O Dia dos Pais é celebrado em diversos países em diferentes datas e tradições. No Brasil, a comemoração acontece no segundo domingo de agosto, com uma proposta comercial que envolve presentear a figura paterna, geralmente atribuída aos homens. Mas, os dados revelam que entre eles é recorrente o abandono parcial ou completo da responsabilidade do cuidado, que acaba recaindo sobre as mulheres.
Segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, só em 2024, o Brasil emitiu mais de 91 mil certidões de nascimento sem o nome do pai. E, de acordo com o Censo 2022, há quase seis vezes mais mães solo do que pais que assumem a paternidade sozinhos no país.
Na semana em que se comemora o Dia dos Pais, o episódio do Pauta Pública analisa esta realidade brasileira e discute o que é, de fato, exercer a paternidade quando se assume a responsabilidade. O entrevistado é Humberto Baltar, educador parental e fundador do Coletivo Pais Pretos Presentes. Ele propõe uma reflexão que vai além da ausência paterna e questiona o modelo tradicional atribuído.
Baltar defende uma paternidade que vai além do provimento material e considera a saúde, o emocional e todos os aspectos que envolvem o cuidado e as vulnerabilidades de lidar com o outro, o que chama de paternidade afetiva. Ele diz que é “impossível discutir a ausência paterna no Brasil sem abordar a dimensão racial”. Segundo o educador, o fato de muitos homens não terem esse tipo de paternidade como referência pode dificultar ainda mais o processo. “Muitos homens fogem desse lugar porque não tem qualquer repertório ou proximidade com esse tipo de cuidado. E por não ter essa memória, dói ter que lembrar e enfrentar isso”, acrescenta.
Leia os destaques da entrevista e ouça o podcast completo.
EP 180
Pai presente?
8 de agosto de 2025
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Educador parental, Humberto Baltar, propõe uma reflexão sobre paternidade afetiva
O que que te motivou a levantar essa bandeira da paternidade ainda tão pouco debatida no Brasil?
Primeiramente, o que me motivou é que eu não tinha repertório nenhum para prover o meu filho emocionalmente. A gente aprende que o pai deve ser o provedor, pagar as contas, comprar roupas e os alimentos. Ou seja, aprendemos que é preciso cumprir o papel de homem como provedor financeiro. Mas pouquíssimo ou nada se fala em provedor de cuidado, provedor de saúde emocional, provedor de qualidade de vida.
Eu tive uma paternidade justamente dentro deste modelo. Meu pai me dava coisas, ele me deu uma ótima educação, brinquedos e roupas. Porém, conversas sobre os meus sentimentos, inseguranças, medos, e até mesmo as expressões de afeto eram muito raras na minha relação com meu pai. Então, em 2018, quando eu descobri que seria pai eu me vi perdido porque eu não tinha repertório emocional para criar uma criança. Também fui atravessado pela questão do gênero, pois era um menino e a gente também não aprende a dar afeto a outro homem, pois nos é ensinado que o afeto é algo feminino.
Como eu não lembrava, por exemplo, do meu pai me dizer “eu te amo”ou me fazer um carinho, um afago, eu não tinha nenhuma dessas memórias afetivas com meu pai e percebi que eu não queria dar isso pro meu filho, porque eu sabia a falta que isso me fazia. Então esse foi o segundo ponto que me levou pra essa questão de realmente pensar uma paternidade que eu considero ativa, afetiva e efetiva.
Um terceiro ponto, foi a questão do letramento racial. Eu não tinha repertório racial para empoderar meu filho. Essa é uma coisa que me preocupava muito, porque bem na época que eu soube da minha paternidade, deparei nas redes sociais com ataques racistas a uma menina de apenas dois anos e aquilo me preocupou muito porque eu pensei em como lidar com essa situação. Eram dúvidas que eu tinha por não ter repertório porque na minha família realmente também nunca se falou nada sobre a ancestralidade africana ou sobre o legado do berço civilizatório africano. Então esses pontos foram centrais para eu refletir sobre paternidade.
Como é essa atuação em educação parental?
A educação parental ainda é muito elitizada no Brasil. Só para você ter uma ideia, a minha pós-graduação pela Reis de Amparo, ela custou R$9 mil e eu só consegui fazer porque eu recebi uma bolsa de estudos que me foi dada pelos proprietários dessa pós-graduação.
Porque quem é a pessoa que tem esse dinheiro para pagar um curso que ensina sobre disciplina positiva, criação com apego, comunicação não violenta e luto emocional? São conceitos importantíssimos que se aprende neste curso e que a maioria de nós ignoramos por completo, principalmente a comunidade negra.
