A comunidade do terreiro de candomblé Abassá Oxum Oxossi, movimentos de proteção da cultura afro-brasileira e liberdade de culto, além de órgãos de proteção do patrimônio histórico, estão mobilizados diante do risco de fechamento do espaço em função de uma ação de reintegração de posse.
O processo tramita na 2ª Vara Cível do Fórum Regional VI da Penha da França da Justiça paulista, e foi iniciado em 2022 por familiares da fundadora do Abassá e da atual mãe de santo responsável pelo local, Kátia Luciana Alves Sampaio Leite, também conhecida por Mam’etu Kutala Diamuganga, ou mãe Kátia. O terreiro, localizado na zona leste de São Paulo, em Cangaíba, foi criado pela mãe Caçulinha D’Oxum, Carlita Reis Gomes, há cerca de 60 anos (1966).
Por que isso importa?
- O terreiro de Candomblé Abassá Oxum Oxossi funciona desde 1966 é considerado um dos mais tradicionais da região de Cangaíba na capital paulista
- No Brasil, além da garantia constitucional de liberdade religiosa, existem leis como o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) que protegem, entre outros pontos, religiões de matriz africana e suas práticas.
No processo, cujo conteúdo a Agência Pública teve acesso, membros da família de mãe Caçulinha alegam que mãe Kátia, neta biológica da líder religiosa falecida em 2016, não realiza atividades de Candomblé no local e utiliza o imóvel para residência. Além disso, o mesmo grupo afirma que havia uma dívida de IPTU do imóvel e faltava manutenção na casa.
Segundo os argumentos apresentados à Justiça, seria necessário que mãe Kátia pagasse um aluguel para continuar utilizando o local. Em conversa com a reportagem, mãe Kátia afirma que o objetivo de seus familiares é vender o imóvel.
Os relatos dos frequentadores e filhos de santo que frequentam o terreiro contradizem a versão presente no processo. “[A reintegração de posse seria] uma perda incalculável para a comunidade de religião de matriz africana, para a nossa comunidade do Cangaíba, porque isso é história viva. Ali tem várias pessoas sendo cuidadas, se cuidando espiritualmente, dedicando as suas vidas para dar continuidade à história perpetuada pela mãe caçulinha”, alerta Thiago Farias, advogado da equipe de defesa do terreiro e frequentador do espaço.
O reconhecimento do Abassá Oxum Oxossi como comunidade religiosa de matriz africana Bantu (Angola), que mantém tradições e saberes ancestrais, permitiu a abertura do processo de tombamento do terreiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em novembro de 2023. Em âmbito municipal, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) também avalia o tombamento do local desde junho deste ano.
O Iphan informou à Pública que o processo de tombamento está “em fase de instrução”. “É um processo longo e criterioso, que envolve a elaboração de estudos técnicos, a emissão de pareceres e o envio de documentos, como plantas e fotografias antigas, a fim de embasar as vistorias técnicas e os estudos realizados”, informa a nota enviada pelo Instituto.
A autarquia alerta, porém, que “o tombamento não é interferido pela propriedade do monumento. A responsabilidade pela integridade e manutenção do bem tombado permanece com o detentor, seja ele quem for. De acordo com o Decreto-lei 25/1937 e a Portaria 187/2010, cabe ao Iphan fiscalizar o bem cultural e orientar o proprietário em sua conservação, além de solicitar os reparos necessários”.
O advogado Thiago Farias explica que a ação de reintegração de posse não deveria ser julgada pela Justiça estadual, pois como o imóvel está em processo de tombamento ― e abriga uma comunidade tradicional religiosa ― não se trata mais apenas de direito privado. O envolvimento do Iphan, órgão federal, também exigiria que a questão fosse analisada por um tribunal federal.
“Esse foi um pedido que não partiu somente de nós, representantes legais do terreiro Abassá Oxum Oxossi. Foi um pedido feito dentro do processo pela Procuradoria-Geral da República”, afirma Farias.
O procurador da República Steven Shuniti Zwicker enviou um ofício, em agosto de 2024, ao juiz de direito da 2ª Vara Cível do Forum Regional que consta no processo judicial. No documento, Zwicker afirma que “o interesse do órgão federal de proteção do patrimônio histórico no tombamento em disputa nestes autos faz com que os referidos processos passem a ser de interesse público e social”.
O procurador ainda requer em nome do Ministério Público Federal “seu ingresso nos autos, na qualidade de fiscal da ordem jurídica”, “a inclusão do Iphan no polo passivo, na qualidade de litisconsorte passivo necessário”; e “por consequência, requer o declínio da competência em prol de uma das varas federais da Subseção Judiciária de São Paulo”.
