Crimes sexuais e silenciamento na aula de ioga

Rafaela Rocha tinha 17 anos quando conheceu o método Vidya Yoga por meio de um cartaz em uma faculdade tradicional de São Paulo. Ela cursava Comunicação das Artes do Corpo, e achou que aprender ioga combinava com a sua área de interesse. As aulas eram relativamente baratas: R$ 50 por mês — valor de 2007, que hoje equivaleria a cerca de R$ 170. Em pouco tempo, ela se tornou uma aluna aplicada, e logo recebeu um convite especial: se tornar discípula de Uberto Gama, o criador do método.

Gama não era apenas um professor de ioga. Ele se autointitulava mestre, guru, satguru (o verdadeiro guru, em sânscrito), swami (guia espiritual, em hindu), e ordenava ser chamado por esses títulos, pelo nome espiritual Swami Vyaghra Yogi ou, no mínimo, por “senhor”. Nunca “você”. Discípulos diziam que ele tinha o poder de fazer milagres, de curar doenças e até prever o futuro.

Ele está preso preventivamente desde abril por suspeita de estupro de vulnerável, violência sexual, violência psicológica e tortura. Foi acusado de se valer de sua posição de líder espiritual para cometer os crimes – inclusive contra três meninas que tinham menos de 14 anos na época dos fatos. O mestre foi denunciado por mais de 20 ex-integrantes de sua ordem – que é considerada, pelos ex-membros, uma seita. Rafaela é uma das pessoas que decidiu quebrar o silêncio e expor a falsidade do guru.

A Agência Pública conversou com ex-discípulos de Gama, que foram próximos a ele por anos, teve acesso a documentos internos do Vidya Yoga e à investigação do Ministério Público (MP) do Paraná, e até frequentou uma aula de seu método para entender os bastidores do clã.

Por que isso importa?

  • Criador do método Vidya Yoga é acusado de se valer se sua posição de liderança espiritual para cometer crimes sexuais e outras violências contra discípulos;
  • Práticas de exercícios que aliam o corpo e a mente se popularizaram no Brasil, onde pelo menos cinco milhões de pessoas praticam ioga.

“Você tomaria banho com seu mestre?”

Conviver com Gama era restrito a poucos escolhidos, que se destacavam pela dedicação e obediência. Mas todos os alunos do método Vidya Yoga conheciam o rosto dele. Um quadro com sua foto era ostentado em um altar nas salas de todas as escolas, com unidades em São Paulo, Curitiba e Londrina, no Paraná. Os adeptos tinham que fazer uma reverência à imagem dele antes de toda prática.

Até o convite para o discipulado, Rafaela conhecia o mestre apenas pela foto. A imagem mostrava um homem louro, de cabelos ralos, barba e olhos claros, com o olhar penetrante. A imagem ficava ao lado de um símbolo dourado do Om, o som primordial do universo segundo religiões orientais, uma estátua da divindade hindu Shiva e vasos com flores. Os tapetes de ioga deviam ficar sempre virados para a imagem do mestre.

Ela viajou para Quatro Barras, cidade próxima a Curitiba, onde fica a chácara em que Gama montou um ashram – na antiga Índia, era o local onde as pessoas viviam em comunidade sob a orientação de um guru.

Com arquitetura de requinte e cercado pela natureza, o ashram era limpo e organizado. Juntos, os discípulos praticavam ioga, faziam refeições vegetarianas e meditavam. Boa parte dos membros era assídua há anos – alguns, até décadas. Rafaela se sentiu em casa.

Algumas regras do mestre causaram estranhamento à estudante, mas ela tentava se convencer que ele, como uma pessoa iluminada, como costumava propalar, tinha conhecimentos que os outros não dispunham. Os integrantes da ordem eram obrigados a dar 10% de todos os rendimentos ao mestre, além de pagar mensalidades que, em valores corrigidos, chegavam a R$ 20,6 mil. Quando foi preso, este ano, a Justiça mandou bloquear mais de R$ 2 milhões em bens das contas de Gama, além de dois veículos.

O mestre dizia que o pagamento dos 10% era uma forma de “manutenção da vida” dele e em “retribuição por todo o ensinamento transmitido”, conforme explicou a Rafaela em um e-mail quando ela alegou que não tinha muito dinheiro – afinal, ainda era adolescente, sem fontes de renda fixas. Mas foi repreendida pelo guru. “Para você ser minha discípula leal e sincera, deve […] contribuir com um valor mínimo que seja, para valorizar o meu trabalho”, ele escreveu.

