Maíra Cardoso Zapater se sente repetindo as respostas que deu em entrevistas de dez anos atrás. Como especialista em direito penal e em violência de gênero, a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) foi instada a falar em 2015, ano em que o Brasil inseriu em sua legislação o crime de feminicídio – quando uma mulher é assassinada por ser mulher. Já na época, Zapater alertava para o fato de que a tipificação desse crime poderia não ter efeito nas estatísticas de violência contra mulher.
Agora, os dados mostram uma realidade assustadora, que corroboram o alerta feito por Zapater: o aumento de penas não reduz crimes. Números da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo revelam que 2025 já é o ano com maior número de feminicídios da série histórica, mesmo sem os dados de novembro e dezembro, como divulgou a GloboNews. Até outubro, foram 53 casos – em 2024, foram 51.
Na estatística, são considerados apenas feminicídios consumados, ou seja, o número de tentativas de feminicídio pode ser ainda maior, como foi o caso que chocou o país em que um homem atropelou e arrastou por um quilômetro uma mulher com quem tinha tido um relacionamento. A mulher, mãe de dois filhos, teve as pernas amputadas.
Por que isso importa?
Aumento de casos de violência contra a mulher e feminicídios levaram dezenas de milhares de pessoas a protestar nas ruas, no último dia 7, em várias cidades do país.
Nos últimos 12 meses, cerca de 3,7 milhões de mulheres brasileiras viveram um ou mais episódios de violência doméstica, segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero.
No Brasil como um todo, o cenário não é diferente. E vem piorando. Com exceção de uma leve queda em 2021 na comparação com 2020, o número de feminicídios aumentou a cada ano, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, chegando a um novo recorde em 2024. Foram 1.492 mulheres assassinadas, sendo que 8 em cada 10 delas foram mortas por companheiros ou ex-companheiros e quase 64% eram mulheres negras.
A brutalidade de casos recentes recolocou o problema no centro do debate público e ganhou as ruas, com protestos em várias cidades do país no último dia 7 de dezembro. Em São Paulo, nessa mesma data, enquanto manifestantes pediam “mulheres vivas”, duas mulheres foram mortas por ex-companheiros.
O presidente Lula (PT) disse na última sexta-feira, dia 12 de dezembro, que deve se reunir nesta semana com representantes de Senado, Câmara, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Defensoria Pública e Procuradoria Geral da República para tratar de soluções para a crescente violência contra as mulheres.
“Eu resolvi assumir a tarefa de tentar criar uma mobilização de homens nesse país. Não é uma coisa de mulher, é uma coisa de homem. Porque a violência é do homem contra a mulher, então nós, homens, que vamos ter que criar juízo, criar vergonha, se educar”, afirmou o presidente dias antes.
As deputadas federais do PSOL Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim apresentaram um requerimento para que Lula envie ao Congresso um pedido de reconhecimento de estado de calamidade pública pelo aumento de feminicídios. “Declarar estado de calamidade pública permite que o governo adote medidas emergenciais, como regime fiscal extraordinário, flexibilização de regras e ampliação de investimentos”, afirmou Melchionna em seu perfil no Instagram.
Já a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados agendou para esta terça-feira (16 de dezembro) a votação de vários projetos sobre o assunto, entre eles vários que, novamente, preveem aumentos de pena para casos de violência.
Para Zapater, ainda que os números estejam aí para demonstrar que o aumento de penas não leva à redução da violência, o Estado aposta nesse tipo de medida por ela ser “barata” e não implicar na implementação de políticas públicas, que demandam investimento.
Em entrevista à Agência Pública, a coordenadora e docente do curso de Direito da Unifesp explica que essa é a diferença para a Lei Maria da Penha, que completa duas décadas no ano que vem e prevê uma série de políticas públicas para enfrentar a violência contra a mulher.
Segundo a especialista, dados demonstram que onde as políticas previstas pela Lei Maria da Penha foram, de fato, implementadas, houve redução de casos de violência contra as mulheres. Ela chama atenção, porém, para o fato de que a educação em gênero nas escolas, prevista na legislação, não tem sido aplicada. Para ela, essa medida é fundamental, considerando que a violência de gênero é relacional.
“Não adianta a gente pensar só em como proteger as mulheres. Uma transformação cultural depende de conversa, depende de educação”.
Leia abaixo os pontos principais da entrevista.
Maíra Zapater explica que penas maiores não inibem crimes, mas população acredita nisso
Agência Pública: Maíra, temos quase duas décadas da lei Maria da Penha e uma década da Lei do Feminicídio. No ano passado, inclusive, a pena para feminicídio aumentou de 20 para 40 anos – a maior prevista no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda assim, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que em 2024 foi registrado o maior número de feminicídios desde 2015. Quais fatores podem explicar esse “descolamento” entre a legislação e a realidade de violência enfrentada pelas brasileiras?
