O cocar sagrado, o tarifaço de Trump e a democracia brasileira

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Mal comemoramos a união do país contra o tarifaço de Donald Trump – que tem o objetivo explícito de atacar a Justiça e a democracia brasileira –, já amanhecemos cobertos de vergonha pela sessão da Câmara que aprovou o projeto de licenciamento que fez a legislação ambiental brasileira retroceder 60 anos em uma madrugada.

A pesquisa Quaest capturou o momento de convergência em defesa da soberania do país: 72% dos entrevistados consideram que o presidente dos Estados Unidos está errado em impor tarifas para defender Jair Bolsonaro de uma suposta caça às bruxas. Mais da metade (53%) também considera que Lula está certo se reagir aplicando a Lei de Reciprocidade.

A aprovação do PL da devastação, porém, foi um vexame internacional. Não apenas pelo efeito demolidor que tem sobre o clima e o ambiente, a menos de quatro meses da COP em Belém, presidida pelo Brasil e antagonizada pelos Estados Unidos (sobre isso leia a ótima coluna de Giovana Girardi), mas também pelas circunstâncias em que a votação se deu.

Em sessão esvaziada na Câmara, que aprovou o PL da destruição às 3h40 da quinta-feira passada, a única deputada indígena na Câmara, Célia Xacriabá, foi ridicularizada pelos colegas de parlamento por portar o cocar sagrado Fulniô e teve o microfone cortado pelo presidente da Câmara, Hugo Motta, que, sem controle do plenário, acabou apelando para a polícia legislativa para conter o alvoroço.

Ignorantes, os parlamentares não tiveram nenhuma sensibilidade diante do significado simbólico do uso do cocar pela deputada durante a votação do projeto que ameaça a existência de povos e culturas de 259 terras indígenas e 1553 territórios quilombolas. O povo Fulniô, homenageado por Célia Xakriabá, é o único do nordeste que mantém viva a sua língua nativa, a despeito de séculos de agressões e expulsões.

Racistas, os deputados se acharam “inteligentes” ao ironizar as penas de pavão que compõem o artefato, saudando com risadinhas as piadas grosseiras de Kim Kataguiri – um retrato do desdém do parlamento diante dos riscos que o PL representa. Entre as vítimas desse descaso, como lembrou a deputada indígena, já estão as crianças e mulheres Xikrin contaminadas por metais pesados no Pará, aliás pela mesma mineradora que afogou na lama centenas de pessoas em Minas Gerais.

São os direitos de todos nós que estão em jogo quando os povos que mantêm viva a natureza e a diversidade de culturas são atingidos. É a generosidade daqueles que enfrentam com os próprios corpos a destruição do país, patrocinada pelo Congresso movido por interesses privados, que nos permite sonhar com o futuro nesse clima de fim do mundo.

“Eu tô vendo muita gente vestindo verde e amarelo, mas o verde da bandeira é o verde da floresta e, no entanto, vai rasgar a legislação ambiental, a legislação brasileira”, disse Célia Xakriabá, com a voz embargada, em seu voto emocionado contra o projeto.

Os “patriotas”, claro, não se abalaram. O texto foi aprovado com amplo apoio da bancada ruralista e de partidos como PL, PP, Republicanos, União Brasil e PSD. Não foram os únicos culpados: embora as bancadas do PT e de outros partidos de esquerda tenham votado majoritariamente contra o PL da destruição, o governo já havia cedido à chantagem de Davi Alcolumbre durante a votação do mesmo projeto no Senado, em busca de apoio para as pautas econômicas – o que também não deu certo.

Espera-se agora que o presidente Lula, fortalecido por sua atitude firme em relação ao tarifaço, mantenha a postura de estadista e vete o projeto na íntegra. Essa parece ser a única decisão adequada para um país que pretende liderar a concertação mundial pelo clima a partir da Amazônia e também a única resposta à altura das agressões sofridas pela deputada Célia Xacriabá na Câmara e anteriormente pela ministra Marina Silva no Senado.

Parlamentares da base governista têm dito a jornalistas que seria mais estratégico vetar trechos do projeto, preenchendo as lacunas deixadas com a inclusão de uma medida provisória ou de outro projeto de lei. Isso porque o Congresso tem o poder de derrubar os vetos, restando ao governo recorrer ao Supremo Tribunal Federal.

Além de contrariar artigos constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos indígenas e quilombolas, o PL da devastação tromba de frente com decisões já tomadas pelo STF. Por pior que seja ter que recorrer à Justiça a cada avanço inconstitucional do Congresso, parece melhor do que recuar de antemão ante a agressão à integridade do país e aos direitos fundamentais da população. Afinal, foi isso que fez o governo no caso do IOF, em que saiu vitorioso.

Se o exemplo do tarifaço está valendo, foram os presidentes da Câmara e do Senado – e até o governador/candidato Tarcísio de Freitas – que foram obrigados a apoiar Lula, respaldado pela população, no embate do país contra Trump. Bolsonaro, à beira da prisão, só perdeu pontos ao priorizar seus próprios interesses em detrimento do país. 
O Brasil precisa de um presidente com coragem de atuar em defesa do interesse público e com capacidade de se comunicar com os cidadãos para explicar suas decisões. O mundo precisa de líderes capazes de revitalizar o multilateralismo e proteger o clima e a democracia. Lula tem que mostrar que está à altura da missão.

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