Ela também achava esquisitas as regras aplicadas a mulheres. Elas eram obrigadas a estar sempre depiladas e precisavam lavar o ânus internamente depois de cada evacuação – as lavagens constantes geraram uma hemorroida na estudante. Ele justificava que a higiene física purificava o espírito. Mas não cobrava o mesmo dos homens.

Se dizendo especialista em medicina oriental, Gama também pedia para que suas discípulas enviassem fotos nuas a ele, supostamente para orientações médicas. Ele fez o pedido a Rafaela, que havia acabado de completar 18 anos, para analisar uma dermatite na pele dela. “Ainda tenho o e-mail. Quando comecei a entender o que estava acontecendo decidi guardá-lo para um dia poder denunciar. Hoje me pergunto como acreditei e percebo que ele se aproveitava da vulnerabilidade das pessoas para agir. Eu já tinha passado por dois tratamentos médicos que não tinham curado a minha dermatite”, ela diz.

Dois episódios fizeram Rafaela entender que havia algo de errado. Primeiro, Gama entregou aos discípulos e instrutores um questionário de 90 perguntas para avaliar suas “sadhanas tântricas” – práticas para atingir a elevação espiritual. Os questionamentos têm pouca relação com o que o senso comum esperaria de um guia místico. Entre elas: “Já fez teste de HIV?”, “Você tomaria banho com seu mestre?”, “Como você gosta de beijar?”, “Você permitiria a intimidade sexual com seu mestre?”, “Você gosta que lamba e chupe [sic] os dedos dos seus pés?”, “Você já tentou algo ‘perigoso’ sexualmente, isto é, amor em lugares diferentes, beijos escondidos, esfregação no cinema, abrir o zíper do companheiro e manipular o Lingam [pênis] etc?”.

O segundo episódio foi o convite para uma “prática tântrica” no ashram de Quatro Barras. Ela tinha começado a se relacionar com um rapaz do grupo, um pouco mais velho que ela, por incentivo do guru. Os dois entraram na sala de prática e viram os outros integrantes nus, organizados no espaço, com Gama e sua então esposa vestidos, caminhando por eles e passando instruções de posições sexuais. Ela se sentiu constrangida, mas não teve coragem de desobedecer o mestre.

“Comecei a rezar, pedindo por um sinal divino. E então o ato em si não aconteceu, eu comecei a ter uma crise de choro, tiveram que me tirar dali. Os Orixás apareceram na orgia do Uberto para me salvar”, ela diz. “Mas foi então que ficou claro pra mim que todo mundo realmente acreditava que aquilo era para uma melhora espiritual, que elas iriam evoluir espiritualmente através da prática sexual.”

Nessa época, Rafaela vislumbrava se tornar instrutora de ioga e, para isso, precisaria passar pelo período de discipulado. Ela começou a duvidar de sua percepção – afinal, os outros discípulos aparentemente não se incomodavam com o viés sexual – e decidiu superar o mal-estar e dar mais uma chance ao mestre.

Até que, certo dia, Gama teria chamado a estudante para uma conversa por um aplicativo de mensagens, segundo ela relata. “Eu lembro que ele falou: ‘Tenho uma notícia para você’. Você é escolhida para evoluir. Você tem uma grande espiritualidade. Então, eu queria sugerir que a gente fizesse uma prática tântrica de dupla penetração, comigo e outro mestre.”

“Aí eu saquei. Que cara de pau”, diz. “Mas joguei o jogo. Falei: ‘Ó, querido mestre, eu não sinto que sou pura o suficiente para estar junto a dois mestres iluminados’. Depois disse que meu namorado não tinha concordado e recusei o convite”. Rafaela usou um namorado que não existia para se esquivar da violência.

Após a negativa, Rafaela foi expulsa da casa que dividia com uma instrutora da ordem, por ordem de Gama, e banida do grupo. Segundo ela, o mestre teria dito aos outros integrantes que ela estaria ingerindo bebidas alcóolicas e “tendo práticas anais com pessoas desviadas”.