Eu acho que não tem um descolamento. É uma aposta que o Brasil faz na imensa maioria dos problemas de segurança pública, para não dizer em todos. Sempre essa aposta que é, na melhor das hipóteses, ingênua, de ficar aumentando as penas.
Em 2015, quando teve essa primeira alteração do código penal pela Lei do Feminicídio, em que o tipo penal do crime de homicídio passa a ter qualificadora, fui chamada a me manifestar na imprensa, assim como outras pessoas que trabalham com a questão da violência de gênero, e me lembro de dizermos que o aumento de penas não tem nenhum poder de fazer a dissuasão da prática de qualquer tipo de violência e que isso também iria se observar no feminicídio.
O que eu acho que a gente não esperava era esse crescimento da misoginia e a maior liberação de armas, porque os homens estão com mais armas nas mãos.
Então, não é um descolamento. Na verdade, leis penais não servem para reprimir condutas. Até porque, quando [paramos] para pensar o que que é uma lei penal, criminalizar uma conduta, indicar que tem uma pena, significa que a gente precisa que o crime tenha sido praticado. Então, a Lei do Feminicídio vem sendo aplicada: os homens que matam mulheres são julgados por crime de feminicídio e, frequentemente, são condenados e levados à prisão.
O que a gente tem, talvez, é um baixo índice de esclarecimento, como acontece nos crimes dolosos contra a vida. Mas o fato é: aplicar a lei do feminicídio significa dizer sempre que uma mulher for morta, a condenação vai ter esse nome, vai ter essa rubrica. A criminalização, essa tipificação específica, seria para a questão dos registros policiais, produção de estatísticas e aí sim, elaboração de políticas de prevenção.
Já a lei Maria da Penha não é uma lei penal, ela é uma lei multidisciplinar e que institui políticas públicas. E essa é uma lei que nos lugares onde ela conseguiu ter alguma implementação dos seus mecanismos, a gente observa uma redução da violência, mas ela não é uma lei penal – e é por isso que ela tem efeito, só que ela custa dinheiro.
Ainda sobre essa questão do aumento das penas como resposta, uma pesquisa do Instituto Cidades Sustentáveis perguntou quais medidas deveriam ser prioritárias para combater a violência doméstica e familiar contra as mulheres. A medida mais mencionada foi justamente o aumento de penas. E nesta semana, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher analisa vários projetos que propõem diferentes aumentos de pena (para lesão corporal e feminicídio em área rural, para casos em que o agressor usar manipulação ou intimidação). Por que o aumento das penas tem se mostrado insuficiente para inibir a violência?
Acho que a questão não é a gente pensar se é insuficiente o aumento das penas, na verdade não é relacionado [com a incidência de violência] – muito embora esteja muito presente no imaginário das pessoas que o aumento de penas seja responsável por uma intimidação. E isso não é só no Brasil, isso é um fenômeno que acontece em qualquer país. Mas o aumento de penas, na literatura criminológica e pesquisas empíricas mostram que não tem absolutamente nenhum efeito dissuasório, embora essa crença seja muito difundida.
Isso não acontece só com os crimes marcados por violência doméstica e de gênero. Se a gente pensar no tráfico de entorpecentes, que é o crime que mais encarcera no Brasil, a gente tem um aumento de penas seguido desde os anos 1970.
E pensando na violência de gênero, por exemplo, o crime de estupro. Crime de estupro, que também tem taxas altíssimas, mesmo com a subnotificação, é um dos crimes que mais sofreu aumento de pena desde 1988. Em 1988, ano da Constituição Federal, o crime de estupro tinha pena de três a oito anos de reclusão. Com a lei dos crimes hediondos em 1990, ele passa a ter de seis a 10 anos de reclusão. Depois, com a reforma dos crimes sexuais em 2005 e [em] 2009, [quando] a gente teve duas alterações legislativas profundas, algumas delas importantes, inclusive. [Foi quando] se passou a chamar de crimes contra a dignidade sexual, ao invés de crimes contra os costumes, então o entendimento de que é um crime contra a liberdade sexual e não contra moral os bons costumes. Mas a gente chega a ter penas, no caso de estupro de vulnerável, de oito a 15 anos de reclusão.
Então, não é só nesse caso [do feminicídio], é porque não existe correlação entre aumento de penas e inibição da violência. A aposta nesse tipo de medida acontece porque é uma medida barata, ou seja, ela não implica a implementação de nenhuma política pública e ao mesmo tempo é uma medida extremamente popular.