A solicitação de Zwicker, no entanto, não foi atendida. O Ministério Público Federal e o Iphan também não são citados na decisão de novembro deste ano, do juiz de direito Sinval Ribeiro de Souza, responsável pela 2ª Vara Cível do Foro Regional VI, benéfica ao grupo de herdeiros.
Na decisão, o juiz afirma que “este juízo foi por demasiado tolerante com a ré no sentido de postergar o cumprimento da tutela de urgência com vistas a uma solução amigável. Inclusive, foi ordenada a realização de perícia objetivando a uma possível proposta de compra do bem pela demandada, que permanece silente desde então”.
A proposta de compra, no entanto, foi apresentada por um grupo de sete membros da comunidade religiosa Abassá de Oxum Oxóssi que solicitou ao juiz entrar no processo como assistente de mãe Kátia, em setembro de 2023. No pedido, o grupo afirma que “até o falecimento da Sra. Carlita Reis Gomes [mãe Caçulinha], as atividades no templo [de Candomblé] ocorreram tranquilamente. Com sua passagem em 2016, o templo passou a ser gerido pela neta da fundadora, a requerida Katia Luciana Alves Sampaio Leite – a comunidade, pois, continuou a congregar no local, o que ocorre até os dias atuais”.
Na sequência, o grupo relata “com o óbito da fundadora, os demais herdeiros – exceção feita à Sra. Katia Alves, passaram a trabalhar com a perspectiva de descaracterizar o imóvel de sua função cultural/religiosa, contrariando, assim, a vontade expressa em testamento da matriarca”.
Na decisão de novembro, o juiz Sinval Ribeiro de Souza é taxativo: “expeça-se mandado de reintegração de posse, desde já deferido concurso policial, ordem de arrombamento e o que mais for necessário a completa desocupação da coisa”.
A codeputada estadual pelo mandato Pretas (PSOL) e coordenadora do movimento social Emancipa Axé, Ana Laura de Oliveira, afirma que “toda questão de reintegração do terreiro pode ser vista como racismo religioso”.
“Estamos vendo o STF [Supremo Tribunal Federal], os votos dos ministros, falando sobre a questão do racismo estrutural. A gente vê uma justiça que não identifica um terreiro enquanto um espaço que tem que ser lido de outra forma. Não é apenas um terreno a ser dividido entre os familiares, é algo que precisa ser preservado. Isso precisava ser uma coisa mais orgânica, inclusive no entendimento jurídico”, avalia.
Para ela, um templo de outra religião não passaria pela mesma situação. “Se fosse uma igreja, não teria a mesma conotação, porque uma igreja não foi explorada, oprimida, não teve o processo de escravização daqueles que cultuam a fé cristã nas igrejas aqui no Brasil. […] A gente entende que existe racismo religioso a partir do momento que o sistema judiciário é um sistema racista e não enxerga a complexidade [das religiões de matrizes africanas]”, completa.
Após a determinação da Justiça, a defesa do Abassá de Oxum e Oxossi solicitou na 2ª Vara Cível a suspensão da reintegração de posse. Para Thiago Farias, a ação é necessária até que “seja decidido acerca do processo de tombamento para que justamente a gente tenha condição de olhar para aquele bem de uma forma integral”, explica.
Um mandado de segurança também foi impetrado porque é “um direito líquido e certo” que um “bem protegido em sua integralidade por um processo de abertura de tombamento do Iphan” tenha que ser tratado em “sede federal”, diz o advogado.
O advogado do grupo de familiares, Agner Eduardo Gomes da Silva, em entrevista à Pública, disse, inicialmente, que a “família reconhece que funcionou [um terreiro] enquanto a Carlita estava viva. Enquanto a Mãe Caçulinha estava viva, realmente, o imóvel que funcionava como terreiro”.
Em outro momento, porém, ele admite que “a família não se opõe a que as atividades tenham prosseguimento no terreiro. Lógico, que depende da pessoa que vai estar tocando, a responsabilidade dessa pessoa e, também, nem que seja para alugar para outras pessoas da religião de matrizes africanas”, declara Silva.
O advogado ainda confirma que a família foi informada sobre o processo de tombamento. “O direito dos herdeiros não é afastado por conta de um tombamento. Os herdeiros só querem usufruir do seu direito legal e testamentário. Então o fato de ser tombado não afasta o direito de herdar ou da propriedade [ser] deles”, argumenta.
Mãe Kátia aponta outro problema, até o momento, ignorado pela 2ª Vara Cível do Fórum Regional. O falecimento, em abril deste ano, de uma das partes que solicita a reintegração de posse, seu tio Nilton Alves Gomes. “Esse é um dos detalhes, que o meu jurídico está trabalhando para que seja suspensa a reintegração de posse, porque, a partir do momento que a pessoa é falecida, não tem como fazer a reintegração de posse”, alega Kátia.