Apesar de a situação ser vista por ela como traumática, Rafaela diz que nunca deixou de praticar ioga – de outras vertentes – mas mudou sua caminhada como instrutora de ioga. Hoje atua como terapeuta ayurvédica e se especializou em políticas que combatem o abuso sexual e a violência de gênero e criou o Multiplicando Doulas, curso que combate a violência obstétrica. Ela está se formando em Gênero e Diversidade pela Universidade Federal da Bahia e vai defender sua monografia, sobre violência de gênero na área da saúde, e onde faz parte da Frente Feminista Tereza de Benguela.

Ela também já estudou filosofia tântrica, e entende que a prática é bem diferente do que Gama professava. “Não acredito em práticas tântricas focadas apenas na questão sexual e que através dela um mestre supremo teria o poder de te iluminar. Ele [Gama] não praticava tantra. Ele estuprava e abusava de suas discipulas”, afirma.

Sigilo, humilhações e obediência

A promotora Tarcila Teixeira, coordenadora de proteção de direito das vítimas do MP do Paraná, que comanda as investigações, explica que Gama manipulava seus discípulos por meio da imposição de segredo absoluto entre os participantes, humilhações públicas e promessas de evolução espiritual mediante obediência inquestionável. “Ele exercia dominação psicológica por meio de fé absoluta em suas palavras”, diz.

Segundo a investigação, Gama estimulava que os discípulos se relacionassem apenas entre si e rompessem conexões de fora – inclusive com a própria família. Casamentos eram rearranjados dentro do grupo, e ele mantinha controle sobre a vida pessoal dos seguidores: profissão, finanças, negócios e até a educação dos filhos. “Qualquer decisão, como vender o carro, passava por ele. Tinha que ser para alguém de dentro e pagar os 10% do mestre”, diz a promotora.

Segundo ela, Gama também atuava como psicólogo dos discípulos e cobrava que eles lhe confidenciassem tudo o que fizessem ou pensassem. Usava o termo “gupta” [segredo, em indiano] para indicar que as conversas seriam reservadas. No entanto, conhecendo os medos, problemas e anseios de seus discípulos, Gama fazia um “leva e traz” de informações de modo a satisfazer os próprios interesses.

Um de seus métodos consistia em sessões públicas de humilhação, chamadas de “escrutínio”, em que os discípulos precisavam falar sobre suas falhas na frente de todos e receber críticas. Na mentalidade do grupo, obedecer às ordens do guru não era apenas mandatório, era sagrado. Segundo a promotora, Gama dizia que havia superado o ego e seus ensinamentos vinham de guias espirituais elevados, portanto deveriam ser aceitos sem questionamento. Desrespeitá-lo era visto como atestado de fraqueza espiritual. “Ainda que no discurso ele dissesse que todos tinham liberdade, na verdade todos tinham medo de fazer qualquer indagação ou não aderir às ordens do mestre.”

As práticas tântricas, supostamente para melhorar a vida dos casais, serviam como “contemplação lasciva” para Gama, de acordo com Teixeira. Ele também usava a sua autoridade para praticar estelionato sexual – ou seja, obter favores sexuais mediante fraude. As vítimas acreditavam que, ao fazer sexo com ele, iriam evoluir e resolver questões como dificuldade para engravidar e problemas conjugais. “Ele chamava as vítimas no escritório e dizia: ‘Tire a roupa que eu vou fazer uma prática com você para melhorar o seu casamento’. Aí ele ia lá e penetrava”, diz Teixeira.

Segundo ela, os integrantes da ordem somente perceberam que estavam sendo enganados após um episódio em que o mestre agrediu fisicamente uma pessoa, na frente do grupo, sem motivo aparente. “Depois disso as mulheres começaram a conversar e contar suas experiências individuais. Uma não sabia o que tinha acontecido com a outra, porque Gama pedia sigilo. Só então tomaram consciência de que era sistêmico”, afirma a promotora.

O caso corre em segredo de Justiça para preservar a identidade das vítimas, que hoje tentam reconstruir suas vidas. Muitas delas integraram o clã por décadas e haviam cortado os laços com o mundo exterior, vivendo quase exclusivamente para o ashram. “A vida de todas as vítimas está bem difícil, desestruturada em todos os sentidos. Tem famílias inteiras que eram de lá. Teve gente que nasceu lá”, diz.

