Mato Grosso seguiu os passos do PL da Devastação em obra no Portão do Inferno. Deu errado

Há 150 milhões de anos, o local onde está situado o monumental Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, era um imenso deserto. No final da era Mesozoica, quando os dinossauros habitavam a Terra, a ação das chuvas, do sol e dos ventos esculpiu escarpas e morros através da união dos grãos de areia que formavam o Saara mato-grossense. Mas as formações rochosas pré-históricas que hoje se erguem a 150 metros de altura, como o Portão do Inferno, estão ameaçadas por tentativas repetidas do governo do Estado de obras na região.

Sem consulta pública e com um licenciamento simplificado, aos moldes do PL da Devastação aprovado pela Câmara dos Deputados, o governo de Mato Grosso, chefiado por Mauro Mendes (União Brasil), decidiu tocar adiante uma obra que tinha o potencial de fazer o Portão do Inferno se desmanchar em um duna avermelhada. A justificativa para a ação chamada de retaludamento, que consiste em cortes no morro para ajustar seu grau de aclive, seria evitar novas quedas de blocos de arenito sobre a estrada, como as ocorridas em novembro de 2023. Os deslizamentos motivaram um decreto de emergência expedido 26 dias depois.

Durante quase um ano, a ação foi conduzida pelo governo, atrapalhando o trânsito de moradores dos municípios vizinhos ao Parna. O governo eventualmente cedeu, e agora planeja um túnel. Contudo, documentos internos do governo estadual mostram que o verdadeiro interesse seria outro, duplicar a MT-251.

Desde os deslizamentos em dezembro de 2023, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) pediu ao menos sete vezes ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para ser responsável pela competência de licenciamento da duplicação da rodovia. A Secretaria de Infraestrutura e Logística de Mato Grosso (Sinfra) também fez a mesma solicitação, um desejo antigo do governo estadual que remonta a 2006. A reportagem questionou o Sinfra sobre o atual interesse na rodovia, que não respondeu até a publicação.

Por que isso importa?

  • A obra na região do Portão do Inferno, questionada pelos MPF e MPMT pelo potencial de danos aos paredões rochosos do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, conseguiu um licenciamento ambiental simplificado.
  • Esse tipo de licenciamento é facilitado pelo projeto de lei aprovado na Câmara, apelidado de PL da Devastação. Ambientalistas e pesquisadores apontam que isso deve aumentar os impactos ambientais causados por obras.

Estrutura de milhões de anos que correu risco de virar pó

Apesar da aparência rígida e imponente, as formações rochosas como o Portão do Inferno são formadas por areia unida por uma fina película de óxido de ferro que a recobre.

“Se essa película é removida, a estrutura volta a ser areia do deserto do Triássico”, afirma o geólogo Prudêncio Castro, professor da Universidade Federal do Mato Grosso e morador de Chapada dos Guimarães, o município vizinho ao parque. 

Os especialistas questionam por que, para conter a erosão do Portão do Inferno, o governo do Mato Grosso decidiu por cortes em um morro de arenito, sujeito ao esfarelamento. “Tem outras medidas, muito mais simples e muito mais baratas, colocando telas ou retirando os blocos com fraturas previamente identificadas”, diz Castro. Obras de contenção, inclusive, já autorizadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o gestor do Parna.

Embora real e respaldado por um estudo, o risco da queda de novos blocos sobre a estrada no Portão do Inferno teria sido exagerado para atropelar o licenciamento, na visão do Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPMT) e do Instituto Caracol, especializado em justiça ambiental, direitos humanos e diversidade ecológica. Os MPs e o Caracol entraram com duas ações civis públicas pedindo que o licenciamento simplificado fosse anulado pela ausência de motivação para o uso desse instrumento, que o PL 2159 quer tornar regra geral ao Brasil. “Esta obra foi um teste drive do PL da Devastação”, diz Andreia Fanzeres, do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad).

