Órfãos do feminicídio: pensão é positiva, mas falta apoio psicossocial a filhos de vítimas

“A lei é uma evolução que esperávamos há muito tempo”, afirma Alice Bianchini, doutora em Direito Penal e especialista em violência de gênero. Ela se refere à regulamentação da Lei n.º 14.717/2023 que estabelece uma pensão especial aos filhos e dependentes, crianças ou adolescentes, órfãos em razão do crime de feminicídio.

A partir deste mês, os beneficiários começam a receber um salário mínimo até os 18 anos de idade, caso a renda familiar por pessoa não ultrapasse um quarto do salário mínimo vigente.

Crianças e adolescentes filhos de mulheres vítimas de feminicídio são considerados vítimas indiretas porque, se não sofrem a violência diretamente, são afetados pelo resto da vida por desamparo financeiro e cicatrizes psicológicas.

“A criança é vítima direta da violência psicológica, não só quando acontece a morte, mas também por crescer em um ambiente violento que traz traumas e consequências diretas para ela”, avalia a advogada.

No ano passado, 1.459 mulheres foram mortas por feminicídio, o maior número desde o início da lei que criou o tipo penal, em 2015. Apesar de não haver dados oficiais sobre quantas eram mães, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que cerca de 2 mil crianças se tornam órfãos do feminicídio por ano no Brasil.

Por que isso importa?

  • O número de feminicídios no Brasil bateu recorde em 2024 desde o início da série histórica em 2015, com crescimento de 19% em relação ao ano anterior. Só no estado de São Paulo, no primeiro semestre deste ano, 21 mulheres foram vítimas desse tipo de crime na média mensal.

Apesar de a nova lei brasileira ser considerada um avanço por tratar do aspecto financeiro, ainda há falta de efetividade na prestação de atendimento psicossocial na avaliação de especialistas.

Uma pesquisa publicada na Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul em 2024 analisou 34 processos de casos consumados no Distrito Federal entre 2016 e 2017. Segundo o estudo, os crimes tiveram “imenso impacto” na vida dos filhos, com quadros de automutilação, regressão do comportamento, retraimento e pesadelos.

Apesar de fazer parte do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a previsão de acompanhamento psicológico muitas vezes não é comunicada aos familiares. “Embora altamente recomendável para esse tipo de crime, poucas famílias informaram ter recebido oferta de acompanhamento psicológico pelo Estado”, relata a pesquisa.

Alice Bianchini também afirma que a falta de apoio é comum nos casos que acompanha. Para ela, o Estado deveria fazer busca ativa para o atendimento, do mesmo jeito que já acontece com as rondas da Lei Maria da Penha. “É importante que os serviços também tragam essas informações assistenciais, para que os familiares saibam os seus direitos”, afirma.

Para a jurista, o Estado precisa ter mecanismos maduros para garantir que as crianças continuem acessando a escola e que o novo lar, geralmente elas passam a morar com algum familiar do lado materno, seja seguro para elas.

Já a pensão especial tem o objetivo de fazer uma reparação econômica para as crianças e adolescentes que não raro se tornam órfãos duplos – tendo em vista que, em muitos casos, o autor do crime é o próprio pai, que depois é preso, foge ou se suicida. O último relatório da ONU Mulheres mostra que, em 2023, 60% dos feminicídios no mundo foram cometidos por um parceiro íntimo ou membro da família. 

Além disso, boa parte das crianças está presente no momento do crime. Segundo o DataSenado, 71% dos casos de violência contra a mulher tiveram testemunhas, e, desses, sete em cada 10 eram filhos. De acordo com o Fórum de Segurança Pública, um quarto das agressões sofridas por mulheres no ano passado aconteceu na frente dos filhos.

O benefício aos órfãos segue as regras da Previdência Social. Caso a mulher deixe mais de um filho, a pensão é dividida entre os irmãos. Não pode haver acúmulo com outros programas sociais do governo federal, ficando a cargo do responsável escolher qual é o mais vantajoso.

Feminicídios chocam país durante a semana

Casos de feminicídio em que crianças e jovens acabam se tornando órfãos não são raridade no Brasil. Isabele Gomes de Macedo vivia sendo agredida pelo marido na comunidade de Icauã, em Recife. Aguinaldo José Alves foi descrito por vizinhos como um homem “bonzinho e simpático”, mas dentro de casa “era um monstro”.

Quando bebia, descontava na esposa e nos filhos, de 7, 4, 3 e 1 ano de idade. As crianças iam para a janela pedir ajuda, mas os vizinhos fingiam não ver. No último sábado, 29 de novembro, Aguinaldo colocou fogo na casa com a família dentro. Todos morreram queimados, menos o homem, que foi linchado e preso em flagrante.

O caso de Isabele foi apenas um entre outros feminicídios que chocaram o país nos últimos dias. Mas ela não foi a única mãe entre as vítimas da violência de gênero no período. A pedagoga Allane Pedrotti Mattos, morta a tiros por um homem no Rio de Janeiro que se recusava a ser chefiado por mulheres, tinha uma filha de 13 anos. Em Santa Catarina, uma mulher só não foi morta a facadas pelo marido porque o homem foi impedido pelo filho, de cinco anos.

No mundo, legislação ainda é recente

Apesar da gravidade, poucos países têm legislação sobre o assunto, e mesmo as leis existentes são relativamente recentes. Um dos primeiros países a instituir uma pensão do tipo foi a Argentina, em 2018.

A legislação argentina foi batizada de Lei Brisa em referência à Brisa Barrionuevo, uma menina que tinha dois anos quando a mãe foi assassinada pelo padrasto e teve o seu corpo jogado em um rio da província de Buenos Aires. Ela e os irmãos ficaram desassistidos e tiveram que ir morar com uma tia, que não tinha condições financeiras para mantê-los. Pela lei, ela e outras 5 mil crianças e jovens tinham o direito de receber auxílio mensal e acompanhamento de saúde previstos até os 21 anos, segundo o governo argentino.

Porém, com a chegada do ultraconservador Javier Milei ao poder, não só a Lei Brisa entrou em risco de ser suspensa, mas também houve ameaça de retirar o feminicídio do Código Penal, sob o argumento de que “nenhuma vida vale mais que a outra”.

Além da Argentina, Itália, Bolívia, Costa Rica, Chile, Peru e Uruguai já aprovaram legislações que preveem amparo para filhos de vítimas de violência doméstica.

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