O advogado Thiago Farias confirma que se trata de vício processual, onde há morte de uma das partes dentro do processo e não há a habilitação dos herdeiros do falecido, nem o comunicado do falecimento.
Já Agner Eduardo Gomes da Silva, advogado da outra parte, diz que a morte ainda não consta no processo “porque o tio [sic] Nilton faleceu agora, no meio do ano. Não houve manifestação posterior dos fatos”, informa.
Família está dividida e sustenta versões diferentes
Após o falecimento da mãe Caçulinha, Kátia Sampaio assumiu a liderança do terreiro em julho de 2017. A mãe de santo afirma que os próprios tios pediram que ela, neta biológica e filha de santo da mãe Caçulinha, assumisse as atividades do Abassá.
“A minha avó escreveu uma carta de próprio punho, deixando cinco pessoas, devido à hierarquia [religiosa], à frente do terreiro. Porém, nesse período, [entre fevereiro de 2016 e julho de 2017] essas pessoas saíram do terreiro. A partir disso, os meus tios deram a chave para que eu continuasse com o terreiro”, relata mãe Kátia.
O advogado dos filhos de mãe Caçulinha conta diferente. Segundo ele, “[o terreiro] ficou fechado durante um tempo, quando a sobrinha deles, a Kátia, pediu para residir naquele local, já que ela havia sido despejada com uma filha menor de idade e não tinha pra onde ir”, diz.
Kátia afirma que realmente chegou a residir no terreiro entre 2018 e 2022 enquanto “fazia suas funções na casa de Santo”. A carta de mãe Caçulinha foi considerada como testamento particular pela Justiça e transitou em julgado.
Para Agner Gomes da Silva, o fato de mãe Caçulinha não ter colocado o nome de Kátia na carta demonstra que ela não deveria cuidar do terreiro, mesmo confirmando que as pessoas citadas pela fundadora do Templo optaram por não administrá-lo.
“Nem mesmo a fundadora, que era a Mãe Caçulinha, havia indicado ela para que seguisse à frente das atividades de candomblé. Ela preferiu colocar pessoas que detinham sua confiança e que dessem prosseguimento aos trabalhos. E a Kátia nunca esteve envolvida nisso”, afirma o advogado.
Em relato presente no processo sobre a posse do imóvel, mãe Kátia diz que em 2019 dois tios a procuraram no terreiro afirmando que pretendiam vender o imóvel em função de uma dívida de IPTU. Ela afirma que disse à época que a dívida tributária poderia ser resolvida informando à Fazenda do Estado de São Paulo que no imóvel funcionava uma comunidade religiosa de matriz africana. Templos são isentos do imposto predial. Uma tia, porém, segundo a mãe de santo, teria rejeitado a ideia, pois a venda ocorreria de toda forma.
Sobre a alegação que o imóvel não foi utilizado como um terreiro de candomblé após a morte de mãe Caçulinha, mãe Kátia afirma que o único momento em que o terreiro esteve fechado foi durante a pandemia. “O terreiro permanece aberto, eu tenho funções, filhos de santo, o cotidiano de uma casa de Axé. As pessoas que frequentam aqui são pessoas da comunidade, tenho consulentes e meus 20 filhos de santo”, ressalta.
Terreiro faz campanha para despesas judiciais
Em busca de recursos para reverter a decisão do Tribunal, a comunidade do Abassá Oxum Oxossi se organizou para realizar eventos e arrecadar fundos. Com a divulgação nas redes sociais já conseguiram cerca de R$ 4 mil. A campanha, porém, segue aberta, já que o valor será utilizado com despesas de advogados, contas do terreiro, deslocamento para audiências e todas as documentações necessárias. Apenas para iniciar um dos processos, o valor é de R$ 7.500.
“Eventos no terreiro fariam com que a gente mantivesse uma movimentação no espaço de pessoas que já conhecem. Também traria um olhar, uma atenção, uma visibilidade daquelas pessoas que não conhecem e gostariam de conhecer”, diz Olivia Mattos, filha de santo do Abassá e organizadora da mobilização contra a reintegração.
“Até por se tratar de uma casa de axé, eventos acontecem, sejam eles uma festa de santo, uma festa para entidade, ou uma roda de conversa”, acrescenta. No Instagram do terreiro são publicadas imagens dos eventos e festas que lá ocorrem.
“A mobilização comunitária também reivindica a legitimidade dentro do processo, para que haja um olhar integral, da importância dessa comunidade, [de] sua história [para que] exista uma ampla defesa”, conclui Thiago Farias.