“A opção pelo retaludamento, em nenhum estudo apresentado, se mostrou com a melhor nota na análise de alternativas. Seja no relatório de impacto ambiental (EIA/Rima) da proposição de duplicação da rodovia ou mesmo na justificativa apresentada para o órgão licenciador”, diz o relatório técnico do Centro de Apoio à Execução Ambiental do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, três meses após a licença. As ações entraram com liminares para paralisar a obra, mas o tribunal de Justiça indeferiu por já estar em curso.

Obra no Portão do Inferno pode abrir portas para duplicação de rodovia

Em um vídeo publicado em 2 de abril de 2024, o governador Mauro Mendes aparece entregando ao presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, um pedido de licenciamento simplificado para o retaludamento do Portão do Inferno. Nele, Mendes afirma que o Ibama se comprometeu a tramitar a documentação o mais rápido possível para que, em até cinco dias após o envio do documento, as obras pudessem ser iniciadas. Agostinho responde que o governador podia contar com toda a atenção do órgão para o caso.

O encontro entre Mendes e Agostinho rendeu frutos. Em 28 de junho de 2024, o Ibama concedeu o licenciamento de instalação (LI) para o início da obra, sem estudos ou relatório de impacto ambiental. Três meses antes, Mendes já havia contratado a Lotufo Engenharia, por R$ 29,5 milhões, sem ter a licença ambiental em mãos. O Sinfra justificou à Pública que agilizou o processo para reduzir o tempo da obra. “O procedimento ocorreu ao mesmo tempo em que era solicitado o licenciamento ambiental para que os prazos fossem otimizados.”

O Ibama confirmou à Pública o interesse do governo de Mauro Mendes na duplicação e disse que dará a resposta no final do mês de julho. “A parte mais difícil de duplicar é aquela (Portão do Inferno). Então, tirando esse obstáculo, toda a rodovia estaria em condições de ser duplicada”, explica Castro.

Um eventual aval do Ibama para a obra pode inaugurar um novo capítulo de divergências com os cientistas e com a comunidade local. Em 2010, o MPF ajuizou uma ação contra a duplicação da rodovia sem o devido licenciamento ambiental e com pedido para transferir a competência para o Ibama, que já cuidava do trecho dentro do Parna. Naquela época, a competência de licenciamento era da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso, que havia dispensado o estudo e o relatório de impacto ambiental para a obra. Houve um acordo para que a duplicação da MT-215 fosse planejada em toda a sua extensão de 70 quilômetros e não fatiada em pedaços como queria o governo. 

A ação conjunta do MP e MPF também apontou uma irregularidade do Ibama na classificação de risco das obras para facilitar a licença. Os documentos do inquérito mostram que o Ibama usou, de forma equivocada, um decreto genérico, expedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019 e que carece de regulamentação, para classificar o risco de deslizamento de novas pedras como risco II. Segundo a ação, o Ibama deveria ter usado uma portaria própria para classificar o risco do retaludamento em si. Dessa forma, o projeto deveria seguir os trâmites normais de licenciamento, em três etapas, incluindo estudos e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima). 

Mas o órgão chefiado por Agostinho nunca definiu expressamente, por meio de ofício, despacho, parecer ou nota técnica, que o modelo de licenciamento seria simplificado. Apenas concedeu a LI sem justificar o motivo. O MPF argumenta que, por esse fato, o Ibama agiu para definir, implicitamente, o rito simplificado sem estudos prévios. “Talvez, de fato, a única justificativa seja a tentativa de imposição, a todo custo, de um procedimento simplificado de licenciamento ambiental para as obras de retaludamento”, escreveram na ação. Os dois processos aguardam decisão do Judiciário. 

Obra seguiu por quase um ano bloqueando a estrada

Os 12 meses de tentativas de fazer o retaludamento geraram enormes prejuízos aos moradores dos municípios vizinhos ao Parna. Um estudo encomendado pela prefeitura de Chapada de Guimarães tentou alertar o governo de Mato Grosso que os habitantes sofreriam meses com as interrupções no trânsito, inclusive com risco maior de desastres – os carros ficariam enfileirados justamente no trecho mais sujeito à queda de blocos, durante os bloqueios totais e no esquema “pare e siga”. Esses impactos, no entanto, não foram levados em conta.