É uma via de mão dupla. As pessoas acreditam que a pena tem esse poder dissuasório, quem está na política sabe que as pessoas têm essa crença, então isso passa uma sensação para a população de que algo está sendo feito. Mas, os números estão aí batendo na nossa porta e gritando para mostrar que não é assim.
A Lei Maria da Penha reconhece que enfrentar a violência contra mulher exige, além de medidas protetivas e tipificações, várias políticas públicas, como casas-abrigo, centros de referência, como a Casa da Mulher Brasileira, delegacias especializadas, patrulha Maria da Penha (para monitorar as medidas protetivas). Onde essa rede de proteção tem falhado?
Essa pergunta é muito boa para a gente pensar essa distinção entre a lei Maria da Penha e a chamada Lei do Feminicídio que eu estava dizendo. Para além da questão das medidas protetivas, que a lei Maria da Penha traz. É o primeiro instrumento legislativo brasileiro que traz esse tipo de medida, de identificar um risco para uma vítima, para uma mulher em situação de violência, e pensar em maneiras de evitar que essa violência se desenvolva para uma violência fatal. E isso é um tipo de medida que precisa de investimento.
Casas-abrigo, por exemplo, é uma medida que depende de você ter um imóvel, de você ter pessoas especializadas, de você ter uma rede de atendimento.
Um problema que costuma acontecer com mulheres em situação de violência é que aqui na cidade de São Paulo, pelo menos, existem abrigos que só aceitam pessoas do gênero feminino. E a gente pode pensar que, claro, isso é óbvio, afinal de contas, é para mulheres em situação de violência. Mas, se torna um obstáculo quando essa mulher tem filhos do gênero masculino. Então, existem mulheres, para citar um exemplo, mulheres que, às vezes, não querem ir para uma casa-abrigo, porque, além de ser extremamente desgastante, a pessoa sai da casa dela, é uma mudança muito radical da rotina, se a pessoa tem um pai idoso de quem ela cuide, algum outro dependente do sexo masculino, ou do gênero masculino, o abrigo fica sendo um impeditivo. Isso é uma questão de infraestrutura que deveria ser resolvida.
Agora, todos os pontos que você mencionou são para situações em que a mulher já está em situação de violência. É evidente que eles são importantes para evitar que a violência escale para violência feminicida, que isso também é um dado que é muito consolidado. Feminicídio não acontece de uma hora para outra. Ele é uma escalada de violência, que vai se intensificando até que se torne fatal.
Mas um dos pontos que eu sempre achei um dos mais interessantes da Lei Maria da Penha, e que é o menos aplicado, é a educação sobre gênero nas escolas. Isso é texto de lei. É o artigo oitavo, que estabelece que as escolas, desde a educação básica até ensino superior, precisam incorporar elementos de educação de gênero, para que a gente possa repensar essas relações, repensar as relações de masculinidade tóxica, repensar essas masculinidades que ferem os homens e os meninos também, porque pensar em violência de gênero é pensar em uma questão relacional. Não é ‘homens opressores’ de um lado, ‘mulheres oprimidas’ de outro. Claro que a gente tem uma assimetria de poderes aqui, mas não adianta a gente pensar só em como proteger as mulheres, mas uma transformação cultural depende de conversa, depende de educação.
E aqui é um ponto que eu acho que é pouco tratado que é a resistência dos setores conservadores a que se fale em educação de gênero. A corrupção do termo, a corruptela de se falar em ideologia de gênero. É um termo que não é técnico, que foi cunhado por autoridades católicas lá nos anos 1990. Então, é algo antigo no sentido de dizer que a ideologia de gênero e o feminismo são discursos que vão destruir a família, que vão sexualizar crianças, ou seja, toda uma distorção e que tem sido impeditiva. A gente vê projetos de lei que tentam proibir educação em gênero, educação sexual nas escolas.
Então, o que que a gente faz além de medida protetiva, além de tipificação? Isso tudo faz parte dessa rede de atendimento. Até 2016, o Brasil vinha conseguindo implementar as Casas da Mulher Brasileira, era um projeto do governo Dilma, que depois, com a entrada do Michel Temer no poder, esse programa é praticamente descontinuado. A partir daí que se começa a ter uma queda cada vez maior no orçamento para esse tipo de política pública.
Mas as Casas da Mulher Brasileira são centros em que se procurava reunir todos os tipos de serviço de atendimento num único lugar físico. Porque um outro impeditivo para as mulheres conseguirem a rede de atendimento complexa é que elas precisariam ir ao fórum para tocar o processo criminal e o processo da vara de família para se separar, ao INSS para conseguir um afastamento do trabalho, para conseguir [algum tipo de benefício social, à Casa Abrigo, à delegacia, ao hospital para fazer exame de corpo de delito, ao IML [Instituto Médico Legal]. Com isso, muitas vezes as mulheres perdem dias de trabalho, o que impossibilita que elas consigam fazer isso.
