CPI do Crime Organizado: senadores divergem sobre igualar facções criminosas a terrorismo

Instalada na última quarta-feira, 4 de novembro, no Senado Federal, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Crime Organizado, criada uma semana depois da maior chacina da história brasileira, ocorrida no Rio de Janeiro, tem três protagonistas. O presidente, senador Fabiano Contarato (PT-ES), o vice, senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) e, por fim, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE), relator da Comissão.  

Com perfis políticos distintos, os senadores iniciaram os trabalhos prometendo cooperação, convergência e um trabalho técnico. O objetivo é diagnosticar como funcionam as organizações criminosas e milícias no país, além de indicar as melhores práticas para combater o crime organizado.  

As divergências entre eles, entretanto, já foram expostas em outros momentos de suas atuações parlamentares. Enquanto Vieira e Mourão defendem explicitamente equiparar determinadas ações de facções criminosas a atos terroristas, o presidente da comissão sustenta uma opinião oposta – e alerta para riscos diplomáticos desse enquadramento.

Por que isso importa?

  • A CPI do crime organizado surge em resposta à crise política causada pela Operação Contenção, realizada pelas polícias do Rio de Janeiro que resultou em mais de 120 mortes.
  • O tema da segurança pública é central nas eleições de 2026 e a CPI pode se tornar palanque tanto do governo Lula como de políticos bolsonaristas.

Os posicionamentos foram apresentados durante a tramitação do PL nº 3.283/2021, que visava incluir condutas praticadas por grupos criminosos organizados. Mourão atuou como relator temporário e Vieira assinou o parecer principal, no qual afirmou que o projeto é “pertinente e necessário para tornar mais efetivo o combate aos grupos criminosos organizados no país”. 

Em seu relatório, Vieira escreveu ainda que “tais condutas praticadas pela alta criminalidade organizada desestabilizam o Estado Democrático de Direito e a possibilidade de um futuro para o país com mais segurança”. Ele ainda defende a ampliação das penas e a tipificação de crimes de facções como atos terroristas, incluindo atentados contra agentes públicos e controle territorial violento. 

Na direção oposta, Contarato tenta frear o impulso de inscrever o rótulo “terrorista” sobre o crime organizado. Logo na discussão do mesmo Projeto de Lei, quando apresentou emendas ao texto, já havia se mostrado crítico à ampliação do conceito de terrorismo – uma postura que reafirmou recentemente. 

“Comparar o que acontece com essas facções criminosas, com a conduta terrorista, não é tão simples”, afirmou o senador ao telejornal da rede Globo, “Bom Dia ES”. 

“A gente tem que ter muita calma para você não ter uma consequência no chamado direito penal internacional, que pode até mesmo atentar contra a soberania do próprio país”, disse na ocasião.

Apesar da discordância central sobre o uso do termo “terrorismo”, há convergência entre os três senadores no que diz respeito ao endurecimento penal. Em pronunciamento, Contarato já cobrou punições mais duras para crimes econômicos, ao dizer que “passou da hora de aprovarmos [uma legislação onde] crimes contra a ordem tributária, sistema financeiro, sonegação fiscal, corrupção ativa e passiva, […] passem a ser crimes hediondos”.

Além disso, Contarato e Vieira assinaram juntos o “pacote anticrime”, sugerido pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, que expande o conceito de organização criminosa, autoriza confisco alargado de bens e fortalece a infiltração policial. Entre as propostas, estão ampliar o regime inicial fechado em presídios federais de segurança máxima para lideranças de facções e endurecer regras de progressão. 

Raio X dos senadores

Fabiano Contarato

Delegado de carreira e primeiro senador abertamente gay da história do Congresso, Fabiano Contarato tem perfil moderado e compromisso social. Em seus discursos, ele reforça que o combate às facções não pode servir de pretexto para violações de direitos. “É preciso que o Estado dê uma resposta contundente para combater o crime e a criminalidade, entendendo a criminalidade e o crime como um fenômeno social”, discursou o Senador no plenário em 2024. 

“Eu também não posso deixar […] de fazer uma reflexão de que muitas vezes nós, agentes de segurança pública, somos utilizados pelo Estado de forma contundente para agir contra uma camada: a camada economicamente menos favorecida. Basta você ver o perfil socioeconômico de quem está preso: 70% são pobres, pretos e pardos, como se a cor da pele fosse o fator determinante para a prática de crime”. 