“As primeiras intervenções acabaram fechando a estrada de forma integral, e o desvio que existe leva três horas para ser percorrido”, lembra Cleberson de Jesuz, professor no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso. “Muita gente perdeu voo, consulta médica, cirurgia, não conseguiu voltar para casa ou ir para o trabalho”, relata a jornalista Andreia Fanzeres, do Formad.

Por meio de uma carta formalizada entre dezembro de 2024 e março do ano seguinte, anexada ao processo de licenciamento, moradores da região expressaram a insatisfação com as paralisações. A ação civil pública do Instituto Caracol denunciou o Sinfra por não ter apresentado estudos com medidas de apoio ao turismo ou mitigação dos danos socioeconômicos. “Não há maternidade em Chapada, nem ensino de terceiro grau. Há um grande fluxo de pessoas e simplesmente não se pensou nelas. Nem na proteção a um parque nacional, que é um patrimônio histórico e cênico que recebe milhares de turistas”, disse Fanzeres.

O Ibama chegou a notificar a Sinfra a apresentar estudo complementar sobre a manutenção do fluxo de veículos durante a realização das obras, com fechamento só em casos excepcionais e previamente agendados. Mas o Sinfra enviou uma proposta de trabalho em que sugeria o bloqueio total durante a semana, das 6h às 18h. Ou seja, para ir da Chapada a Cuiabá só seria possível das 18h às 6h da manhã do dia seguinte. Após o Ibama considerar a situação inadequada, a Sinfra passou a enviar cronogramas graduais, com paradas totais, ou no sistema “pare e siga”

Do ponto de vista técnico, o retaludamento do Portão do Inferno também não era seguro. Um relatório da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) apontou a necessidade de explosivos, o que poderia vir a instabilizar outras regiões. “Poderiam levar a quedas de blocos em outros pontos da estrada. Poderia, inclusive, comprometer o viaduto atual da estrada e levando ele a ficar instável”, disse Caiubi Emanuel Souza Kuhn, professor da Faculdade de Engenharia da UFMT. O uso de explosivos havia sido descartado pelo ICMBio durante o licenciamento, em virtude das sensibilidades da área, conforme os documentos juntados ao processo. 

Em 24 de junho, um ano após a obra ter iniciado e quatro dias da licença expirar, o próprio governador Mendes declarou o que os cientistas já haviam alertado: a obra era inviável. Em entrevista reproduzida pelo FolhaMax, disse que novos levantamentos apontaram inconsistências no projeto inicial. “Sempre foi uma ideia impraticável do ponto de vista técnico, geológico”, disse o geólogo Prudêncio Castro, que participou de audiências públicas para alertar o Legislativo de que a obra não podia seguir adiante. “Mas a ciência não foi ouvida.”

Mauro Mendes bem que tentou. Foram feitos aditivos no valor de R$ 4,4 milhões, mas a obra considerada pelo governo a mais barata, rápida e viável começou a encarecer, e o morro a desmoronar. “O que foi comprovado é que não era verdade que se tratava de uma obra mais rápida e nem a de menor custo”, disse Kuhn. Castro complementa: “​​Nunca foi mais barato gerar um processo de degradação tremendo, sem conseguir segurar as areias, que era o que estava ocorrendo. Eles começaram justamente a escavar a base do morro, que confere estabilidade.”

A ideia atual, confirmada pelo Sinfra em resposta à Pública, é fazer um túnel. Segundo a secretaria, o novo projeto está em elaboração. Em 2 de julho, o MPF requisitou a intimação do governo de Mato Grosso para esclarecer como se deu o processo de alteração das obras e informar as próximas etapas, assim como os motivos de optar agora por um túnel. “Mais uma vez, o governo lança uma ideia sem debater com a população”, diz Andreia Fanzeres. “Não ficaremos calados.”

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