Debate do aborto: por que a Espanha avança e o Brasil caminha para mais restrições?

Neste mês de outubro de 2025, enquanto o governo de Pedro Sánchez anunciava a intenção de inscrever o direito ao aborto na Constituição da Espanha, como uma muralha contra o avanço da extrema-direita no país, o Brasil dava mais um passo contra a criminalização, com o voto do agora ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, que decidiu pela descriminalização até a 12ª semana, sob o argumento de que o aborto é “questão de saúde pública, não de direito penal”.

Durante seu voto, ele provocou: “Se os homens fizessem aborto, ele já teria sido legalizado há muito tempo.” O julgamento que se arrasta desde 2023, foi interrompido por pedido de destaque do decano Gilmar Mendes na sexta-feira (17), e não tem data para ser retomado. Até o momento, o placar está em 2 votos a 0 pela descriminalização — o voto inicial foi dado pela ex-ministra Rosa Weber, que na ocasião disse: “O Estado não pode julgar que uma mulher falhou no agir da sua liberdade e da construção do seu ethos pessoal apenas porque sua decisão não converge com a orientação presumivelmente aceita como correta pelo Estado ou pela sociedade, da perspectiva de uma moralidade.”

Curiosamente, no intervalo de 48h, quando Barroso votava pelo avanço de um direito das mulheres, a comissão de Direitos Humanos do Senado brasileiro já havia aprovado o Projeto de Lei 2.524/24 que proíbe o aborto após a 22ª semana, mesmo em casos permitidos hoje, como estupro ou risco de vida. O projeto agora segue para análise da Comissão de Assuntos Sociais (CAS). 

Também em São Paulo, a Justiça do estado suspendeu decisão liminar que autorizava aborto em casos de retirada de camisinha sem consentimento. A decisão foi proferida na segunda-feira (20) pelo desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Borelli Thomaz.

O tema do aborto, permeado por disputas jurídicas, políticas e morais, e seus impactos na vida das mulheres têm sido noticiados pela Agência Pública. É o caso de A., retratada na reportagem “Dor em dobro”. Com 29 anos e dois filhos, ela viveu uma história que se desdobrava em camadas de silêncio e medo. Ao voltar do trabalho à noite, ela foi arrastada para debaixo de uma ponte e estuprada. Ela engravidou. No primeiro hospital público que procurou, ouviu que nada podia ser feito. Foi mandada para casa. Ninguém mencionou que, desde 1940, o Código Penal brasileiro isenta de punição o aborto em caso de estupro. 

Ninguém lhe falou da lei de 2013, que garante atendimento emergencial e integral às vítimas de violência sexual. Sozinha, A. descobriu na internet que tinha um direito. Começava ali uma peregrinação que a levaria a um terceiro hospital em São Paulo, onde finalmente conseguiu interromper a gestação, já com mais de 12 semanas. 

A história de A., ocorrida em 2014, não é um ponto fora da curva. É a materialização de uma política não escrita, mas praticada com rigor nos corredores de hospitais e nos gabinetes do Congresso: a de dificultar ao máximo o acesso a um direito.

Uma década depois, outra mulher, F., retratada na reportagem “A saga de uma vítima de violência para conseguir o aborto legal”, também com 29 anos, viveu uma história semelhante. Vítima de estupro por uma pessoa próxima, demorou a se sentir segura para procurar ajuda. Quando o fez, a gestação já passava de 22 semanas. Em São Paulo, o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, referência para casos de idade gestacional avançada, havia suspendido o serviço no final de 2023. F. ouviu “não” no Hospital da Mulher e em outros tantos. A solução foi uma viagem de avião para Salvador, custeada por uma ONG, para ser atendida no único serviço do país que aceitou seu caso. “É isso mesmo que eu quero fazer, estou com um pouquinho de medo, talvez por estar sem ninguém da família, mas vai dar tudo certo”, disse ela, por mensagem, à ativista que a ajudou.

Enquanto A. e F. peregrinavam sem suporte, a Espanha consolidava um caminho oposto. O país, também de forte tradição católica, descriminalizou o aborto em 1985, em três situações: estupro, risco para a mãe e má-formação do feto. Em 2010, sob o governo socialista de José Luis Zapatero, uma nova lei permitiu a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana, sem necessidade de justificativa.

Hoje, 70% dos espanhóis apoiam a legalidade do procedimento, segundo pesquisa do instituto Ipsos de 2022. No Brasil, pesquisa Datafolha de 2024 registrou que apenas 7% da população defende a liberação em qualquer situação. “Sempre se falou que, no Brasil, a questão do aborto estava muito associada ao fato de o país ser majoritariamente católico. Na verdade, se olharmos a Europa — Espanha, Portugal, França e até a Irlanda, extremamente católica — todos já têm aborto legal”, explica a cientista política e historiadora Celi Pinto, professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para ela, o conservadorismo brasileiro no tema é mais contemporâneo do que se imagina. “Há 50 anos, ele era visto de forma muito mais natural do que hoje”.

A diferença de rumos entre Brasil e Espanha, segundo especialistas, também passa pela política. “Na Europa, o direito ao aborto alcançou a ‘descriminalização social’”, afirma Mariana Prandini, professora de ciência política na Universidade Federal de Goiás (UFG). Lá, partidos progressistas abraçaram a pauta. No Brasil, diz Celi Pinto, “o grande partido de esquerda no Brasil é o PT, e entre os grupos importantes que formaram o PT está a Igreja Católica”, o que travou o debate.

Para A. e F., e para as milhares de mulheres cujas histórias não são contadas, a frase de Barroso ecoou não como uma provocação, mas como a constatação de uma verdade que seus corpos conhecem intimamente. 

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