Ao portal Focus Brasil, o senador defendeu que o enfrentamento ao crime organizado no Brasil depende menos de novas leis e mais do cumprimento efetivo das que já existem “independentemente de raça, cor, etnia, religião, origem ou poder aquisitivo”. 

“Temos casos de políticos condenados a 300 anos de cadeia que estão em prisão domiciliar. Agora, tem o caso da pessoa pobre, morrendo dentro do sistema penitenciário, e não tem direito à prisão domiciliar: dois pesos e duas medidas. […] Se você traçar o perfil socioeconômico de quem está preso? Pobre, preto e semialfabetizado”, afirmou o senador.

Em outro momento, ao relatar o PL 5.365/20 – que tipifica os crimes de “domínio de cidades” e “intimidação violenta” no Código Penal e os inclui na Lei de Crimes Hediondos -, Contarato deixou claro que apoia o endurecimento penal, mas ponderou sobre os riscos de criminalizar a livre manifestação popular. “Ressalvamos, também, qualquer interpretação que possa alcançar o livre direito constitucional de manifestação”, escreveu o senador na relatoria.

O equilíbrio também se reflete na forma como Contarato se posiciona sobre o papel das forças policiais, que afirma a necessidade da valorização e fortalecimento ao invés de “criminalizá-las”. “Volto a falar que, qualquer que seja o policial, ele está ali com uma função, representando o Estado para garantir a determinação constitucional de que a segurança pública é direito de todos, mas é dever do Estado. […] Quando você valoriza todas as instituições de segurança pública, dando valor e, claro, cobrando que elas cumpram o seu dever constitucional, nada além disso – quem tiver desvio de conduta que pague pelo que fez -, você está beneficiando principalmente a população que mais precisa”.

Entre as propostas que o senador pretende defender na CPI está a criação de um banco de dados nacional e unificado sobre facções criminosas e lavagem de dinheiro, para integrar informações entre União, estados e municípios. “O combate ao crime organizado não será eficaz enquanto o Estado seguir preso à lógica do ‘cada um por si’”, disse à Pública.

Numa votação acirrada, de 6 votos a 5, o governo conseguiu emplacar o parlamentar petista na presidência da CPI, enquanto a oposição demonstrou frustração. “A gente vê, mais uma vez, uma movimentação pela blindagem, querendo colocar, com todo respeito, um presidente da comissão que seja do Partido dos Trabalhadores. Quero manifestar esse meu repúdio, essa minha frustração, com essa manobra vergonhosa do governo Lula”, disse o senador Eduardo Girão (Novo-CE) durante a instalação da Comissão.

Alessandro Vieira 

A postura moderada de Contarato, porém, pode colidir com a linha adotada por Alessandro Vieira e Mourão, que já demonstraram enxergar o punitivismo e uso da força como eixo da política de segurança. Vieira, ex-delegado da Polícia Civil, tem um discurso centrado na defesa do uso firme da força estatal e no fortalecimento das instituições de segurança. 

Em pronunciamento após o assassinato do ex-delegado-geral Ruy Ferraz, em setembro, na Praia Grande (SP), Vieira classificou o crime como um “recado claro do crime organizado” ao Estado brasileiro. Para o senador, a comissão deve ser conduzida de forma “correta, sóbria e equilibrada”, voltada a enfrentar “o crime organizado de todas as naturezas”, das facções armadas aos esquemas de colarinho branco.

“A retomada de território só se dá pelo emprego da força. Não existe retomada de território do criminoso sem emprego de força”, afirmou o senador ao cobrar o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski sobre a redução de verbas ao Fundo Penitenciário e ao Fundo Nacional de Segurança Pública no Orçamento de 2024. 

Vieira também já se mostrou crítico à descriminalização das drogas. “A liberação, a descriminalização do uso [de drogas] tem como consequência indireta o fortalecimento do crime e do tráfico […] esse usuário vai comprar droga onde? Na farmácia? No supermercado? Não. Ele vai estar rendendo lucros garantidos, tranquilos, assegurados para o esquema do crime organizado. E o crime organizado não vai ficar menos violento. Ele vai ficar mais violento, mais empoderado”, disse em plenário quando a Casa discutia a PEC das Drogas, que buscava criminalizar a posse e o porte de qualquer quantidade de droga ilícita no Brasil. 

“A afirmação reiterada de que as polícias sobrecarregam os presídios com usuários pobres não corresponde à verdade. Ela é injusta e preconceituosa com as polícias brasileiras, porque, literalmente, a polícia tem mais o que fazer do que prender usuário”, complementou Vieira.