Pelo menos três menores de 14 anos teriam sido violentadas sexualmente por Gama, segundo a investigação. Ele também teria praticado tortura para “educar” crianças, como agressões, afogamento, isolamento no escuro e até colocar o dedo na garganta para forçar vômito, ainda de acordo com a investigação.

Beijar os pés e aceitar testes do mestre

Gama distribuía aos seus discípulos um manual chamado “Protocolo do guru”, conjunto de regras explicando como o mestre deveria ser tratado. Os alunos deveriam, todos os dias, ao acordar, meditar sobre a imagem dele. Um quadro com o seu rosto deveria estar sempre no quarto e no cômodo voltado ao oriente. “A presença da imagem do Mestre é fundamental para despertar bem-estar, satisfação, paz, tranqüilidade, força e disposição para começar o dia, independente das dificuldades ou problemas existentes. Há pessoas que saem da depressão somente meditando sobre a imagem do Satguru”, diz o texto.

O documento estipula que os discípulos devem, entre outros: dar alimento ou pagar por refeições sempre que o mestre sentir fome (em restaurantes, o garçom deve servi-lo primeiro); hospedá-lo em casa sempre que for necessário (e deixar separado um bom jogo de cama e banho para ele); jogar pétalas de flores coloridas e queimar incensos por onde o guru passar.

O protocolo é enfático sobre a necessidade de não ter segredos com seu mestre, aceitar as sessões de “escrutínio” e obedecer sem questionamentos – o que seria depois revertido em ganhos espirituais. “A energia que você gasta servindo ao guru, acionará automaticamente a Lei do Karma e energia cósmica fluirá em você”, afirma.

O texto alerta, porém, que o mestre poderia eventualmente testar os limites dos alunos. “O Guru testa os discípulos de várias formas: física, mental, emocional e espiritual. Alguns estudantes o entendem mal e perdem a fé nele. Mas não se pode agradar a todos. São ‘ossos do ofício’ de Guru. Conseqüentemente eles não são beneficiados posteriormente.”

Voto no Aécio e “sementes do PT” na aura

Gabriela* começou a frequentar uma escola Vidya Yoga na Vila Mariana, em São Paulo, em 2002. “Eu estava numa fase complicada na vida pessoal, com dores de relacionamento e com meus pais. Projetei um pai nele [Gama]. Ele me orientava, falava o que eu tinha que fazer”, lembra.

“Eu trabalhava em uma multinacional, tinha uma carreira estabelecida, mas estava desgostosa. Ele me convenceu a largar o emprego e comprar uma escola [unidade na Vila Madalena]. Comprei em 2011 e fui morar lá. Mas não tinha noção do que estava me esperando”, ela continua. “Me venderam que a escola era super próspera e na verdade estava no buraco. Fiz o curso de formação e virei instrutora. Aí ele mudou comigo. Ficou mais crítico, mais duro.”

A percepção de Gabriela mudou após uma viagem à Índia, em que ela conheceu outros mestres de ioga com comportamento bem diferente do de Gama. “Comecei a ver ele como uma pessoa egóica. Parecia mais um Osho-ostentação”, diz. Segundo ela, o mestre começou a se envolver com política e se alinhar à direita. “Em 2014, ele deu orientação para a gente votar no Aécio Neves (PSDB), e eu votei na Dilma Rousseff (PT)”, afirma.

O mestre continuou defendendo a direita ao longo dos anos, segundo registros de suas redes sociais, seu blog pessoal (em que defende a pena de morte, chama o político Zé Dirceu de “pilantra” e fala que todas as mulheres têm que ser reverenciadas, “mesmo as feias e desdentadas” ) e canal no YouTube (em um dos vídeos, de 2020, ele apoia as Forças Armadas e cita o ex-vice-presidente bolsonarista General Hamilton Mourão).

Em um post no X, de 2021, Gama defende um golpe de Estado. “Muitas vezes na história, é necessário ‘fechar a casa’, fazer uma faxina e até mesmo ‘demitir’ empregados incompetentes. Falo claramente do nosso Brasil (art.142 Carta Magna)…”. Ele menciona o artigo da Constituição que, numa interpretação errônea, justificaria a intervenção das Forças Armadas nos poderes.

