou como podemos reduzir a mortalidade infantil a partir de um debate mais aprofundado sobre vacinação, ou ainda melhorar os índices educacionais construindo uma escola mais plural que receba todas as pessoas.

Acho que isso é um ponto essencial a ser discutido. Eu admiro muito que a Pública faça esse trabalho e entendo que é necessário que outros canais de mídia também façam o mesmo.

Quer saber mais sobre a nossa campanha de arrecadação para investigar o mercado das bets no Brasil? Acesse apoie.apublica.org ou doe agora para contato@apublica.org

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