Já faz tempo que a Associação das Vítimas de Intoxicação por Dietilenoglicol está parada. Ela reúne as pessoas cujas vidas foram alteradas para sempre depois de alguns goles da cerveja Belorizontina, marca da cervejaria Backer, cuja contaminação pela substância que nomeia o grupo veio à tona em 2020, matando 10 pessoas e deixando ao menos mais 19 com sequelas permanentes.
“Nem a contabilidade, que seria paga pela cervejaria, segundo o acordo, está em dia”, disse à Agência Pública o analista de sistemas Vanderlei Oliveira, de 43 anos, presidente interino da associação. Ney Martins, o ex-presidente, morreu em 2024, em função das consequências da intoxicação.
Já a vida financeira dos donos da cervejaria, Ana Paula Lebbos e seus sobrinhos Hayan Khalil Lebbos e Munir Khalil Lebbos, não sofreu abalos tão graves. De acordo com registros de cartórios aos quais a Pública teve acesso, pelo menos até o fim de 2023, Hayan e Munir habitavam um apartamento num dos bairros mais ricos de Belo Horizonte. A reportagem consultou uma imobiliária local para saber quanto vale uma unidade no mesmo imóvel: cerca de R$ 5 milhões.
A Pública levantou também outros bens que a família possui registrados em cartórios. Alguns foram usados como garantia junto aos credores da recuperação judicial da Backer e não poderiam ser alienados para o pagamento das indenizações, mas há também salas comerciais, casas, apartamentos e terrenos à disposição da família.
Por que isso importa?
- Até segunda-feira, 13 de outubro, o Brasil tinha 32 casos confirmados de contaminação por metanol, e outros 81 em investigação, segundo o Ministério da Saúde;
- O caso Backer pode servir de aprendizagem e alerta para as atuais vítimas de bebidas alcoólicas contaminadas quando forem buscar seus direitos.
Em Betim, até o fim de 2020, eram ao menos dois lotes. Um terreno similar na região custa cerca de R$ 900 mil, segundo uma imobiliária da cidade consultada pela reportagem. Já em Contagem, até esse mesmo período, três imóveis estavam registrados. Também segundo uma imobiliária da região, uma casa no bairro onde fica uma dessas propriedades chega a custar R$ 2 milhões. As duas cidades ficam na região metropolitana da capital mineira. Por fim, em Belo Horizonte, a reportagem descobriu outros quatro imóveis, entre eles o apartamento de luxo de Hayan e Munir.
Acordo não cumprido
A associação das vítimas foi criada em 2023, após o acordo judicial entre os sócios da Backer, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e parte das vítimas e seus familiares. Ficou estabelecido que a cervejaria pagaria indenizações e se responsabilizaria, integralmente, pelo tratamento de saúde dos intoxicados.
Para isso, a empresa transferiu uma fazenda em Perdigão, centro-oeste de Minas Gerais, para a associação. A ideia era que ela fosse transformada em loteamento e o dinheiro arrecadado na venda fosse usado para cobrir os gastos médicos das vítimas. Em compensação, a ação civil pública contra os três donos da cervejaria seria extinta. Os sócios ainda respondem pela contaminação, mas na seara criminal.
Exceto a extinção da ação, que garantiu ao grupo familiar dono da Backer a manutenção de seu patrimônio, nada disso saiu do papel. Desde 2023, diversas vítimas já não recebem o auxílio mensal da empresa para pagar suas contas. Segundo Barbosa, um dos poucos intoxicados que têm condições físicas de trabalhar, o pagamento foi feito por cerca de dois anos.
Já a fazenda repassada à associação segue com o mato alto, nenhuma rua foi aberta para dar início ao loteamento e não há saneamento ou luz elétrica. O Ministério Público de Minas Gerais foi procurado para responder sobre o acordo, mas informou via assessoria que não iria se pronunciar.
Vanderlei Barbosa teve de fazer um transplante de rim depois de consumir a cerveja, e, como a Backer deixou de pagar suas despesas médicas, foi obrigada a pegar um empréstimo de R$70 mil para custear o tratamento, que se estende até hoje. Fora os diversos medicamentos que toma todos os dias, ele precisa fazer fisioterapia e fonoaudiologia para readaptar-se à nova realidade, já que seu corpo perdeu parte dos movimentos.
Enquanto isso, a Backer retomou suas atividades, e, por estar em recuperação judicial desde 2023, pôde estender indeterminadamente o pagamento das indenizações às vítimas. Cervejas do rótulo já estão disponíveis em restaurantes, supermercados e também no “Pátio Cervejeiro”, o bar de propriedade da Backer. Só a Belorizontina saiu do catálogo da empresa, que produz ainda uma marca de gin e outra de uísque.
O advogado Guilherme Leroy é o defensor de diversas das vítimas da Backer. Em entrevista à Pública, Leroy contou que muitas das pessoas intoxicadas discordaram dos termos do acordo proposto pelo Ministério Público, não aderiram a ele e abriram processos individuais contra os sócios da cervejaria. Alguns são clientes de Leroy.
À época, o MPMG considerou que valia a pena abrir mão de algumas possibilidades para garantir as indenizações – ainda que elas não tenham prazo para serem pagas. Uma das possibilidades descartada foi, justamente, a de que os sócios fossem civilmente responsabilizados pela intoxicação, tendo de dispor de seus patrimônios para ressarcir as vítimas. Com a assinatura do acordo, quem assumiu a responsabilidade foi a cervejaria Backer enquanto pessoa jurídica, e os demais bens da família foram assim resguardados.