Então, as cidades onde a Casa da Mulher Brasileira foi implementada, a gente tem números para demonstrar que reduziu a violência contra as mulheres, inclusive a violência fatal. Eu me lembro de dados dessa época que mostravam cidades que têm a Casa da Mulher Brasileira com redução da violência fatal, mas ainda com uma clivagem racial importante, porque se reduz a mortalidade das mulheres brancas, mas não das mulheres negras.
E havia alguma hipótese para explicar por que não reduziu a mortalidade de mulheres negras? Pergunto porque essa clivagem racial se mantém, as mulheres negras continuam sendo a maioria das vítimas de feminicídio.
Na época, as hipóteses levantadas se relacionavam com acessibilidade a serviços no geral, no sentido de saber que existem, e que é direito delas acessar. E também a distância das periferias (onde em geral estão as mulheres negras) aos locais onde funcionavam as unidades da Casa da Mulher Brasileira.
O presidente Lula disse que as redes digitais precisam ser responsabilizadas pela publicação de discursos que incentivam o ódio e a violência contra as mulheres. Os discursos que circulam online podem ter influência na espetacularização dos crimes (em que os agressores são filmados ou agem em plena luz do dia em ambientes públicos)?
Eu não tenho dúvida que tem relação com isso. A única questão que eu colocaria aqui da fala do presidente é quando ele disse que as redes precisam ser responsabilizadas pela publicação de discursos. Eu acho que a discussão é mais complexa do que isso, porque ao falar em responsabilização, a gente sempre está dizendo que um direito foi violado e aí depois se responsabiliza. E o que acontece com esses discursos de ódio, na minha leitura, é que eles não são um efeito colateral do que as redes sociais têm feito, eles são um produto.
Então discursos de ódio, as redes masculinistas, os grupos de meninos radicalizados com conteúdos misóginos, redes que fazem incentivo de violência contra mulheres, que filmam os crimes sendo praticados, em que esses homens são colocados ali de uma forma quase que heroica, como sendo um homem que está fazendo algo pela masculinidade dele. Isso não é um efeito colateral, isso é um produto, isso é monetizado.
A questão é: até quando nós vamos ter governos e estados que permitem que o ódio contra as mulheres seja um produto lucrativo? Então não é responsabilizar, é perguntar se esse conteúdo pode circular. Quem produz, quem está pagando, como isso é monetizado?
Inclusive dialogando com o que você me perguntou sobre a questão do aumento da pena. Ainda que o aumento de pena tivesse um efeito dissuasório, isso seria menos verdadeiro nesses crimes com violência de gênero. [Isso] porque esses homens entendem que estão fazendo algo correto, algo bom, algo para vingar a sua masculinidade. Então, não vai ter uma dissuasão, não é um motivo de vergonha ter praticado esse tipo de crime.
Depois da leva mais recente de casos atrozes, circularam publicações de mulheres questionando quantos homens se manifestaram condenando a violência, expondo uma sensação de que esse assunto ainda é tratado muito somente entre as mulheres. Os homens precisam entender que a violência é uma “coisa de homem”, como disse o presidente Lula?
Vou te falar uma impressão muito pessoal minha, uma leitura que eu faço da situação. Eu acho que as saídas que em geral se apontam têm divergências dentro dos vários movimentos feministas, porque o movimento feminista não é único, não é monolítico.
Então, de um lado você vai ter setores do movimento que vão apostar em penas mais altas, em reduzir direitos de réus, em plenário do júri etc. E você vai ter setores que vão dizer que não é dever das mulheres dizer para os homens o que é que tem que ser feito, que eles é que tem que aprender, que as mulheres não podem ter mais esse fardo.
E existe ainda uma outra posição, que para mim parece fazer mais sentido, que é: violência de gênero é um problema da sociedade toda. Então eu acho que a educação de gênero desde o início na escola, isso tem que ser debatido entre homens, debatido entre mulheres sem, de forma alguma, justificar [a violência]. Mas, sem compreender qual que é o mecanismo psíquico, o mecanismo cultural, o mecanismo social que faz esses homens exercerem essa violência tão brutal, a gente vai continuar insistindo em direito penal.
Então, olha só a Lei do Feminicídio. Está aí há dez anos e eu me sinto repetindo entrevistas que eu dei em 2015. O que a gente viu foi um agravamento das violências misóginas e a gente continua apostando em respostas penais.