O ponto final na relação entre Gabriela e Gama ocorreu quando ele tentou impedir que ela morasse com o companheiro porque ele não fazia parte do clã e era visto como “de esquerda”. “Ele chegou a falar: ‘Ou eu, ou ele’. Era uma seita, quanto mais vínculo você perde, mais manipulável se torna”, ela diz.

Contrariado, Gama disse, em um e-mail de 2015, que Gabriela estava com “bija” [sementes] do PT na aura e ameaçou descredenciar a sua unidade. Ela acatou e anunciou que iria se desvincular. Ele respondeu de modo jocoso e irônico, também por e-mail. “Aproveito para sugerir à Gabriela para utilizar o espaço para a criação de uma ONG – organização não-governamental de DIREITOS HUMANOS, aproveitando o ambiente, ou até mesmo um PET SHOP”, escreveu.

Diplomas falsos e mestre tirado de filme

João* praticou no Vidya Yoga por seis anos antes de ingressar no curso de formação, em 2014. Ele foi atraído pelo discurso científico dos instrutores. “Eles diziam que ali todo mundo era incentivado a estudar, que tudo podia ser questionado, que os instrutores eram médicos, advogados, arquitetos. Eu estava terminando minha segunda graduação e me encantei com a ideia de conciliar o trabalho em educação com o ensino de ioga”, diz.

Mas, chegando nas primeiras aulas no ashram, ele se surpreendeu com a diferença entre discurso e atitude, principalmente quando Gama estava por perto. “Os discípulos corriam para ficar perto dele, beijar os pés dele. Havia até uma disputa para ver quem fazia aquilo primeiro”, lembra. Ele também se incomodou com um certo privilégio masculino dentro do grupo. Segundo ele, Gama costumava reforçar que a liderança era uma qualidade masculina, e os outros mestres (grau mais alto da hierarquia, abaixo dele) eram todos homens.

Para ele, a decisão de sair definitivamente do discipulado ocorreu quando um dossiê apócrifo começou a circular entre integrantes do clã mostrando que vários dos títulos e certificados alardeados por Gama eram, na verdade, comprados ou inventados.

Gama anunciava a sua formação acadêmica da forma mais visível possível. Os títulos estavam no site das escolas do Vidya Yoga, nas redes sociais do mestre e até em sua assinatura de e-mail. “Você via aquele monte de diploma e pensava, ‘Nossa, esse cara realmente é muito bom’”, diz Gabriela.

A Pública conseguiu confirmar a falsidade de algumas informações. Outras foram tiradas do ar ou não tem bases sólidas para pesquisa.

Por exemplo, ele dizia que era “doutor honoris causa pela Universidade de Cambridge em Educação Física”. No entanto, seu nome não consta no rol de pessoas que já receberam a honraria. Ele também afirmava ter sido indicado duas vezes para integrar um livro de personalidades do American Biographical Institute e, em 2008, foi selecionado. Porém, esse instituto norte-americano, que faliu em 2012, foi denunciado várias vezes por fraude por incluir qualquer pessoa que pagasse uma taxa entre 195 e 495 dólares.

As mentiras ainda iam além dos certificados. O dossiê mostra que, em uma palestra, o guru usou fotos do filme “Kung-Fu Futebol Clube”, uma comédia de 2001 do diretor Stephen Chow, para retratar o suposto mestre de quem teria sido discípulo. A apresentação mostra uma “foto antiga do mestre em treinamento na Índia, em 1962”, mas a imagem, de um homem com roupa de guru abrindo um espacate lateral enquanto se apoia sobre uma mão, é de uma das cenas mais famosas do filme.

Carla* é outra pessoa que relata ter passado por experiências traumáticas ao entrar para o discipulado, em 2014. Em uma ocasião, Gama a convocou para ir a Curitiba (ela mora em São Paulo) porque precisava fazer uma leitura do seu mapa astral e mapa kármico. Ela obedeceu. Lá, ele disse que ela era uma pessoa “muito revolucionária e questionadora” e que eles iriam trabalhar para que ela se tornasse mais submissa.

Depois, afirmou que o marido de Carla iria morrer em 2017. “Você precisa estar firme e submissa, porque eu vou te ajudar quando ele morrer”, ele teria dito. Ela entrou em surto e passou dias numa espiral de preocupação. De volta a São Paulo, procurou por instrutores da escola que frequentava, que a acalmaram e endossaram que, se Gama tinha falado, era verdade.