“Sabendo da recuperação judicial da empresa, que suspenderia qualquer pagamento, o MPMG poderia ter negociado termos distintos”, avalia Leroy. “Houve uma vantagem, a de fixar valores das indenizações, mas uma grande desvantagem: hoje, dois anos depois do acordo, a recuperação judicial da cervejaria ainda está na fase inicial e não tem previsão nenhuma de acabar”, critica.
Na estimativa de Leroy, é possível que as indenizações comecem a ser pagas só em 2030. “Para os sócios da Backer, enquanto pessoas físicas, o acordo foi excelente”, resume o advogado.
Responsabilidade criminal
Quando o caso Backer veio à tona, o MPMG temia que os sócios ocultassem patrimônios para se esquivar das responsabilidades para com as vítimas. Isso porque poucas semanas depois que a cervejaria foi interditada pela Justiça, os irmãos Munir e Hayan deixaram a sociedade da Empreendimentos Khalil, outra empresa do grupo familiar, dedicada à compra e venda de imóveis. Dois filhos de Ana Paula Lebbos são sócios da Empreendimentos Khalil.
O MPMG pediu a quebra do sigilo fiscal e o bloqueio dos bens da Backer e da Empreendimentos Khalil num valor de até R$ 100 milhões. Para uma empresa que faturou R$ 72 milhões em 2019, um ano antes da contaminação, as contas bancárias eram bastante modestas: a Justiça encontrou, e bloqueou, apenas R$ 12 mil.
Corriam, então, os processos civis e criminais contra os três sócios da cervejaria. O processo civil foi extinto em 2023 com a assinatura do acordo com o MP e parte das vítimas. A reportagem tentou contato com os advogados de defesa dos donos da Backer no processo civil, mas não obteve respostas até a publicação desta matéria.
Já o processo criminal está em fase final, aguardando uma decisão do juiz. Ana Paula, Hayan e Munir são acusados de homicídio culposo, adulteração de bebidas, crime contra o consumidor e lesão corporal grave.
Chamou atenção o fato dos dois fundadores da Backer, Halim Khalil Lebbos (esposo de Ana Paula) e Munir Khalil Lebbos (pai de Hayan e Munir), não terem sido igualmente denunciados. Segundo diversos depoimentos prestados por funcionários da cervejaria à polícia, apesar dos dois não serem os donos da empresa no papel, eram eles os administradores de fato, ao passo que Hayan e Munir teriam funções secundárias, não ligadas à produção da fábrica. A Pública consultou o MPMG para entender o motivo dos dois não terem sido denunciados, mas a instituição informou que os os promotores não iriam se pronunciar.
Caso os patriarcas da família tivessem sido denunciados, é provável que a situação deles fosse ainda mais delicada que a dos filhos e de Ana Paula. É que Halim e Munir pai, ao contrário dos sócios da Backer, já tiveram problemas com a Justiça antes. Foram, inclusive, presos.
Aconteceu em fevereiro de 1999. Antes da fundação da Backer, Halim e Munir eram sócios da HMR Administração e Lazer, grupo que detinha restaurantes, casas noturnas e os bingos Eldorado, em Contagem, e Cidade, em Belo Horizonte. Conforme a operação da Polícia Federal deflagrada naquele ano, estes dois bingos eram suspeitos de lavar dinheiro do tráfico de drogas da máfia italiana. Sob a acusação de formação de quadrilha, apropriação indébita e sonegação fiscal, dez pessoas tiveram a prisão preventiva decretada, entre elas Halim e Munir. Eles também foram obrigados a ressarcir os cofres do estado pelos impostos sonegados.
Munir chegou a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) levada a cabo pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para investigar a ligação dos bingos com a lavagem de dinheiro no estado. Ele se disse inocente de todas as acusações. A Pública tentou contato com os advogados dos dois para saber qual foi o desenrolar da ação da Polícia Federal, mas não obteve retorno. É certo, porém, que a prisão não durou muito tempo, pois um ano depois, em setembro de 2000, eles fundaram a cervejaria.
A reportagem consultou ainda a situação de Munir na dívida ativa da Procuradoria-geral da Fazenda Nacional, e encontrou 17 pendências ao todo. Outras 13 dívidas foram extintas por já terem prescrevido.
Outro lado: o que diz a defesa dos réus do processo
Os advogados de Ana Paula Lebbos, Hayan Khalil Lebbos e Munir Khalil Lebbos estão otimistas quanto ao desfecho do processo criminal, esperado para o fim deste ano ou o início de 2026. “Em que [se] pese a gente entender a comoção social causada pelo ocorrido e a dor de todas as vítimas, que de maneira nenhuma pretendemos menosprezar, entendemos que, se é para haver alguma responsabilização, seria uma responsabilização de natureza civil”, disse à reportagem Bernardo Coelho, um dos 15 advogados que defendem a família Lebbos.
“A perícia foi incapaz de demonstrar qualquer conduta criminosa que possa ser atribuída aos réus. Então, estamos bem esperançosos. Alguns dos melhores advogados de Belo Horizonte estão trabalhando nesse caso”, declarou Coelho.
Já para Vanderlei Oliveira, presidente interino da Associação das Vítimas de Intoxicação por Dietilenoglicol, a condenação dos donos da Backer seria um alento. “É o que realmente vai trazer algum alívio para as vítimas, tanto para as que sobreviveram quanto para os familiares das que faleceram. Seria importante, para que todos vejam que eles realmente são culpados e têm que pagar por isso”, concluiu.