[A bolsa de estudos] foi fundamental para que eu tivesse esse acesso e pudesse repassar, através do coletivo, as nossas famílias pretas, pobres, periféricas em situação de vulnerabilidade social. Hoje, eu trabalho nas políticas públicas levando conceitos da educação parental para famílias humildes que acessam a unidade básica de saúde. Eu sou um consultor de projeto do Instituto ProMundo já há dois anos atuando com eles e o que me levou a desempenhar esse trabalho foi, em 2021, quando a gente buscou dados de pais pretos no Brasil e descobrimos que não existiam dados.
Então, a gente se reuniu com o Instituto ProMundo com outras famílias do Coletivo Pais Pretos e fizemos uma pesquisa em todo o território nacional para a gente poder ter dados sobre a paternidade preta e, em 2021, a gente consegue redigir o primeiro relatório das paternidades negras no Brasil. Foi muito importante fazer esse documento porque, finalmente, a gente começa a ter dados sobre essa paternidade e entender qual é o impacto de não existir uma educação parental. E eu defendo que a educação parental faça parte da política pública porque eu acho que é um tema urgente e de saúde pública, inclusive, nesse país.
Atualmente, observamos um aumento significativo no número de famílias monoparentais, em sua maioria compostas por mães e filhos. O que explica esse fenômeno da ausência paterna, e de que forma o racismo estrutural se relaciona com esse cenário?
Na minha visão, uma das palavras-chave para compreender esse fenômeno é a normatividade. Essa imposição de um modelo considerado “correto” de ser e de viver, moldado historicamente por estruturas de poder, como a colonialidade. Vivemos, ainda hoje, os efeitos da escravização e da condição colonial, o que resulta em uma profunda crise de identidade no Brasil.
Isso afeta diretamente a construção da paternidade. Como exercer uma paternidade afetiva, cuidadosa e efetiva se, muitas vezes, os homens não têm qualquer repertório emocional para isso? No meu caso, por exemplo, tudo o que vivo hoje com meu filho de seis anos é completamente novo. Quando dou banho nele, estou realizando um gesto que não tem qualquer referência na minha própria história, porque representa algo que eu não tive.
Muitos homens evitam esse lugar de cuidado não por falta de vontade, mas por não saberem como acessá-lo emocionalmente. O estudo do Instituto ProMundo, de 2020, mostra que muitos pais gostariam de estar mais presentes na criação dos filhos, mas não conseguem porque não sabem como ou não têm o repertório necessário. Esse desconhecimento não é apenas racional, é afetivo, e muitas vezes está associado a lembranças dolorosas ou à total ausência de referência.
A socialização masculina também contribui para esse distanciamento. Enquanto meninas, desde pequenas, são incentivadas a cuidar de bonecas e com brincadeiras que envolvem maternagem e afeto. O que os meninos recebem? Armas de brinquedo, espadas, escudos. Poucos são incentivados a cuidar, a se conectar emocionalmente, a desenvolver o vínculo afetivo com outras pessoas. Em vez disso, são ensinados que chorar é “coisa de mulherzinha”, que vulnerabilidade é sinônimo de fraqueza.
Além disso, mesmo quando há um pai fisicamente presente em casa, sua participação no cuidado costuma ser limitada. Em muitas famílias, os homens só executam tarefas quando recebem instruções de suas companheiras e toda a carga mental do cuidado continua sendo da mulher. Quem organiza a rotina, quem conhece os detalhes da saúde e das necessidades das crianças, quem gerencia o cotidiano dos filhos, na maioria das vezes, ainda são elas.
Por fim, é impossível discutir a ausência paterna no Brasil sem abordar a dimensão racial. O homem negro, na lógica social hegemônica, não é reconhecido como figura humana plena. Como já afirmou Frantz Fanon, o homem negro não é visto como homem, mas apenas como negro, o que implica ser enxergado como ameaça, como força bruta, como figura hipersexualizada ou violenta. Não à toa, se você buscar imagens de “pai presente” na internet, verá majoritariamente homens brancos com seus filhos. A imagem de um pai negro afetuoso e cuidador ainda é invisível no imaginário social.
É por isso que o afrofuturismo tem um papel fundamental nesse debate. Ele nos permite ressignificar o passado e construir novos imaginários possíveis sobre o que é ser homem negro, pai e cuidador. Só transformando esse repertório histórico podemos sonhar com futuros diferentes, com novas formas de paternar, baseadas no afeto, no cuidado e no pertencimento.