Hamilton Mourão

O senador Hamilton Mourão, por sua vez, representa a vertente mais dura entre os três. O ex-vice-presidente da República é um defensor assumido da ampliação das penas, da redução da maioridade penal e da presença das Forças Armadas no combate às facções. Ainda como vice no governo Bolsonaro, chegou a dizer que as prisões eram como “colônias de férias” do crime organizado e defendeu o endurecimento da legislação quanto à progressão de penas. 

Em discurso após a operação no Rio que deixou 121 mortos, afirmou que ”já passou da hora do Estado brasileiro compreender que é apenas uma conjunção de esforços de todos os níveis federal, estadual e municipal e de todas as entidades capazes de operar, e aí eu não excluo as nossas Forças Armadas, para que a gente consiga recuperar territórios que hoje estão na mão do crime organizado”.

Mourão também enxerga o crime organizado como uma ameaça global que exige cooperação entre países. “A internacionalização do crime organizado, que se reveste das mais variadas condutas ilícitas como a lavagem de dinheiro, o tráfico de entorpecentes, tráfico de pessoas, entre outros, não encontra barreira nas fronteiras físicas dos países”, escreveu na relatoria do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) n° 776/21 – que aprovava o tratado de cooperação penal entre Brasil e Romênia. “A conjugação de esforços entre os governos nacionais é imprescindível no combate à criminalidade transnacional”.

Relator de um projeto que obriga aplicativos de navegação a alertar motoristas sobre áreas com altos índices de criminalidade, o ex-vice-presidente justificou a iniciativa como forma de “restringir o campo de ação” das facções e aumentar a segurança de civis. 

A Pública procurou os senadores Hamilton Mourão e Alessandro Vieira para comentar quais posições pretendem adotar na condução da CPI, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Caso haja manifestação, este espaço será atualizado.

No horizonte, as eleições de 2026

Entre os parlamentares da base governista, o discurso de atuação na CPI é da cooperação técnica e distanciamento político. Contarato afirmou que a comissão deve ser uma “colaboração às ações já em curso” no país, como a PEC da Segurança e o projeto antifacção. Ainda destacou que o colegiado terá um vice-presidente da oposição e que a direção composta por dois delegados – ele próprio e o relator – garante “independência e diagnóstico técnico”.

A CPI do Crime Organizado conta com um plano de trabalho dividido em nove frentes, que vão da lavagem de dinheiro e crimes digitais à infiltração em setores econômicos. 

Para jogar luz a esses objetivos, a comissão já aprovou o convite a dois ministros do governo Lula: o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, além de onze governadores e seus respectivos secretários de Segurança Pública. 

Entre os governadores estão o de Alagoas, Paulo Dantas (MDB), de Santa Catarina, Jorginho Melo (PL), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), além dos governadores do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL) e de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

“Eu acho que a única coisa que não deve acontecer aqui é isso aqui virar um palanque eleitoral, num ano pré-eleitoral, e que essa disputa comece a se falar de governo e oposição”, complementou o senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado. 

Na oposição, o senador Flávio Bolsonaro (PL – RJ) acusou o governo de interferir na composição da CPI para garantir maioria e controle sobre a presidência. “O governo manobrou, alterou indicações que haviam sido feitas por líderes de outros partidos com medo de não sei o quê. […] Infelizmente, o governo bateu o pé e ofereceu o nome de um senador do PT”, disse Bolsonaro. 

Para ele, os trabalhos devem focar no rastreamento de recursos e na responsabilização de gestores e decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em sua visão, “potencializou” o crime organizado, como a ADPF 635, que limitou operações policiais no Rio.

“Para ficar claro à opinião pública: quem não quis essa CPI foi o governo. É o governo do PT que não quis a instalação da CPI. O que é legítimo. Não é ilegítimo, não. Se o governo Bolsonaro não queria a instalação da CPI da Covid – porque sabia que era um instrumento contra si próprio e foi – também é legítimo e faz parte do jogo”, afirmou o senador Márcio Bittar (PL-AC).

O cientista político e sócio da Hold Assessoria Legislativa, André Pereira César, avalia que, apesar da vitória do governo na instalação da CPI, o cenário ainda é incerto. “É uma vitória [que pode ser] muito rápida, muito curta, e pode se transformar numa derrota amanhã […] Vai ser a prévia, digamos assim, da disputa eleitoral que teremos ano que vem”, afirma César. 

Para ele, a comissão tende a se transformar em mais um instrumento de disputa política do que pela busca de resultados concretos, sobretudo por tratar de um tema de forte apelo social.

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