Pouco depois, o mestre ficou sabendo que ela procurou os professores. “Ele me escreveu, dizendo que eu rompi a confiança dele, porque uma conversa entre mestre e discípulo é confidencial. Disse que eu era muito fraca e, portanto, estava rompendo o discipulado”, ela lembra.

“No final, lembro que sentei com mais duas pessoas que haviam saído do discipulado. A gente se olhou e falou: ‘Cara, isso não tem nada a ver com ioga. Isso é uma seita demoníaca’”, afirma. O marido de Carla está com boa saúde até hoje.

O mestre sumiu do altar

A família de Gama frequentava a alta sociedade curitibana. O pai era médico estomatologista e presidiu clubes da elite. O primeiro contato do “mestre” com o ioga, segundo ele mesmo conta em sua autobiografia, ocorreu aos 10 anos de idade, após ler um livro do professor Hermógenes, um dos precursores da prática no país.

Naquela época, início dos anos 1970, o ioga ainda era visto como uma prática exótica e distante da realidade brasileira. Oficialmente, o ioga chegou ao Brasil entre as décadas de 1930 e 1940, com o francês Leo Alvarez Costet de Maschelle. Pouco depois, o militar Caio Miranda foi o primeiro brasileiro reconhecido como professor. Ele dava aulas em sua casa, no Rio de Janeiro, e seu livro “Libertação pelo Yoga” foi um sucesso de vendas nos anos 1960. A primeira pós-graduação em ioga foi inaugurada em 1998 e os primeiros estudos científicos publicados em 1999. Em 2011, o ioga foi inserido no SUS como prática integrativa.

De uma prática vista como exótica e distante da realidade brasileira, o ioga se popularizou nas últimas décadas. O maior pico de interesse foi entre os meses de março e maio de 2020, os primeiros da pandemia de covid-19, em que muitas pessoas trancadas dentro de casa se interessaram pelos exercícios que aliam corpo e mente, segundo dados do Google Trends. Estima-se que pelo menos 5 milhões de pessoas praticam ioga no Brasil hoje.

Escolas ainda ensinam método Vidya Yoga

Ainda há unidades que ensinam o método Vidya Yoga – em algumas, batizado como Raja Vidya Yoga. A Pública esteve em uma delas, em São Paulo. A escola fica em um sobrado numa rua de classe média-alta. O ambiente é de bom gosto, com cheiro de incenso doce impregnando o ambiente e tapetes de ioga de boa qualidade. A sala estava quase lotada. Há uma única diferença em relação às fotos do site da academia: o quadro com a imagem de Gama foi removido do altar no centro da sala de prática.

O Vidya Yoga é apresentado aos alunos como “ioga antigo”, mas só fica clara a diferença com outros métodos ao se fazer uma aula. Ela começa com uma saudação (não mais ao guru, agora ao “Ioga”, de modo geral), depois exercícios de respiração, uma sequência de asanas (posturas clássicas do ioga), e termina com meditação e vocalização de mantras. As aulas têm duração de 1h ou 1h30, e as mensalidades custam entre R$ 370 (plano anual, uma vez por semana) a R$ 1,2 mil (plano mensal, livre).

Nada de Gama, em nenhum lugar da escola e nem na boca do instrutor – que se assustou ao ouvir o nome do ex-mestre. “Não, não tem nada a ver com isso”, disse, ao ser questionado. As aulas continuam acontecendo, mas o guru foi apagado. Dias depois, após a reportagem se identificar como tal e pedir um posicionamento, o instrutor disse que “não tem envolvimento com os fatos noticiados”, tem atuação “pautada pela ética, respeito aos princípios do ioga e cuidado com os alunos”.

Os advogados de Gama, Mariel Muraro e Rafael Augusto da Silva, disseram, em nota, que “a denúncia [do Ministério Público] é mera peça informativa e não reflete a realidade dos fatos. A Defesa nega veementemente as acusações e confia que a verdade virá à tona no curso de eventual instrução criminal”. A defesa também critica que o MP fez a divulgação da denúncia, porque o caso em segredo de justiça, e aponta que a publicação “expõe detalhes que acabam por revelar não apenas a identidade do acusado, como também de vítimas eventualmente envolvidas, o que afronta o caráter sigiloso da persecução penal.”

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